Descrição
No leito de um hospital em Curitiba, Tia Pedrolina desperta de sua longa noite de Alzheimer e faz uma revelação a seu sobrinho. Suas palavras o lançam numa jornada pela história oculta da família. Misturando memória, pesquisa documental e poesia, Retorno ao ventre investiga um acontecimento histórico brutal e pouco conhecido, que mudou os destinos de sua família e de sua terra natal: a primeira expedição militar da República do Brasil ao sudoeste do Paraná, coração do território Kaingang, no início do século XX. À frente dos militares está seu bisavô, um renomado bugreiro alemão. No meio do caminho, sua bisavó, uma criança indígena. Visto pelo Estado como um lugar misterioso, distante e selvagem, um grande vazio demográfico no meio da maior floresta de araucária do mundo, o sudoeste do Paraná estava, na verdade, repleto de povos, de vida e de cultura. A “marcha para o oeste”, um dos mais violentos processos de colonização interna do país, não desejava apenas ocupar terras indígenas e sobre elas construir cidades e fazendas; no caso paranaense, desejava ocultar o legado originário, reescrevendo a história do estado como uma terra erigida por pioneiros brancos e descendentes de europeus. Aos povos indígenas do Sul é imposta toda sorte de invisibilidade. Este livro de poesia investiga uma memória familiar que se confunde com a própria história invisibilizada do Paraná. Por respeito e admiração aos protagonistas deste longo poema, desta epopeia coletiva, Retorno ao ventre foi escrito em português e traduzido integralmente ao idioma kaingang.
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Isỹ to jãn kar kỹ ki sóg vẽnhvég mũ isỹ to jykrén mũ página kar mĩ kỹ sóg fỹ sór mũ. Kaga, inh mỹ há, tóg kumẽr hã mĩ tĩ, ti ver to sónh nĩn kỹ ga ta kri. Ne pi kén mũ ẽmĩn tag jagma jãre e tỹ vĩ jãre tar ag kar nig gy tỹ vĩ ga kãra tóg ke mũ Jr.Bellé ti taki kar ti pi mũmẽg mũ ti rán ja gé. Ti poesia tóg vẽsỹ to rán kỹ nĩ, kar ũri ke gé, mỹr ũri tóg vajka to se kỹ sa Brasil kãme pi kanhgág ag kãme jo ke nĩ. Hãra ẽg tóg to vỹn kej ke nĩ.
— Mayra Sigwalt
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Precisamos elevar nossas cabeças e buscar uma maneira diferente de estar no planeta: uma que não assole nossos corações. E este livro de Jr. Bellé nos conduz a isso, em seus poemas declaratórios, intuitivos, combativos e de profunda denúncia. Quantas vidas foram perdidas pelas mãos dos homens brutais, sem qualquer traço de piedade ou solidariedade, que perpetuaram o desamparo no seio do mundo e que tratavam os povos pobres e indígenas como seres sem alma? Não tínhamos como nos defender. Tínhamos a sabedoria dos avós e bisavós. E essa força tradicional nos acompanha até os dias atuais. Os grandes mestres da sabedoria dos povos do mundo, como os Maia, os Inca e os Asteca, sucumbiram frente à nova civilização que aqui chegou a partir de 1500. A ciência e a economia são as supremacias do universo? Ambas são importantes ao desenvolvimento das sociedades modernas, ou falta alguma coisa? E onde ficam as essências e a ética da vida humana? É hora de reaprender o que significa o autoconhecimento, grande qualidade dos mestres iniciáticos da valorização do outro, da comunidade, da ancestralidade e dos grandes anciãos. Voltar-se para si mesmo, para sua essência, para seu povo, enxergar-se no outro como um espelho e se questionar o tempo todo quem somos nós: esse é um caminho deixado pelos grandes filósofos originais e essenciais da natureza humana em todas as partes do mundo: quem somos nós, para onde vamos? O que queremos? Por isso a importância de textos como este. Ouçamos a voz de Jr. Bellé.
Ẽg tỹ ẽg krĩ jãgfyn ke nĩ ẽg ser nénũ há to jykrén jé ga tag tỹ há ken jé ti ẽg fe kagãg tũ nĩn jé. Kỹ ser Bellé rivro tag vỹ jykre sĩnvĩ to ẽkrén han tĩ kar denúncia to rán kỹ nĩ gé. Ũ tỹ hẽre nỹ kẽgter mũ ũn fe kórég ag nĩgé ki, tofen tũ ag ser ẽg tỹ kãru ẽn rike han jé, ag mỹ tỹ ne tũ ha mẽ. Ẽg hẽren kỹ vẽnh defende kej ke nĩ vẽ. Ẽg gufã ag kanhró tỹ ẽg tóg tũ nỹtĩ vẽ. Hãra ag tar si tag tóg ũri hã ẽg mré tĩgtĩ. Ũn kanhró tỹ vĩ ag Maia, Asteca kar Inca, tóg tũ ke mũ ũn 1500 ki junjun tognĩn. Ciência kar economia mẽn tỹ ũn há nỹtĩ? Ha tỹ vĩ tóg nỹtĩ nẽnũ há kar kar nénũ tãg ag mỹ ki tũ mẽ vó mẽ? Hẽ tá mỹ nỹtĩ vẽnh jykre há ag? Ãg nénũ kar ki kanhró mỹ hẽre nỹtĩ ẽg tỹ nẽnũ kórég kato rárá kar kurã kar mĩ ũ ag ẽg ga tag tỹ krónh ke ti? Hẽ tá mỹ nỹtĩ. Ẽg gĩr kãsir ag kanhrãn ke ti kar kyrũ ag? To rã ser ẽg ti kar tag ag to vẽnhkanhrãn mãn ke ti ũn si ag mré jykre há han jé, ũn si ag nénũ há han ja ti ẽg tóg vẽsikã ẽg kanhró kãmũn mãn ge nĩ ẽg to ẽg tỹ ser vẽnhvej fã ki ũ ven jé kar ser to vãmén jé ũn jykre há ag ẽmĩn jagma mũn jé ẽg tỹ ũ nỹtĩ, ẽg hẽra mũ mũ? Ẽg ne to ke sór mũ? Mỹ tỹ nẽn mág ag kókén ge nĩ hẽn, vẽser ag to ag kanhrãn mũ hẽn? Ti kar mẽn nénũ há han tĩ vó mẽ? Hã ky tóg há nĩ vẽnhrá tag ge ti. Ẽg tỹ Bellé vĩ mẽn jé.
— Eliane Potiguara, na orelha
SOBRE O AUTOR
Jr. Bellé é filho da Dona Bete e do Seu Valcir, nascido em Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná, terra indígena ancestral. É mestre em estudos culturais (EACH-USP) e doutorando em estudos literários (PPGL-UFPR). Foi escritor residente da Yaddo, em Saratoga Springs, Nova York, contemplado com a bolsa Abigail Angell Canfield and Cass Canfield Jr. Residency for Writers; e do Art Farm, em Marquette, Nebraska, onde escreveu seu primeiro livro, Trato de Levante (Patuá). A obra teve seus direitos vendidos para o cinema, e foi exibida em festivais de poesia e cinema, como Queensland Poetry Festival, na Austrália, e Mammoth Lakes Film Festival, nos Estados Unidos. Publicou ainda a coleção de poemas amorte chama semhora (Patuá) e venceu o Prêmio Flipoços de poesia. Com seu primeiro romance, Mesmo sem saber pra onde (Folheando), venceu o Prêmio Variações de Literatura e recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em Havana, Cuba. Com este Retorno ao ventre, venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2023, na categoria Poesia.