‘É necessário estar atento ao que já existe no mundo’
A Revista Rosa lançou uma edição especial para tratar de ‘Decrescimento, pós-extrativismos e futuros em disputa’, onde traz uma entrevista com Alberto Acosta, em conversa junto da socióloga e doutora em antropologia Gabriela Cabaña. Acosta, político e economista equatoriano, tem uma longa lista de trabalhos já publicados aqui pela Elefante, como os livros O Bem Viver, Pós-extrativismo e decrescimento (co-autoria com Ulrich Brand) e Pluriverso (é um dos organizadores), além de outras contribuições — por exemplo, um dos capítulos do lançamento Colonialismo verde, v. 1, Geopolítica e transições ecossociais.
Por Lucas Braga e Nicolás Llano
Tradução de Lucas Braga
Publicado na Revista Rosa
Cabaña é socióloga e doutora em antropologia pela London School of Economics (LSE). Sua investigação se centra nas transições energéticas em contextos de crises ecológicas de forma ampla. Alberto Acosta é político e economista equatoriano, graduado em economia pela Universidade de Colônia, na Alemanha. Foi gerente de comércio da Corporación Estatal Petrolera Ecuatoriana no início dos anos oitenta e ministro de Energia e Minas em 2007. Esse mesmo ano foi eleito presidente da Assembleia Constituinte do Equador e foi candidato presidencial em 2013 pela Unidad Plurinacional de las Izquierdas. No Brasil tem vários livros traduzidos para o português. Os dois são membros do Pacto Ecossocial e Intercultural do Sul, do qual também faz parte Sabrina Fernandes, que integra este hors-série. Esta conversa foi editada por motivos de clareza e ritmo de leitura.
Atualmente observamos uma virada para a refossilização do sistema energético mundial, que faz parte dessa ideia da renovação tecno-otimista do projeto de crescimento infinito e dessa conjunção equivocada de crescimento igual a desenvolvimento. Tudo isso sob o manto de segurança do capitalismo verde. Estamos pensando tanto no que aconteceu uma década atrás em Yasuní-ITT e no “terrorismo econômico” que foi feito quando se propôs manter o petróleo abaixo do solo, como no caso chileno e nos discursos nacionais sobre transformação, industrialização e oportunidades econômicas verdes da indústria de hidrogênio verde e lítio, ideia que foi explorada em detalhe por Gabriela.
Como essa renovação tecno-otimista, que se apresenta na forma de falsas soluções e discursos corporativos, renovando essa ideia de um modelo extrativista e de um desenvolvimento infinito, impactam as possibilidades reais de uma transição justa e de expansão de outras alternativas de desenvolvimento, de bem-estar e de justiça?
Gabriela Cabaña — Vou tentar abordar a pergunta da forma que, como antropóloga, sempre faço, que é partindo da pesquisa e das pessoas com quem eu trabalho na minha pesquisa e também na minha militância, no ativismo. Acho que já estamos em um momento da história em que o impulso das energias renováveis e a esperada “revolução das renováveis” — que, no Chile, e também em muitos países da América Latina —, foram a grande promessa de crescimento verde. Já podemos dizer categoricamente que essa promessa não se cumpriu. Ou seja, essa expectativa de que desfossilizaríamos, de que estas energias são mais baratas, e “amigáveis com o meio ambiente” — que é uma frase muito usada na comunicação corporativa — de fato não cumpriram nenhuma das expectativas.
O que estamos vendo é um processo de expansão energética de todos os elementos da infraestrutura energética. Eu me surpreendo cada vez mais com o papel, a importância, o impacto ecossistêmico e a preocupação que as linhas de transmissão geram nas comunidades, que é algo que não é tão evidente quando pensamos em expansão energética, mas é uma das grandes intervenções ecossistêmicas que estão sendo feitas hoje em dia. Vimos como esses projetos de energias renováveis (podemos também questionar se são renováveis, se são verdes) estão impulsionando as mesmas dinâmicas e lógicas artificiais dos combustíveis fósseis. E estão sendo impulsionados nos mesmos territórios onde antes se formaram zonas de sacrifício fóssil, muito evidentes no Chile, especialmente no norte. Eu pude ver como as mesmas comunidades de pescadores, comunidades changas que vivem em zonas de alta saturação industrial, são as mesmas em que hoje vêm lhes vender a promessa de tornarem-se um pólo de desenvolvimento energético para o hidrogênio. Isso lhes é oferecido como uma boa notícia — o que para as pessoas que vivem ali é obviamente um insulto, pois ignora todo o dano que foi feito, toda a falta de remediação ambiental e de reparações, para agora virem passar um verniz verde por cima de toda essa destruição fóssil.
Estamos em um momento em que esse paradigma está instalado de maneira muito hegemônica, jogando ou empurrando para as periferias de uma maneira cada vez mais hostil qualquer oposição que a cidadania faz a essas infraestruturas — pintando-a de anticientífica; de ser preocupada, como se diz, “apenas com seu jardim”. Isso está alinhado com a dinâmica da virada autoritária, que é também política. Ou seja, acho que esses elementos são parte de um mesmo pacote que precisa ser analisado, no qual, lamentavelmente, todas essas conflitividades e impactos são invisibilizados. Insisto: cada vez mais se lhes dá uma aura de invalidação, de que é impossível se opor a qualquer projeto de energia renovável, mesmo que seja completamente monstruoso, mesmo que esteja orientado a exportar, por exemplo, hidrogênio verde via amônia para outro continente, ou que não tenha qualquer alinhamento a um tipo de transformação da matriz energética para matrizes mais descentralizadas, comunitárias, por exemplo, que não se dediquem somente a criar lucros para as empresas. Acho que são elementos, para o debate inicial, os da transição energética justa e popular, que essa é mais ou menos a agenda que conversamos no pacto,.
Alberto Acosta — Gabriela levanta muitos elementos fundamentais. Começaria resgatando as expansões energéticas. Na realidade, não há uma verdadeira transição energética; o que estamos vendo são expansões energéticas. A única coisa que eu anotaria a partir dessa interessante e ampla exposição é que, na realidade, nunca se tentou realizar uma transição energética que propusesse uma mudança do sistema. O que se buscou — a partir de algumas reflexões que provêm de muitos âmbitos — é deixar os combustíveis fósseis no subsolo. Por muito tempo temos recolhido mensagens que dizem que não podemos queimar todos os combustíveis fósseis, se não quisermos terminar carbonizando a atmosfera. Lembrem-se que a própria Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) já em 2012 dizia que, se não quiséssemos que a temperatura do planeta aumentasse em dois graus, seria preciso deixar no subsolo dois terços de todas as reservas de combustíveis fósseis. Esses números foram revisados: há dados para o carvão (85%) e para o petróleo e para o gás, que estão beirando os 58–59% para evitar que a temperatura suba 1,5 °C.
Acho que esse impulso teve algo interessante. Não gostaria de desprestigiá-lo totalmente ou deixá-lo de lado, porque ajudou a despontar o que seriam as energias alternativas. Teríamos que nos perguntar se são realmente alternativas, se são energias sustentáveis ou não. Mas houve uma espécie de impulso. Os grupos dominantes, as elites econômicas, políticas, transnacionais dos países industrializados e dos países no Sul Global, aparentemente encontraram um pretexto para recuperar o tempo perdido. E começamos a tolerar a ampliação de atividades extrativistas que, novamente, têm a ver com a exploração de petróleo, carvão e gás — ou dessas outras fontes, como o hidrogênio, a energia solar e a eólica. E tudo na chave de tentar recuperar o tempo perdido, sobretudo durante a pandemia do coronavírus.
Essa é uma segunda etapa em que esta transição energética corporativa vai perdendo o impulso, o encanto inicial desaparece, essa promessa que nunca se cumpriria. Mas havia uma promessa: vamos deixar para trás os combustíveis fósseis. E agora estamos em outra fase, muito mais complicada, especialmente quando o presidente Donald Trump ganha as eleições dos Estados Unidos e começa um governo que parte do negacionismo absoluto. Ele tenta forçar novamente os extrativismos baseados nos combustíveis fósseis. Ele tenta — porque isso também precisa ser dito — obter algum controle sobre as tecnologias dessas (mal) denominadas energias alternativas. E o que estamos vendo agora é uma mistura perversa. Por um lado, quer-se recuperar o tempo perdido; isto é, o crescimento econômico. Por outro, abre-se um cenário em que querem nos convencer de que encontraremos uma resposta ao ampliar não apenas as energias alternativas — que não são realmente alternativas —, mas também a exploração de petróleo.
Estamos vendo como essa é uma característica comum em muitos aspectos. Processos interessantes que estavam em marcha antes da pandemia, mas que ficaram para trás. Também seria preciso observar, antes da invasão da Rússia na Ucrânia, que leva também à busca de alternativas energéticas fósseis para fechar a lacuna que a Rússia deixou, principalmente no caso da Europa. E assim vemos como essas propostas de copiar fontes de energia e a estrutura energética vão se desfazendo. Em nossos países poderíamos mencionar muitos exemplos. Eu deixaria simplesmente registrado como no Brasil o governo do presidente Lula está, neste momento, impulsionando a exploração de petróleo na Amazônia, o que já nos prova isso de que estamos falando. O mesmo poderíamos dizer de algo que começou com outro governo progressista, como é o desenvolvimento de Vaca Muerta na Argentina, e o fracking, em Neuquén.
Estamos vendo que, com o passar do tempo, tudo o que resta é o discurso do verde, mas que na prática é mais do mesmo. Por isso concordo, e me parece fenomenal falar de expansões energéticas com uma refossilização do fornecimento energético. Se revisarmos os gráficos, como o crescimento da extração de petróleo, gás e carvão, verificamos que essas curvas só continuam subindo. E o excedente que se requer para fechar a oferta energética vem das outras fontes de energia. Ou seja, não há uma redução realmente do consumo, da produção e do consumo de energéticos fósseis, mas sim um incremento, e tudo em linha com a lógica do crescimento econômico permanente.
Nesse contexto, é preciso começar a analisar quais são essas supostas transições energéticas. A transição energética justa e popular ficou no discurso e nas boas intenções, porque os governos conseguiram impulsioná-la. Tínhamos esperança no governo colombiano, mas ele está decepcionando. Eu não nego os esforços realizados para fortalecer as comunidades energéticas, por exemplo. Claro, poderíamos também, para não cair em um cenário de frustração generalizada, recuperar algumas iniciativas, como essas comunidades energéticas, ou como a iniciativa que impulsionamos no Equador via consulta popular, para manter o petróleo no subsolo. Mas na prática isso não se cumpre, porque os governantes não estão dispostos a sair dessa corrida desenfreada pelo crescimento econômico permanente, e muito menos para impulsionar o que poderia ser uma economia pós-extrativista, que não dependa dos combustíveis fósseis.
Continuando com o tema da ideia desta suposta transição energética — que não é nem transição, como vocês estão dizendo, nem justa — e pensando especificamente no caso, Chile ou Indonésia, que produzem e têm grandes reservas de lítio e de níquel, e em outros países produtores e com grandes reservas desses minerais críticos e/ou estratégicos, nos perguntamos sobre esta tensão fundamental: por um lado, precisamos reduzir imediatamente as emissões de carbono — porque o planeta não aguenta mais carbono na atmosfera —, e enfrentamos uma crise existencial; e, por outro, sabemos que para produzir as tecnologias energéticas renováveis e que necessitamos para descarbonizar nossos sistemas energéticos, teremos que extrair e minerar até certo ponto. Há perguntas abertas nessa tensão: quanto vamos necessitar de cada material? Quais são as alternativas que podemos ter para reutilizar e pôr para circular esses materiais? Se adicionarmos mais uma camada de complexidade: hoje vemos que países como os Estados Unidos, a União Europeia e a própria China, em vez de estarem fazendo offshoring da extração de materiais no Sul Global, como sempre fizeram, estão começando a abrir minas em seus próprios territórios: fazendo um onshoring, ou fazendo acordos bilaterais com aliados políticos. Como navegamos esta tensão? Existe uma extração justa, ou uma extração pós-extrativista, na qual minimizamos a extração e seus riscos, e maximizamos seu bem público, articulando uma visão ecologicamente progressista das indústrias extrativas? Isso é possível, ou ainda estamos nos metendo na mesma história de criar soluções que na verdade não são soluções?
Gabriela Cabaña — Sinto que esta é a pergunta à qual sempre voltamos. Já tive várias interações com essa pergunta e várias respostas, e cheguei a uma resposta que não sei se é tão boa, mas é a que me parece coerente com o diagnóstico.
Antes disso, queria mencionar o que você disse sobre o onshoring da mineração, que me parece super interessante. Eu ouvi pela primeira vez há uns dois anos, lembro que estava na Bélgica em um evento. Estávamos falando da relação Norte-Sul Global, e, nesse contexto, uma pessoa que tinha sido deputado ou algo do tipo na Europa, disse que acreditava que o lítio destinado à Europa deveria ser minerado em Portugal e não no Chile. Me surpreendi com a propriedade em que disse aquilo. Vemos o que está acontecendo agora em Jadar, na Sérvia, super forte. E claro, eu disse, quando falamos de Norte-Sul Global, é preciso sempre especificar que há muitos Suis no Norte, muitos Nortes no Sul, e que todas essas divisões geopolíticas das fronteiras nacionais ficam pequenas para nós. Quando vemos os grandes privilégios, as concentrações de riqueza, o modo de vida imperial que existem em nossos países do Sul Global — e também como o Norte Global também tem suas próprias zonas de sacrifício, muitas vezes silenciadas, e claro, racializadas. É preciso sempre trazer esse elemento para a discussão, porque isso não é um argumento; isso não te valida a destruir certos territórios, porque eu senti que ele disse como: “Não, mas é aqui na Europa, logo, fim de discussão.”
Mas respeito o que você diz. Sempre digo que essa questão é um bolo bem grande que deve ser comido por partes. Vou me ater à energia porque é minha área, mas quando falamos de combustíveis fósseis e em sua substituição, também precisamos pensar em alimentação, por exemplo, que é todo um mundo que tem sua própria transição para fora dos combustíveis fósseis, que também é possível. Mas quando pensamos na energia, é preciso pensar: energia para quê? Para que são as demandas de energia? Para que se utiliza energia hoje em dia? Por exemplo, grande parte da energia é utilizada para o comércio internacional, para mover coisas em grandes velocidades de um lado do planeta para o outro, ou seja: para sustentar o capitalismo de alta velocidade como o conhecemos. Esses grandes sistemas elétricos são muito ineficientes e perdem grande parte da energia que geram no transporte, por conta de suas longuíssimas linhas de transmissão. É preciso começar a ver quais dessas partes, parte por parte, setor por setor, quais são realmente as que fornecem serviços às pessoas que todos e todas necessitamos para ter uma vida digna, para ter água potável, para ter eletricidade, para ter todos esses direitos. E quais simplesmente são custos que assumimos como dados, mas que não são realmente benéficos para a sociedade, que são um fardo que beneficia a muito poucos e provocam grande dano para a maioria.
Acredito que é aí que entra o trabaho político, um passo de cada vez.. Sempre que falo disso, chamo atenção a um estudo desenvolvido no Climate and Community Institute, chamado “Rumo a um Transporte com Zero Emissões, Maior Mobilidade e Menos Mineração”, que é um título super autoexplicativo. Nele, essa equipe modela diferentes cenários de demanda de lítio, diminuindo a quantidade de carros, aumentando a reciclagem; incluem um monte de parâmetros super concretos e reduzem muitíssimo a demanda de lítio somente para os Estados Unidos, que têm provavelmente a maior frota de veículos do planeta. E sempre digo: se quisermos ter qualquer conversa significativa que proponha às pessoas que estão nos lugares que serão afetados pela mineração, que possam dar um consentimento que seja realmente livre, prévio e informado — como os acordos deveriam ser —, essa conversa precisa acontecer no final, depois de ter feito todo o exercício de dizer: Ok, é isso que realmente precisamos. Porque dizer para as pessoas “Vamos destruir o ecossistema ou afetá-lo porque sim, porque em qualquer país todos queremos dirigir nossos automóveis elétricos”, não vai funcionar. Isso é garantia de conflito político. Não tem jeito de as pessoas dizerem: “Ah, está bem, eu vou embora, vou deixar o que foi toda a minha vida, onde viveram minha avó e meu avô”. É irrealista esperar — embora nós que apontamos essa necessidade de considerar o decrescimento sejamos acusados de irrealistas — que as pessoas não criem conflitos por causa disso.
O trabalho que realmente importa está nessa fase prévia de desenhar estes sistemas de produção que sejam de fato orientados para a suficiência. E aí eu fico feliz que, pelo menos na literatura do decrescimento, existam muitos modelos que demonstrem que sim, que é possível abastecer de maneira suficiente toda a população, reduzindo significativamente as demandas energéticas que existem hoje em dia. Eu me agarro a isso, para dizer: é aí que nossa briga precisa estar, ponto por ponto, nas coisas precisamos mudar nessas distintas áreas.
Alberto Acosta — Gabriela acaba de tocar em um tema medular: essas perguntas ao redor da energia. Mas talvez devêssemos deixar pontuado o fato de que se mantivermos a estrutura atual de produção e consumo, nos encaminharemos para uma senda sem saída, ou que vai provocar uma hecatombe para a maioria dos habitantes do planeta. Vamos continuar forçando o colapso ecológico que já estamos vivendo, o que poderia provocar dificuldades e problemas cada vez maiores.
Porque se aceitarmos o que dissemos no começo — que há uma expansão energética, ou ainda, expansões energéticas — continuamos consumindo em maior medida e em maior quantidade os combustíveis fósseis, o que significa que não há uma redução substantiva das emissões de gases de efeito estufa. E vimos que não há tecnologia adequada para impedir que essas emissões se mantenham. Esse é um primeiro ponto.
Em segundo lugar, a demanda de minerais se expande pelo planeta. Agora começam a haver explorações — ou a busca por elas — nos países do Norte Global, mas não é tão fácil, inclusive porque esses países encontram maiores dificuldades, inclusive devido às regulamentações existentes. O caso de Portugal é um exemplo, na Alemanha também, e não conseguem avançar tanto. E não nos esqueçamos que essa voracidade pelos recursos minerais está decolando, abrindo a porta inclusive ao que poderia ser a mineração no espaço. Há empresas que estão se configurando para acessar os minerais nas primeiras fases de formação dos asteroides. Já há grandes empresas que trabalham nesse sentido e estão pensando que, eventualmente, poderiam começar a extrair minerais um pouco mais longe, não só dos asteroides próximos, mas da lua e talvez de outros planetas. Isso não é ficção científica. Venho recolhendo material a respeito há alguns anos, de como se poderia estar buscando uma nova fase de extrativismo fora das fronteiras da atmosfera terrestre, algo que já é vendido como uma vantagem. Os destroços ocorrerão externamente, mas a ideia é continuar mantendo a mesma lógica da nossa civilização, que é a civilização do desperdício, uma civilização que está desumanizando a humanidade e desnaturalizando a natureza.
Acho que esse é o ponto de partida. E aí concordo plenamente contigo: é preciso falar dos Nortes e dos Suis nos distintos lugares. Em nossos países há Nortes, no Sul há Nortes, e no Norte há Suis. Mas a lógica é a de terceirização, sociedades cujo bem-estar é conquistado sacrificando a vida em outras regiões — seja a de seres humanos ou da natureza. E, nesse cenário, as zonas de sacrifício se reproduzem mais e mais. E o grave e preocupante é que elas são aceitas a título de se alcançar o desenvolvimento — que, para mim, é um fantasma; a própria miragem da ilusão do progresso.
Além dos asteroides, Alberto, estão desenvolvendo a mineração em mar profundo. É uma loucura.
Alberto Acosta — Parece, entre aspas — não me entendam mal — até lógico que se busque no mar. O que já me chama a atenção é que estejamos pensando já em uma exploração mineral fora das fronteiras.
Gabriela Cabaña — Isto é um sintoma da mesma doença, de não reconhecer os limites. É como a própria doença, incapaz de reconhecer limites de qualquer tipo: naturais, sociais. Aceitar que algo acaba parece incompreensível. É preciso ir além, inclusive, da fantasia mais louca. Por isso todos os milionários querem viver para sempre. É toda uma coisa da negação dos limites que eu sinto que está em um nível filosófico subjacente a tudo isto. Essa é minha interpretação.
Alberto Acosta — Concordo contigo. E isso é alimentado por tudo que a tecnologia traz. A tecnologia “resolve tudo”. Não importa, sigamos adiante, no caminho encontraremos uma solução. E em vez de a tecnologia ser uma ferramenta de emancipação, está se tornando uma ferramenta de dominação.
Se me permitem pôr o neurônio para correr um pouco, acho que o que estamos vivendo é uma espécie de Idade Média de alta tecnologia. Não concordo com Varoufakis quando ele diz que o capitalismo terminou e estamos em um tecno-feudalismo. Não, é um capitalismo tecno-feudal, que é outra coisa. Um tecno-feudalismo capitalista é o mesmo capitalismo. O capitalismo demonstrou que tem uma enorme capacidade de mutação e adequação, mas a essência do capitalismo, esta lógica de acumulação do capital, está sempre presente. É como um ciclista, que, se deixar de pedalar, cai. A mesma coisa com o capitalismo: se não acumula mais e mais, ele desaparece.
O ecossistema midiático em que vivemos, no qual não há nenhum tipo de integridade informativa, está promulgando essas sociedades de virada à direita, e alimentando-o com esse tipo de autoritarismo.
Alberto Acosta — Autoritarismos no plural. É autoritarismo policial e militar para reprimir, o que estamos vendo há tempos no Equador. Há um autoritarismo legal e jurídico também, através de múltiplos mecanismos. Há um autoritarismo midiático, cultural, porque também nos vendem essa ideia de que é o caminho para conseguir o progresso, quando é um caminho sem saída. E um autoritarismo profundamente ideológico, e em nossos países, tremendamente racista.
Uma das razões pelas quais queríamos ter esta conversa com vocês, é que ambos sempre dão um passo atrás e voltam ao motivo da questão. Essa ideia de qual é o uso da energia, dessa expansão energética… Tem um uso muito claro que é pouco discutido: muitos desses minerais que pensamos em extrair são usados para construir equipamentos militares e manter essa linha de dominação.
Mudando o enfoque, queríamos perguntar-lhes sobre esta ideia de decrescimento e pós-extrativismo a partir de uma perspectiva que Alberto levantou em alguns de seus trabalhos: a falta, ou escasso atrativo simbólico que estes e outros conceitos têm, para nos referir às nossas alternativas e outros futuros, que nos permitem pensar em uma justiça social vinculada à justiça ecológica. Em termos de estratégia de comunicação pública: do que precisamos para que estes dois conceitos sejam não só incorporados por movimentos sociais, mas também por uma parte mais ampla da população? Que se transformem em ferramentas conceituais e práticas para pensar em outras alternativas?
Gabriela Cabaña — Esse é um debate contínuo. Sinto que me formei muito no movimento decrescimentista europeu, e lá isto também era um debate. Sempre voltamos a ele, como a roda que gira. Sempre há alguém que diz: decrescimento, adoro o diagnóstico e a proposta, mas o termo não me convence. Sobre isso, tenho duas posturas.
Primeiro, gosto que seja uma palavra que gere incômodo. Acho que tem algo bom, porque é um conceito que é difícil de cooptar e que é difícil de esvaziar de conteúdo. Vimos como o desenvolvimento sustentável, o crescimento inclusivo, e uma série de slogans se acomodaram muito facilmente sob as dinâmicas expansionistas do capitalismo e da mercantilização da natureza. O decrescimento tem essa armadilha que o torna muito difícil de ser incorporado até agora. Pelo menos eu não vi que tenha sido realmente incorporado em discursos que mantenham o status quo. Eu tomaria isso como uma vantagem.
Agora, a nível do marketing, do que se vai contar às pessoas ou propor nas conversas é outra coisa; eu, nas conversas políticas que tenho com minhas companheiras e companheiros aqui não falo de decrescimento; não é um conceito que apela à sensibilidade. Mas sim, acho que as propostas do decrescimento são muito alinhadas com uma ideia de que também gosto muito, que é a ideia de abundância radical que o decrescimento tem. Pensando na questão dos carros: somos uma sociedade super centrada no automóvel por toda a parte, tanto no Chile, quanto em muitas outras partes da América Latina. E as pessoas que usam o automóvel não o fazem necessariamente porque são fanáticas pelo automóvel, mas sim porque são pessoas que dizem: “Olha, a verdade é que onde eu moro não tem transporte público, não posso andar de bicicleta, é super perigoso”. Ou seja, há uma série de restrições que te empurram para o uso do automóvel. Você fica preso a esse modelo.
Quando imaginamos que todo mundo vai ter um automóvel, pensamos: “Ah, que todo mundo tenha a comodidade de andar de automóvel”. Mas isso é falso, porque quanto mais esse modelo privatizado se expande, menos real é essa comodidade, é uma ilusão vender esse modelo. Essa abundância falsa é uma abundância superficial. Mas se você vai a um nível mais profundo da realidade, ela não se sustenta. Se pensamos, por outro lado, em cidades em que todo mundo usa o transporte público, caminha ou anda de bicicleta, essa é uma abundância muito mais autêntica — porque quanto mais se expande, mais pode ser desfrutada por mais pessoas. Oferecemos o decrescimento como uma alternativa que não vai te tirar o carro, mas sim te dar mais tempo, mais tempo livre, mais saúde. Os atropelamentos são uma das principais causas de morte de crianças no mundo. É uma loucura, um crime que naturalizamos.
O que temos é uma mudança que nos proporcionará um enriquecimento de vida em um sentido profundo, não necessariamente em um sentido monetário — apesar de que podemos falar de outras propostas, como a Renda Básica Universal por exemplo, sobre a qual conversamos com Alberto há muitos anos. É algo que vai nos oferecer uma mudança de sentido da vida cotidiana, em que a vida vai ser mais rica em todos estes outros elementos. Acho que aí esse conceito de abundância radical, que é uma abundância distinta do capitalismo, uma abundância mais autêntica, mais em sincronia com os ciclos ecológicos, com as realidades vividas, vai trazer esse horizonte. Ele deve ser o caballito de batalla, como dizemos no Chile, que devemos ter quando quisermos nos meter nesses sentidos cotidianos das pessoas com quem compartilhamos, e com quem queremos construir.
Alberto Acosta — Devo reconhecer mais uma vez que adoro falar com a Gabriela. Concordo e tenho pontos de diferença. Concordo perfeitamente quando ela diz que o conceito do decrescimento precisa ser defendido enquanto seu potencial, de não poder ser cooptado. Mas, na prática, isso não nos ajuda a vender a ideia de outra forma de vida. Porque é um conceito, como diz Koldo Unceta, um brilhante economista basco, um conceito obus: destrói, não propõe. Nos diz o que não queremos. O mesmo que os “pós”: pós-desenvolvimento, pós-extrativismo, pós-crescimento. O “pós” nos diz o que não queremos. Mas como dar conteúdo ao que queremos? E simplesmente para continuar a discussão, consciente do risco que há de que se esvazie de conteúdo qualquer conceito que se apresente, que se vampirize o conteúdo, como um vampiro que chupa a essência.
Uma proposta muito mais interessante é a do Bem Viver ou Viver Bem, os Bons Viveres ou os Bons Conviveres. Que pode ter expressões diversas, a depender do lugar. A frugalidade feliz de Pierre Rabhi, filósofo francês de origem argelina. Também todas as visões de convivialidade de Ivan Illich. Ou seja, podemos encontrar em diversas partes o Bem Viver ou os Bons Conviveres provenientes dos mundos das culturas indígenas. E também podemos nos encontrar com visões muito interessantes, como com o kyosei no Japão, o ubuntu na África, o Swaraj na Índia.
O interessante aqui é perguntar como podemos dar uma roupagem atrativa a esses conceitos. Que há o risco de que o roubem e lhe esvaziem o conteúdo, há; mas essa é a tarefa, porque não vamos ficar sozinhos entre os decrescimentistas. Precisamos de gente que entenda que o decrescimento não é sinônimo de crise econômica, mas sim de transformação de toda a sociedade no âmbito produtivo e social. E é algo que não se pode fazer da noite para o dia. Eu sempre recomendo, nesse caso, um artigo de 2008 de Enrique Leff, brilhante pensador mexicano, que fala do decrescimento e que nos diz que trata-se de um processo, uma transição, e não de simplesmenteexplodir pelos ares o sistema, e cair em um vazio onde o caos da situação podem ser muito piores.
Uma primeira questão que me parece fundamental é como falamos do crescimento econômico. Começaria demonstrando que o Produto Interno Bruto (e o PIB per capita) é uma enorme mentira. São indicadores falsos. Uma segunda aproximação seria aquilo que não podemos imaginar: um crescimento econômico permanente que não existe, pois há limites. Sempre me vem uma cifra à cabeça: de 2011 a 2013, a China consumiu 6,615 bilhões de toneladas de cimento, 1,5 vezes mais que os Estados Unidos em todo o século XX. Não há planeta para tanta cobiça. Não há planeta para tanta destruição. Como cantava Celia Cruz, no hay cama para tanta gente. Temos que colocar limites.
Outra coisa que conversamos com a Gabriela em algumas das oficinas que ela organizou, passa pelo fato de que ter mais não nos faz mais felizes. Aí é preciso incorporar a questão da economia da felicidade, o paradoxo de Easterlin, que serviu de base para fazer estudos em muitíssimos países. Não só nos países ricos: no Chile mesmo há um estudo que vi há uns dois anos, onde se repete a mesma coisa: a economia cresce, mas o índice de felicidade se mantém estável. No Japão, inclusive, o índice de felicidade diminui. Podemos discutir se o índice de felicidade é a melhor opção ou não, mas esse é outro tema.
Continuando por esse caminho e aproveitando as intervenções anteriores sobre como concretizar essas alternativas: que papel você vê o Estado desempenhando em um modelo alternativo real que não esteja atrelado à ideia de limites? Um modelo que não seja definido por uma busca desenfreada e supostamente infinita pelo desenvolvimento? Que papel o Estado deveria desempenhar nessa alternativa?
Alberto Acosta — Que papel devemos desempenhar frente ao Estado? A primeira coisa: não podemos acreditar que o Estado é um ente neutro. O Estado representa os interesses dos grupos dominantes da sociedade. Pode haver momentos em que certos partidos ou grupos políticos consigam ter uma influência no Estado, mas ele mesmo desempenha um papel de dominação. A grande tarefa não é simplesmente “invadir o Palácio de Inverno”, invadir o Estado e acreditar que daí se resolvem os problemas. Mas sim como vamos construindo de baixo para cima outras lógicas de Estado. E essa é uma tarefa mais complexa e difícil. Como recuperamos o comunitário para encontrar respostas a todas as questões que tratamos? Por exemplo, o tema da energia. Temos que pensar comunitariamente como vamos resolver o tema do fornecimento, uso e compartilhamento de energia.
Mas isso, de uma perspectiva comunitária, me leva a uma questão que, como disse Aníbal Quijano, é como podemos obter tudo o que é possível do Estado — dentro do Estado, com o Estado, contra o Estado e fora do Estado. Esta é uma visão que precisa se tornar realidade. Há muitas experiências em partes distintas do planeta. Não é fácil.
E isso nos leva a uma questão que para mim é fundamental: é necessário estar atento ao que já existe no mundo. O Pluriverso já está vivendo, já está pulsando. Há multiplicidade de propostas de todo tipo no planeta. A tarefa aqui é como podemos conhecê-las, aprender com essas propostas, intercambiar experiências e criar redes de resistência e simultaneamente de re-existência. Eu acho que esse é um dos grandes desafios das questões muito mais complexas, mas muito mais interessantes.
Gabriela Cabaña — Alberto, estou super de acordo. Também me perguntam muito a respeito do Estado e eu sempre me esquivo, porque sou muito cética em transformar, em ver o Estado como uma ferramenta para fazer do mundo algo menos hierárquico, quando o Estado é ele mesmo uma instituição hierárquica. Tenho essa distância e me alinho muito mais talvez com uma visão mais comunalista, mais de for a, com a intenção de criar a alternativa até que essa alternativa seja suficientemente forte e autônoma para que se sustente por si mesma. Me inspiro muito nas ideias do antropólogo David Graeber sobre a prefiguração. Isso é o que para mim faz mais sentido.
Mas também ao mesmo tempo vejo e digo: vivo em um Estado, para o bem ou para o mal. Também vejo que há formas nas quais o Estado pode apoiar ou não, e que ter um Estado que faça as coisas bem pode fazer uma diferença a nível das lutas comunitárias, territoriais. E só vou dar um exemplo a respeito do Chile que me parece muito interessante. Aqui no Chile existe uma lei a respeito do cuidado da borda costeira por povos originários, a Lei 20.249/2008 que Cria o Espaço Costeiro Marinho de Povos Originários (ECMPO), chamada também Lei Lafkenche.
Há mais ou menos 15 anos aprovou-se uma lei que dá a possibilidade a comunidades indígenas de criar áreas marinhas protegidas, na qual essa comunidade, em um reconhecimento de seu uso consuetudinário tradicional do território, fica encarregada de administrá-lo. E essa lei foi uma vitória super importante, fruto de muitos anos de trabalho e impulso das comunidades de base lafkenche principalmente.
Os povos indígenas, obviamente, começaram a solicitar esses ECMPO e muitos já lhes foram concedidos legalmente. E isto gerou toda uma resposta, por exemplo, por parte das empresas aquícolas que cultivam salmões — que fazem plantação no mar — contra esta lei, dizendo que não, que eles estão perdendo, que já não estão ganhando tanto dinheiro. E no fundo, isso é um exemplo muito bom de como uma lei, um pouco inesperadamente, fez uma devolução efetiva do poder. Percebemos que foi efetiva porque as partes que concentravam o poder estão irritadas e estão ativando muitíssimo lobby político para derrubar essa lei. E ter um governo que proteja essa lei é muito importante, porque no dia em que o governo decidir que essa lei tem que cair, é provável que essa lei caia e todo esse respaldo legal para que essas comunidades continuem recuperando e cuidando de seu mar, reparando uma dívida histórica tremenda, caia também. Aí sim importa no final que haja um Estado que acredite na legitimidade desta lei e que possa fazer algo a respeito, e no dia de amanhã diga: “Eu vou lhe impor entraves, vou fazer outra lei que a revogue”. Isso sim vai ser um corta-fogo importante para processos de regeneração territorial comunitária de base. Lutar pelas pessoas que precisam tomar decisões no governo em relação a essas questões de nível intermediário, importa. É verdade, no Chile não pudemos mudar a Constituição — isso é outra conversa —, mas essas leis mais de nível intermediáriotambém importam. Aí está o tema também de como identificamos estas clivagens que um pouco inesperadamente podem nos abrir as portas para outras possibilidades e podem criar mais terra fértil para que estas alternativas comunitárias se fortaleçam.
Alberto Acosta — Isso é exatamente o que digo quando estou falando dentro do Estado e com o Estado. É preciso tirar o máximo proveito possível. Mas eu, com os anos que tenho — vários, já —, aprendi que não podemos confiar que as soluções venham do Estado. Eu venho do lado negro da Força. Eu acreditava no desenvolvimento, acreditava no progresso, acreditava no crescimento econômico permanente. Eu vendia petróleo, era gerente de marketing da empresa estatal de petróleo. Eu era uma pessoa que estava profundamente convencida de que o que é preciso fazer é controlar o Estado e impulsionar uma transformação a partir dele. Inclusive escrevi um livro chamado O Estado como solução, em 1997. Menos mal que não o coloquei como a solução, porque aí não sairia de casa de tanta vergonha. E agora já não acredito no Estado. É preciso repensar o Estado, mas, como diz a Gabriela, é preciso aproveitar esses nichos e esses espaços sem cair na armadilha de que a solução nos será dada pelo Estado. Eu já deixei de lado essas leituras dogmáticas, ortodoxas, que tanto dano nos fizeram. Temos que ser muito criativos, temos que ser muito imaginativos e gerar o máximo possível de resposta a partir do comunitário.
Foto: Reprodução Youtube United Nations University – EHS












