
A luta pelo clima não é só ecológica; transformará o capital
A Elefante está lançando Capital fóssil, de Andreas Malm, livro que faz uma viagem até a Inglaterra do século XIX para entender a origem do aquecimento global. Ao trocar as rodas-d’água pelos motores a vapor, o capital aumentou os lucros e mudou o mundo. Essa entrevista foi publicada por um veículo da Catalunha à época da chegada do livro ao mercado europeu.
Por Alberto Prieto
Publicado em viaempresa.cat
Em Capital fóssil, o pesquisador e ativista Andreas Malm identifica a queima de combustíveis fósseis como a origem tanto da atual emergência climática quanto das tendências passadas e presentes da acumulação capitalista. Ele conversa com a gente sobre soluções de longo prazo, ativismo climático e o papel do Estado na transição ecológica:
Como o uso de combustíveis fósseis e sua ligação com algum tipo de acumulação originária levam ao atual momento do capitalismo?
A investigação histórica em Capital fóssil é uma tentativa de responder à questão de como fomos apanhados nesta confusão e como fomos colocados neste caminho desde o início. Analisamos a indústria britânica do início do século XIX, quando ocorreu aquele momento de transição das fontes de energia tradicionais, mais precisamente, a água (o que hoje chamaríamos de renováveis), para a energia a vapor, movida a carvão. Esse tipo de adoção generalizada da energia a vapor colocou as economias capitalistas num caminho de crescimento no uso dos combustíveis fósseis, e é nesse caminho que ainda estamos. Tem sido uma espiral de cada vez mais carvão, petróleo e gás, em mais partes do mundo. Isso não significa que a situação seja a mesma do século XIX. Agora, é mais um caso das grandes empresas do ramo de combustíveis fósseis fazendo de tudo para continuar se expandindo, enquanto o que precisamos fazer é detê-las. Isso tem que acabar.
Como essa relação funciona hoje, com os novos conceitos centrais do capitalismo neoliberal?
A tragédia é que vivemos a maior crise da história da humanidade e precisamos de uma força social que possa intervir e transformá-la. A força que historicamente conseguiu fazer isso foi a classe trabalhadora organizada, mas ela está mais fraca do que nunca e, portanto, está mais difícil do que nunca mudar a sociedade. Isso significa que a recomposição da classe trabalhadora seria uma ótima notícia, mas a desindustrialização teve um impacto muito pesado sobre ela como força social coerente.
O fim da disponibilidade de combustíveis fósseis muda as perspectivas de crescimento do capitalismo moderno?
O fim dos combustíveis fósseis por falta de recursos é uma perspectiva muito distante. A conversa sobre o pico do petróleo por volta de 2007 foi completamente equivocada. O problema não é que os combustíveis fósseis estejam se esgotando, mas que as empresas querem extrair o máximo possível deles e, se conseguirem, o planeta vai ferver.
Em um contexto de empresas que estão perto de ser grandes demais para falir, qual é o caminho para acabar com isso?
As empresas privadas de carvão, petróleo e gás deveriam ser nacionalizadas. Não podemos mais ter propriedade privada sobre combustíveis fósseis. Não podemos deixar que os agentes do mercado se apropriem de petróleo, gás e carvão e obtenham lucro. Isso precisa acabar. As empresas que já são estatais — sabemos que são muitas — precisam de novas diretrizes e instruções de seus governos para descontinuar a produção de combustíveis fósseis e fazer algo diferente, como limpar a bagunça que criaram. Essa é uma tarefa muito difícil, um grande desafio, porque estamos falando de empresas extremamente poderosas, com um grande volume de capital. Mas essas empresas não podem continuar existindo como produtoras de combustíveis fósseis. Elas podem, e devem, ser colocadas sob controle público e transformadas em serviços públicos para a limpeza da atmosfera, por exemplo. E eu acho que essas ideias de nacionalização da indústria de combustíveis fósseis estão entrando na discussão. Algo como a decisão judicial na Holanda, determinando que a Shell deveria reduzir as emissões em 40% até 2030, aponta para essa solução.
Existem soluções de mercado para a emergência climática?
Não creio que possamos afirmar que o fim dos combustíveis fósseis e a adoção de outras medidas claras para resolver a crise climática necessariamente ponham fim a todas as relações de mercado. Isso certamente significaria um grau muito, muito maior de controle público sobre o que acontece nas economias. Muito mais intervenção estatal, regulamentação, propriedade, investimento… Mas isso não quer dizer que não seja possível ter outros tipos de esferas de mercado. O importante não é dizer que sabemos de antemão exatamente como será a sociedade. Em vez disso, precisamos levantar demandas básicas e garantir que essas demandas sejam atendidas. E apenas levantando demandas muito simples, como “chega de novos investimentos em combustíveis fósseis”, já entramos em conflito com interesses poderosos e arraigados que querem prosseguir com novos investimentos nessas áreas. Temos um conflito aí e precisamos vencer. E se vencermos, daremos início a um processo no qual talvez haja outros tipos de conflitos. E esse processo pode nos levar além do modo de produção capitalista.
Você tem afirmado repetidamente que a propriedade pública não leva necessariamente a um melhor uso desses recursos. Que medidas devem ser tomadas para pressionar os estados não apenas a nacionalizar, mas também a uma mudança de paradigma?
Não creio que exista uma estratégia única; creio que deveria haver uma ampla gama de estratégias do movimento climático para estabelecer essa pressão, inclusive dos próprios trabalhadores. É possível imaginar trabalhadores em algumas dessas indústrias [de petróleo, gás e carvão] exigindo sua conversão. Isso não aconteceu em larga escala, embora eu tenha acabado de chegar da França [2021] e haja um caso de um sindicato em uma refinaria de petróleo da Total exigindo que ela fosse convertida em algo completamente diferente, para que, em vez de contribuir para a destruição do planeta, talvez pudesse ajudar a reabilitar a atmosfera. Tenho camaradas da indústria automobilística na Suécia argumentando que poderíamos produzir algo diferente nas fábricas de automóveis, pois são aparelhos industriais incrivelmente versáteis que poderiam facilmente mudar. Vimos isso durante a pandemia, quando as fábricas de automóveis começaram a produzir equipamentos para hospitais. Poderíamos ter fábricas de automóveis migrando para a produção de trens, bondes, turbinas eólicas ou algo que seja necessário para a transição.
Como você vê a cooperação entre o movimento contra o aquecimento global e as instituições?
Acho que o projeto de Bernie Sanders nos Estados Unidos e de Jeremy Corbyn no Reino Unido eram muito promissores, mas ambos perderam. Isso não significa que não devamos tentar novamente. Não existe uma estratégia que nos tenha levado à vitória, então não podemos dizer que, porque essas candidaturas perderam, não devemos tentar novamente. É possível ter avanços eleitorais que possam gerar uma relação produtiva com os movimentos sociais e permitir darmos passos na direção certa.
Em alguns dos seus trabalhos anteriores, você fala sobre um projeto de “comunismo ecológico de guerra”. Poderia falar mais sobre isso?
A ideia do comunismo de guerra, como esboçada de forma bastante sucinta em meu livro anterior, é delineada em diálogo com a analogia da Segunda Guerra Mundial, muito comum em discussões climáticas, pelo menos na esfera anglófona. A ideia é que, assim como o governo dos Estados Unidos concentrou todos os esforços em derrotar Hitler durante a guerra, convertendo toda a produção industrial na fabricação de equipamentos militares, nós poderíamos fazer o mesmo agora. Devemos nos concentrar em derrotar a ameaça de uma catástrofe climática total e converter a produção para esse fim.
É uma analogia útil, mas apresenta algumas fragilidades; uma delas é que a mobilização nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial não teve como objetivo depor uma fração importante da classe dominante. Em vez disso, as montadoras, que foram temporariamente obrigadas a produzir outros bens, lucraram com a guerra e sabiam que se beneficiariam com a expansão do poder ianque. O que temos hoje é uma situação na qual enfrentamos uma emergência cada vez mais profunda, com os interesses da classe capitalista muito centralizados, comprometidos em continuar com os negócios como sempre. Nosso período tem algumas semelhanças com a situação do comunismo de guerra, em que, na Rússia, após desastres consecutivos, foi necessário fazer mudanças fundamentais nas relações de propriedade, nacionalizar certas indústrias, assumi-las e usar suas capacidades produtivas para satisfazer algumas das necessidades básicas da sociedade.
Isso não quer dizer que o período do comunismo de guerra na Rússia tenha sido uma espécie de sociedade modelo, mas serve como uma metáfora para essa situação, em que há uma emergência crescente e é necessário que um Estado intervenha e aproveite as capacidades produtivas da sociedade para lidar com essa emergência de uma forma radical que pode muito bem incluir nacionalizações emergenciais.
Isso seria um grande choque para a própria organização dos meios no capitalismo. Você acha que um choque tão grande poderia ser a faísca para um novo modo de produção?
Possivelmente. Você pode imaginar esse tipo de cenário se desenrolando. O melhor recurso que tenho para refletir sobre essa questão é um romance chamado O Ministério do Futuro, de Kim Stanley Robinson. Ele mostra como a transição ecológica, se acontecer neste século, será confusa, turbulenta e cheia de contradições; mas provavelmente nos levará para longe do capitalismo como o conhecemos e além, para algo como um novo modo de produção. Esse será um processo incrivelmente multifacetado, cheio de antagonismos.
Será diferente do capitalismo como o conhecemos e também do projeto socialista tradicional.
Sim, sim, com certeza. A situação econômica é muito diferente de quando o socialismo clássico surgiu, então obviamente será muito diferente. Não há movimento da classe trabalhadora com partidos da classe trabalhadora como o que houve no início do século XX, e toda a dinâmica global seria diferente. A maior diferença talvez seja que as convulsões sociais que ocorreram naquela época não tiveram nada a ver com uma crise ecológica global.
Não existe um movimento de classe como antes, mas você acha que o ativismo climático precisa de uma disciplina ecologista? Algo como uma classe trabalhadora climática?
Esta é talvez a maior e mais difícil questão de todas: quem é o sujeito dessa transição? Uma classe trabalhadora climática parece um ótimo conceito, mas não vejo exatamente o que seria isso. Já falamos sobre conversão, mas, em geral, os trabalhadores da indústria de combustíveis fósseis têm interesse em manter seus empregos e suas empresas. Eles não estão se tornando um sujeito climático nesse sentido. Isso é bastante difícil de prever. Uma temática climática no Norte Global poderia se basear no conhecimento sobre a crise climática; na experiência do impacto climático; na solidariedade com as pessoas no Sul Global… Ou poderia potencialmente se basear em interesses materiais, como a segurança no emprego vinculada a uma transição climática. Não é impossível que esses fatores se tornem mais eficazes nos próximos anos, e algo como uma temática climática poderia surgir deles.
O movimento climático precisa inserir a crise climática nas lutas contra outras fontes de desigualdade?
Sim, com certeza. A luta pelo clima não pode vencer sendo apenas uma luta ecológica; ela precisa se somar a todas as outras lutas sociais. Sem isso, não há futuro.
Em geral, você não concorda com leituras utópicas da tecnologia. Qual é então o papel da tecnologia, como força produtiva, nessa mudança?
Sou contra o tipo de corrente tecno-otimista que se limita a aplaudir o desenvolvimento tecnológico, mas também sou contra a posição de que a tecnologia moderna como tal seja o problema. Algumas tecnologias são realmente ruins e deveriam ser eliminadas, mas precisamos de outras, como energias renováveis ou dispositivos dedicados à limpeza da atmosfera. Precisamos estar cientes dos perigos extremos de alguns tipos de tecnologia, mas não rejeitar totalmente a modernidade tecnológica como tal. Se quisermos restaurar a estabilidade climática, precisamos de algumas das tecnologias mais avançadas.
Você tem se manifestado veementemente contra a noção de Antropoceno. Como assim? Como isso pode ser vinculado a tendências ecorreacionárias?
Minha crítica ao Antropoceno é que a ideia de que a Humanidade é o problema tende a implicar que o problema é o número de humanos no planeta. Isso pode levar ao próximo passo, que é a ideia de que a crise ecológica está sendo impulsionada pela superpopulação e pelas altas taxas de fertilidade no Hemisfério Sul, e o próximo passo pode ser que precisamos de menos pessoas em países pobres. Esse é um caminho muito perigoso e pode constituir um elo com o fascismo ecológico. O problema com o Antropoceno não é o termo em si, mas a narrativa que sugere que todos os humanos são a causa dessa crise. Prefiro a narrativa associada ao termo “Capitaloceno”, que é um investimento de esperança na possibilidade de a Humanidade ser diferente. Se você afirma que o problema não é a Humanidade em si, mas uma maneira específica de organizar nossas relações com o resto da natureza por meio do capital, você mantém a esperança de que poderíamos nos organizar de outra maneira.
Foto: Fred Dugit