As mulheres sempre foram médicas (para além dos livros de medicina)
A Elefante está lançando Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história de mulheres que curam, livro de Barbara Ehrenreich e Deirdre English, com tradução de Júlia Rabahie. Está em pré-venda com desconto em nosso site. Trata-se de um clássico dos estudos de gênero que questiona a posição subalterna das mulheres nos cuidados de saúde na segunda metade do século XX. As autoras, dos Estados Unidos, publicaram o texto originalmente ainda nos anos 1970, mas esse lançamento também vem com a introdução que elas escreveram numa segunda edição, em 2010, que republicamos parcialmente abaixo:
Introdução à segunda edição: contextualizando
Bruxas, parteiras e enfermeiras é um texto da segunda onda do feminismo nos Estados Unidos, publicado originalmente em 1973. Relendo-o quarenta anos depois, nos surpreendemos com sua assertividade, alcance e precisão, dada a escassez de materiais com os quais originalmente tivemos de trabalhar. Ao mesmo tempo, é um pouco constrangedor notar que algumas afirmações que fizemos à época carregam, hoje, um tom exagerado e panfletário. De lá para cá, muita coisa mudou, tanto historicamente quanto na nossa abordagem acadêmica, o que torna necessário lembrar que este livro foi escrito em meio à raiva e à indignação. Se algumas das fontes de nossa raiva agora parecem antiquadas, isso se deu por causa de trabalhos como Bruxas, parteiras e enfermeiras e do movimento que o originou — do contrário, poderiam ainda ser atuais.
No início da década de 1970, as feministas estavam se conscientizando sobre a variedade de injustiças e abusos sofridos por mulheres no sistema médico. Como profissionais da saúde, as mulheres foram majoritariamente confinadas aos papéis subalternos de enfermeiras e cuidadoras. Como pacientes e consumidoras da assistência médica, fomos submetidas a tratamentos insensíveis e arriscados: histerectomias [remoção do útero] desnecessárias, partos supermedicalizados, esterilizações involuntárias e uma quase universal presunção de médicos homens.
Não fomos criadas para conhecer nosso próprio corpo ou para participar de decisões sobre os cuidados dirigidos a nós mesmas. As mulheres de nossa geração [nascidas na década de 1940] foram meninas que cresceram pensando em seus órgãos sexuais como regiões “lá de baixo” que não deviam ser mencionadas. Na revista Ladies’ Home Journal, que muitas de nossas mães liam, a coluna médica se chamava “Tell Me, Doctor” [Me diga, doutor]. Mulheres que faziam muitas perguntas ou insistiam em certos assuntos, como o parto “natural”, por exemplo, costumavam ser rotuladas nos registros médicos como não cooperativas ou neuróticas. Queixas sérias eram facilmente descartadas como “psicossomáticas” e atribuídas à suposta sugestionabilidade feminina. No procedimento cirúrgico padrão para o tratamento de câncer de mama, a paciente era submetida a uma biópsia e, então, se o resultado fosse positivo para um tumor maligno, seguia às pressas para uma mastectomia [remoção do seio] radical, sem ao menos ter sido despertada da anestesia para discutir suas opções.
Um dos nossos primeiros projetos no incipiente “movimento de saúde da mulher” foi confrontar o desconhecimento das mulheres sobre o nosso próprio corpo. Em Boston, um grupo de feministas lançou uma série de cursos do tipo “Conheça seu corpo”, que tinham como alvo o público em geral — e que foram o cerne daquilo que se tornaria o inovador livro Our Bodies, Ourselves [Nossos corpos, nós mesmas], de 1970 —, e nos mobilizamos para montar um programa similar na cidade de Nova York. Um pequeno grupo se reuniu e estudou manuais médicos para preparar apresentações sobre alguns temas, como ciclo menstrual, gravidez e menopausa. Hoje, obviamente, qualquer um pode aprender sobre isso em cursos de ensino médio, em revistas femininas ou na internet. Naquele tempo, porém, mulheres lotavam nossas aulas noturnas, sedentas por qualquer informação que tivéssemos a oferecer.
Começávamos a suspeitar que nem sempre tinha sido assim — ou seja, que em outros momentos da história e em outras circunstâncias as mulheres deviam ter sido mais empoderadas a respeito do nosso corpo e do autocuidado. Afinal, a tecnologia e a profissão médicas que monopolizaram esses temas eram avanços relativamente recentes e, de alguma maneira, nossas ancestrais tinham, ainda que em condições difíceis, contornado os desafios do ciclo de vida feminino. Como nós duas nos conhecemos na década de 1970, quando éramos professoras em uma nova unidade da Universidade do Estado de Nova York, a Faculdade de Old Westbury — que, à época, era destinada a estudantes “não tradicionais”, majoritariamente com vinte e poucos anos ou mais, negros ou hispânicos —, tivemos a oportunidade de satisfazer nossa curiosidade. O campus era então um ambiente efervescente para o debate político em relação a classe, raça, gênero e “políticas de identidade”, com Florence Howe, que lançou a editora independente Feminist Press, trabalhando para desenvolver o que foi um dos primeiros programas de women’s studies [estudos sobre mulheres] nos Estados Unidos. Encorajadas por ela e por outras colegas, criamos um curso sobre saúde da mulher, o que nos deu uma desculpa para estudar sobre a história das mulheres e a medicina.
Não havia muito para ler sobre o tema naquele período, visto que todo o gênero de livros sobre “Mulheres e…” ainda estava por ser inventado. Em obras convencionais sobre medicina nos Estados Unidos, às vezes encontrávamos tentadoras referências a um tempo em que as mulheres predominavam como curandeiras — mas apenas como indicação do quão “primitiva” a medicina fora antes do surgimento da profissão médica moderna. O que nos impeliu a pesquisar foi o apoio poderoso que recebíamos de nossas alunas, muitas delas enfermeiras já atuantes que estavam estudando para obter um diploma e que frequentemente traziam consigo memórias e experiências sobre tradições femininas de cura. Entre elas, havia parteiras do Caribe desconcertadas com a então quase inexistente atuação de parteiras nos Estados Unidos; mulheres de ascendência europeia que contavam histórias sobre suas avós que outrora haviam praticado as artes da cura; afro-americanas que carregavam memórias da prática negra e autônoma da parturição no sul estadunidense.
Em algum momento de 1972 — nenhuma de nós consegue precisar exatamente quando —, fomos convidadas a participar de uma pequena conferência sobre saúde da mulher no interior da Pensilvânia. Aquela, pensamos, era a chance de testar nossas hipóteses emergentes com uma audiência composta de ativistas e alguns acadêmicos novatos. Não temos mais o resumo mimeografado dos nossos achados de então, os quais levamos para a conferência, mas a ideia central era de que a profissão médica como a conhecemos (ainda 90% masculina) substituiu e afastou uma tradição bem mais antiga de cura (feminina e leiga), incluindo a parturição e toda uma gama de habilidades curativas, enquanto fechava as portas da educação médica às mulheres. Em outras palavras, a ignorância e o desempoderamento das mulheres que confrontávamos na década de 1970 não eram condições permanentes, mas o resultado de uma longa disputa de poder que se desenvolveu nos Estados Unidos no início do século XIX, bem antes da ascensão da medicina científica. Identificamos uma disputa similar na Europa ainda no início da Era Moderna e, inspiradas em parte pelo maravilhosamente iconoclasta Thomas Szasz [psiquiatra húngaro], jogamos luz sobre o fato de que as curandeiras dessa mesma época haviam sido frequentemente consideradas “bruxas”.
A resposta à nossa apresentação foi suficientemente entusiasmada para justificar uma publicação. Mas de quê, exatamente? Nenhuma de nós tinha acesso à mídia dominante, nem estávamos interessadas em correr atrás de um contrato para escrever um livro. Queríamos difundir nossos achados de uma forma barata, acessível e envolvente para mulheres como as que haviam sido nossas alunas na Faculdade de Old Westbury, e isso significava pensar em um tipo de publicação que não fosse livro ou artigo de revista. A decisão que tomamos, e que agora nos parece extraordinária, foi autopublicar os resultados da pesquisa em um livreto. Assim, mantivemos o controle sobre o conteúdo, incluindo a escolha das ilustrações, e fizemos um produto barato, que podia circular facilmente de mão em mão. Chamamos nossa pequena e orgulhosa editora de Glass Mountain Pamphlets [Panfletos montanha de vidro], nos referindo a um obstáculo — o sexismo — que talvez ainda não fôssemos capazes de destruir, mas através do qual ao menos poderíamos enxergar. A sede dessa editora ficava na casa que dividíamos com outros três adultos e os filhos de Barbara.
O livreto foi um sucesso instantâneo: o jornal Village Voice o chamou de “best-seller underground”. Seu conteúdo se espalhou pelos grupos de mulheres e também entre os periódicos de contracultura da época. Logo nos vimos sobrecarregadas com a tarefa de atender a todos os pedidos — que enviávamos aos leitores nas caixas de fraldas do bebê de Barbara. Por isso, aceitamos de bom grado a oferta da recém-fundada Feminist Press de assumir a distribuição. A certa altura, o livreto Witches, Midwives and Nurses foi traduzido para o francês, espanhol, alemão, hebraico, japonês e dinamarquês, e distribuído no Reino Unido. Em 1993, fomos convidadas a fazer uma turnê de palestras na Índia, em parte por causa da popularidade do livreto no país. Ficamos convencidas de que autopublicar nossa pesquisa naquele formato foi uma decisão acertada: de acordo com os relatos das leitoras, ele havia de fato circulado entre enfermeiras nos hospitais, além de ser encontrado em muitas das livrarias voltadas a questões de gênero e clínicas de saúde feminina que surgiam naqueles anos. Em 1973, a Feminist Press publicou também um livreto complementar de 96 páginas, Complaints and Disorders: The Sexual Politics of Sickness [Queixas e distúrbios: a política sexual da doença], que descreve os efeitos do conhecimento médico especializado, definido estritamente por homens, para as mulheres dos séculos XIX e XX.
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Imagem: Os benefícios da sangria. Gravura em famoso poema médico medieval c. século XII-XIII. Reproduzido em Regimen Sanitatis Salernitanum: A Poem on the Preservation of Health. Oxford: D.A. Talboys, 1830.








