Festa e guerra: coisas diferentes se ditas por gentes diferentes

 

Está aberta a pré-venda com desconto de Festa e guerra: movimentos coletivos dos povos nativos da América, da antropóloga Beatriz Perrone-Moisés, novo título da coleção Fundo & Forma. As duas palavras do título, aqui, têm um sentido diferente do que se pensaria numa sociedade lusófona, e aí está o cerne do ensaio: os povos indígenas deste continente não se definem sob os parâmetros políticos e sociais impostos pela colonização europeia. Segue um trecho da introdução.

 

Por Beatriz Perrone-Moisés

Em 1744, num dos vários encontros entre representantes da Coroa britânica e porta-vozes das nações iroquesas no nordeste da América do Norte para a negociação de alianças, um orador da nação Onondaga lembrou os britânicos que “nações diferentes possuem conceitos diferentes”. O lembrete era necessário, visto que os britânicos agiam como se seus conceitos próprios fossem — ou devessem ser — universais.

Michel de Montaigne, já no século XVI, alertava: cada qual julga absurdo, incompreensível, “bárbaro” o que não é de seu costume. Como os Iroqueses e, por princípio, os praticantes da disciplina antropológica, ele tinha consciência de que os conceitos de uma cultura não podem servir de parâmetro para entender outra — menos ainda para julgá-la. Marcel Mauss, venerável ancestral da antropologia, lembrava-nos, há quase cem anos, que em instituições e ideias de outros povos “estão misturados todos os tipos de princípios que nossos vocabulários europeus, pelo contrário, empenham-se com afinco em distinguir”.

Na década de 1950, Arthur Hocart, antropólogo britânico, melanesista, considerado excêntrico, retomava a questão e indagava: “Como podemos fazer qualquer progresso na compreensão de culturas antigas ou contemporâneas se continuarmos dividindo o que as pessoas juntam e juntando o que separam?”. As palavras são outras, as distinções são outras. Daí a antropologia ser dita uma operação de tradução, continuamente desafiada a encontrar palavras em línguas ocidentais — do pensamento ocidental — para expressar o que o Ocidente desconhece. Nos percursos da disciplina, de tempos em tempos, o desafio é relembrado.

Franz Boas, outro venerável ancestral, comparava as culturas a lentes, que conformam e, por isso mesmo, limitam a visão do mundo de cada pessoa ao que é de sua tradição. Mas nativos americanos, como o orador onondaga e Davi Kopenawa, não parecem limitados a suas próprias lentes e dão provas de ver além do que é de seu costume. Outro exemplo é o de Montaigne, que por sinal aprendeu muito ouvindo os Tupi da costa brasileira em visita à Normandia, no norte da França, para onde os navios franceses que faziam a rota do Brasil no século XVI traziam costumeiramente aliados indígenas para conhecer sua terra.

Gentes ocidentais modernas parecem ter uma especial dificuldade em livrar-se das lentes de sua própria cultura, que as impedem de conhecer outros costumes em seus (delas) próprios termos. Em busca de melhores traduções, as que os próprios índios fazem, geralmente relegadas às margens do texto e da análise de textos especializados, devem receber especial atenção. Palavras recorrentes do léxico do chamado “português dos índios” — quer o português seja para eles uma segunda língua ou a que é hoje a sua língua materna, após gerações proibidas de falar suas línguas e muitas vezes punidas por isso — deveriam ser incorporadas à reflexão e até ao vocabulário especializado, eventualmente substituindo categorias correntes em descrições e análises.

Longe de corresponderem a um uso aproximado da língua europeia colonizadora, as traduções nativas decorrem de longos processos de reflexão por parte de povos cujo interesse por outras línguas está registrado desde os primeiros momentos da invasão europeia. “Festa” é a palavra usada por muitos povos nativos no Brasil para falar de eventos que especialistas costumam chamar de “ritual”. Nos dicionários, o substantivo “ritual” prende-se inequivocamente ao campo religioso; quando se afasta dele (já lá pela quarta acepção), mantém da religião o aspecto solene, litúrgico. Também na antropologia há mais de uma definição de ritual, mas as festas indígenas transbordam todas elas. Recortes de nosso pensamento continuam nos impedindo de considerar em conjunto — e sem supostas prioridades — tudo o que as compõe: cantos, danças, competições, banquetes, brincadeiras, apresentações de vários tipos, reencontros, trocas de notícias, atualização de relações preexistentes e estabelecimento de novas relações.

Termos como “ritual” e “cerimônia” são também utilizados por indígenas que, com essa escolha de tradução, certamente buscam evocar para os não indígenas a importância e o respeito que merecem esses eventos, mas afastam deles outras características essenciais das festas. Se as traduções escolhidas são indicações de caminhos para o entendimento daquilo a que se referem, também merecem mais atenção as palavras de línguas europeias que pontuam recorrentemente falas em línguas nativas, indicando ideias próprias da tradição ocidental sem correspondentes no pensamento — e, portanto, nas línguas — de quem fala. “Política” e “representante” são duas delas. Quando empregadas por indígenas, assim como “festa” e “guerra”, são eminentes exemplos de palavras que produzem equívocos, sobre as quais Eduardo Viveiros de Castro nos convidou a refletir há alguns anos; significam coisas diferentes quando são ditas por gentes diferentes.

 


Beatriz Perrone-Moisés nasceu em São Paulo, em 1958. Dedica-se desde muito jovem ao estudo de povos indígenas das Américas. Seus trajetos de aprendizagem começaram por museus e bibliotecas, passaram por aldeias e arquivos, simpósios e conversas, documentários e artigos, orientações e salas de aula. Seus principais temas de pesquisa têm sido direitos indígenas, relações entre europeus e nativos na América colonial e modos indígenas de operar o que chamamos de “política”. Traduziu várias obras fundamentais, entre as quais se destacam as Mitológicas, de Claude Lévi‑Strauss, e A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. É professora do Departamento de Antropologia e pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) da Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu, em 2015, a tese de livre-docência que deu origem a este livro.

Foto: Evento na Terra Indígena do Xingu. Crédito: gov.br