Descrição
Conheci Robert Desnos, poeta dos sonos hipnóticos, profeta do surrealismo, dormindo em uma fotografia no romance Nadja, de André Breton. Só depois vi seus olhos abertos no filme mudo A estrela do mar, de Man Ray. De seu primeiro livro, Rose Avida, traduzi literalmente trinta e três de seus trocadilhos telepáticos, inspirados na personagem dadaísta de Marcel Duchamp. Radialista experimental, é dele a letra do “Lamento de Fantomas”, musicado por Kurt Weill, que imaginei na voz de Antonin Artaud. Poeta do amor — da estrela Yvonne George à sereia Youki Foujita —, Desnos foi enfim poeta engajado durante a ocupação nazista de Paris. Jornalista, membro do grupo Agir da resistência francesa, foi preso pela Gestapo e enviado a diversos campos de concentração, onde escreveu as trinta Fábulas cantadas, aqui reunidas pela primeira vez em português.
— Alexandre Barbosa de Souza
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Robert Desnos (Paris, 1900-1945) configura-se na constelação surrealista como um dos nomes mais atuantes do movimento. Em 1922, passa a colaborar com a revista Littérature, dirigida por Breton, Soupault e Aragon, com relatos de sonhos (ditados, escritos e desenhos), o que marcaria profundamente aqueles primeiros anos da aventura surrealista. Seus transes hipnóticos provocariam uma revolução nos jogos de palavras de Marcel Duchamp (Rrose Sélavy), Michel Leiris, Benjamin Péret, Antonin Artaud, entre outros. Desnos está presente na revista La Révolution Surréaliste, destacando-se por sua verve incendiária, como no texto “Description d’une révolte prochaine” (nº 3, 1925). Sua obra unificou o sentido maior do amor, do erotismo e do automatismo, essa “zona de Iluminação”, como disse André Breton. Além disso, sobre o poeta e sua entrega abismal, Breton atesta no Manifeste du surréalisme (1924): “Dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da verdade surrealista (…). Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter as folhas que se desvanecem no vento de sua vida”. Lutando na resistência francesa durante a Segunda Guerra, Desnos buscou os caminhos da poesia enquanto clarividência e, mesmo quando preso em campos de concentração em condições desumanas, jamais deixou de exercer a liberdade: durante o período de confinamento, continuava sonhando e amando. Desnos combateu o homem obscurantista e a “pouca realidade” lançando sua luz subversiva e oculta através da poesia, da liberdade e do amor. Cultivou assim o desejo, o profano e, como poucos homens de sua época, soube convergir o estado de espírito ao ato insurrecional.
— Alex Januário
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Um vidente: eis o epíteto mais comum adotado para qualificar Desnos, esse “dorminhoco formidável” que aprendeu, em seus passeios inconscientes, a reencontrar a essência dos sonhos e a comunicá-la em termos maravilhados. Impregnado do mistério tremulante dos romances populares (mas quem faria justiça ao humor de um Marcel Allain?), ele soube captar também o sotaque perturbador das canções de marinheiros, a surdina dos lamentos entediados. Nos períodos ardentes do bom combate, na central surrealista, ele soube manejar com maestria o vocabulário das cartas de insultos, e nos dar em Langage cuit [Linguagem cozida, 1923] “palavras sem rugas”. Descobrindo na expressão “eu me vejo” o Poder das Botas de Sete léguas (C’est les bottes de 7 lieues cette phrase “je me vois”, 1926), ele se manifesta em toda sua grandeza com La liberté ou l’amour [A liberdade ou o amor, 1927]. Enfim, com as Chantefables [Fábulas cantadas], La ménagerie de Tristan (1932) e Le Parterre de Hyacynthe (1932), ele chega às claridades profundas das canções de ninar. Mas já lhe espreitava um destino desmedido, que confere à seleção que se segue um sabor agridoce de vidência tardia.
— Robert Benayoun