60 anos do golpe e uma frágil democracia
Por Tadeu Breda
editor
Neste aniversário de 60 anos do golpe, nós aqui na Elefante estamos com sentimentos encontrados. Lamentamos que as forças políticas e sociais de esquerda estejam totalmente desmobilizadas e alheias à efeméride; que Lula tenha desestimulado manifestações contrárias a essa “página infeliz da nossa história”; e que não estejam previstas grandes concentrações de norte a sul do país para lembrar as vítimas, rechaçar as inúmeras violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura, denunciar suas heranças e dizer em alto e bom som “nunca mais!”, sobretudo em um momento em que o fascismo, o autoritarismo e o golpismo recobram atualidade dentro e fora das Forças Armadas.
Por outro lado, estamos diante da possibilidade de assistir a acontecimentos inéditos em nossa curta história republicana, caso os militares da ativa e da reserva envolvidos nas intentonas golpistas de 2022 e 2023, antes e depois das eleições que tiraram Bolsonaro do poder, efetivamente sejam julgados e presos pelos atentados que cometeram contra as instituições democráticas e a vontade popular expressa nas urnas.
A República brasileira leva a marca indelével do Exército. Foram homens fardados que a instauraram, em 1889, e que a consolidaram, esmagando insurreições como as revoltas de Canudos, do Contestado e da Chibata. Desde sempre, o Estado brasileiro tem sido tutelado pelos militares, com uso intensivo e impune da violência, e a ditadura (1964-1985) foi o ápice dessa dinâmica, estabelecendo instituições, valores e costumes autoritários que perduram até hoje.
A estrutura das polícias e sua longa lista de violações dos direitos humanos provavelmente seja a mais problemática de todas as heranças do regime. No ano em que descomemoramos os 60 anos do golpe, a Polícia Militar de São Paulo — que, sozinha, já matou mais de 11 mil pessoas desde a democratização — volta a bater recordes de assassinatos com suas operações no litoral. E um delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro foi preso, junto com um deputado, por envolvimento no assassinato de Marielle Franco. A impunidade é uma constante, assim como os discursos mentirosos de comandantes e governantes que saem em sua defesa.
Tudo isso — e muito mais — é fruto de um sistema montado e aperfeiçoado durante a ditadura para que seus agentes cometessem todo tipo de barbaridade no “combate à subversão” e passassem incólumes. Esquartejamentos, torturas, ocultação de cadáver. Tanto faz. Ninguém nunca foi punido pelo que fez nos anos de chumbo — e pouquíssimos dos que o fizeram e fazem em democracia o são. Por isso seria (será, esperamos) tão extraordinário ver os generais Braga Netto, Heleno, Nogueira e Theophilo e o almirante Garnier, além do ex-capitão Bolsonaro e todos os seus compinchas civis e militares, respondendo pelos crimes que cometeram nos últimos anos e cumprindo penas de prisão, assim como já está acontecendo com o tenente-coronel Mauro Cid.
É realmente uma pena, porém, que esse possível grande acontecimento democrático esteja sendo viabilizado apenas pela ação da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal, cujos protagonistas, notórios conservadores que jamais tiveram papel relevante na luta por memória, verdade e justiça, são movidos por sabe-se lá quais interesses, e não por obra de intensa e consistente conscientização popular sobre o lugar que as Forças Armadas devem definitivamente ocupar dentro do Estado de direito.
É lamentável, também, que todos os esforços da sociedade civil, das vítimas e dos familiares para a reparação histórica tenham resultado, em 2012, em uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) tímida, que, apesar de importante e necessária mesmo da maneira como foi constituída (eis a sina da esquerda brasileira, contentar-se com migalhas?), nem de longe conseguiu cumprir com a imensa responsabilidade histórica de que foi imbuída.
Nenhum dos seus membros dedicou-se exclusivamente ao trabalho, a duração foi curta diante da enormidade da tarefa, a sociedade não se envolveu, os arquivos das Forças Armadas não foram revirados, os militares não sofreram qualquer tipo de sanção por se recusarem a depor e o governo não conseguiu nem mesmo proteger quem decidiu revelar as arbitrariedades: basta lembrar o caso de Paulo Malhães, tenente-coronel reformado, agente do Centro de Informações do Exército (CIE) durante o regime, encontrado morto em sua casa, em 2014, um mês depois de ter admitido sua participação em prisões, torturas e desaparecimentos.
Já se passaram 60 anos e ainda estamos apenas começando a lidar com o legado da ditadura. Esperamos que não sejam necessários mais 60 anos para que possamos, como sociedade, elaborar o trauma coletivo representado pelo regime, reparar os danos causados, punir quem deve ser punido (mesmo que seja apenas a sua imagem e memória, já que restam poucos agentes vivos) e limitar o alcance de instituições — notadamente, as militares — cujos membros ainda não se conformaram a obedecer as regras do convívio democrático.