A condenação do policial branco Derek Chauvin, responsável pelo assassinato do homem negro George Floyd durante uma abordagem na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, em maio de 2020, foi, com toda certeza, um alívio – mas não podemos esperar justiça racial a partir dos tribunais.
Vinte minutos antes do júri condenar o policial, Ma’Khia Bryant, uma garota negra de dezesseis anos, foi baleada e morta pela polícia no estado de Ohio. No mês passado, a polícia executou um jovem de treze anos, Adam Toledo, em Chicago. E Daunte Wright, de vinte anos, foi morto durante uma parada de trânsito a apenas dezesseis quilômetros de onde Floyd fora asfixiado por Chauvin.
No Brasil, a mesma polícia que segue matando lado a lado com a pandemia parece ter dificuldade em resolver alguns casos, já que contamos mais de 100 dias sem resposta sobre os três meninos desaparecidos na Baixada Fluminense, dentre muitíssimos outros casos sem qualquer repercussão que acontecem diariamente – e outros ainda que permanecem sem resposta: Cadê o Amarildo? Por que o senhor atirou em mim? Quem matou e quem mandou matar Marielle?
Sem dúvidas, é preciso comemorar a vitória: um policial que tirou a vida de um homem negro ser considerado culpado nos Estados Unidos é algo praticamente sem precedentes. Como observou o New York Times, “as chances de um assassinato pela polícia levar a uma condenação por homicídio são de cerca de uma em duas mil”. Ainda assim, é preciso não perder de vista que o sistema carcerário estadunidense – e o brasileiro e, por princípio, todos eles – é racista, e continua perpetrando sua política de encarceramento em massa.
“O que quer que aconteça com esse veredito, nada mudou nas condições subjacentes que permitiram que ocorresse o assassinato de Floyd”, escreveu Keeanga-Yamahtta Taylor, autora de #VidasNegrasImportam e libertação negra, no Twitter. “O assassinato de Wright & Toledo só neste último mês deixa comprovado que, sem a destruição do sistema penal punitivista, nós estamos condenados a voltar a este lugar.”
Além disso, é necessário prestar atenção nos meandros do julgamento, uma vez que a condenação de Chauvin faz com que sua culpa (e também sua pena) seja individual, e não compreendida como reflexo de um sistema estrutural. A ação brutal que resultou na morte de Floyd foi entendida como uma “aberração” – sem dúvidas, uma estratégia da polícia, do estado, e do sistema penal em si para que ele fosse julgado enquanto um indivíduo fora da curva e, dessa forma, a culpa não recaísse sobre as instituições.
Em #VidasNegrasImportam e libertação negra, Keeanga-Yamahtta Taylor nos alerta para essa engrenagem do sistema penal.
No capítulo “As duas faces da justiça”, ela ressalta que cidades em todos os Estados Unidos constantemente pagam centenas de milhões de dólares para resolver processos judiciais relativos à brutalidade policial, enquanto a polícia continua a operar com impunidade. “Em 2014, a cidade de Chicago — que alegava estar sem dinheiro — pagou mais de cinquenta milhões de dólares para resolver processos por má conduta policial (sem contar os 63 milhões de dólares pagos aos advogados que atuaram nos casos). Durante a última década, a cidade desembolsou mais de meio bilhão de dólares em ações de brutalidade policial. […] Em dez anos, a cidade de Nova York pagou em média cem milhões de dólares anuais — totalizando um bilhão de dólares — para solucionar casos de má conduta policial.” Os número continuam: Los Angeles gastou 54 milhões de dólares, apenas em 2011, para resolver ações judiciais contra brutalidade e má conduta de seus policiais; Oakland, 74 milhões; Minneapolis, antes de George Floyd, 21 milhões de dólares.
“Aparentemente, as quantias astronômicas drenadas do bolso dos contribuintes para resolver os casos de brutalidade e má conduta policial são uma das despesas normais na administração de uma cidade. A maioria das outras instituições públicas responsáveis por esse tipo de dívida e mau procedimento — hospitais, clínicas, bibliotecas, escolas — é privatizada ou sofre cortes orçamentários profundos que ameaçam sua capacidade de funcionar adequadamente. […] No entanto, raramente (ou nunca) a polícia é repreendida por custar milhões de dólares em recursos públicos desesperadamente necessários à administração das cidades. Em vez disso, são unanimemente elogiadas pelos governantes e protegidas de quaisquer consequências — mesmo em casos de assassinatos e outras brutalidades cometidas contra civis. A rédea solta da polícia é hoje um componente crítico da administração urbana”, escreve Keeanga.
Seja por conta do processo jurídico propositadamente individualizado ou da indiscutível cumplicidade do sistema de justiça às políticas de encarceramento em massa, o fato é que não podemos esperar reparação dentro do sistema. O racismo não é uma característica que se identifica em um ou outro policial, mas uma premissa de todos os agentes armados do Estado, uma vez que a polícia em si existe para impor o domínio da elite econômica. E, nas palavras de Keeanga-Yamahtta Taylor, “a polícia também reflete e reforça a ideologia dominante do Estado, o que explica por que os policiais estadunidenses são profundamente racistas e resistentes a mudanças estruturais. Em outras palavras, se a tarefa da polícia é a manutenção da ordem, esse papel assume um significado bem específico quando a sociedade é fundamentalmente racista.”