Descrição
A pandemia não é em si mesma o acontecimento — eis a hipótese de que parte este livro. O acontecimento, precipitado pela conjunção de isolamento preventivo e uso exacerbado de tecnologias digitais, é a “torção” dos sentidos por meio dos quais nos imaginamos próximos ou distantes de tudo o que nos rodeia. Entre esses sentidos contam-se o amor, a viagem, o estudo, a comunidade e a arte. É pelo ângulo dessa hipótese, que é também uma provocação existencial e um desvio epistêmico, que muitas das questões sobre a crise do coronavírus são abordadas por João Pedro Cachopo. De que modo a pandemia está transformando nossa vida? Como podemos e devemos n os posicionar ética, política e artisticamente perante essas transformações? No que toca às consequências desta emergência sanitária, em particular às que decorrem do aprofundamento da revolução digital, estamos tanto sujeitos ao acontecimento quanto somos sujeitos dele.
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O livro de João Pedro Cachopo, A torção dos sentidos, situa-se de modo original neste panorama. Não foi escrito imediatamente no começo da pandemia, e sim depois de alguns meses, tomando dela já uma pequena distância no tempo. Mas esta, a breve distância cronológica, não é a que dá ao livro a sua originalidade. Decisivo é o ângulo do seu pensamento, que confere à sua prosa um misto de serenidade e firmeza. Por isso, a provocação de sua abertura, segundo a qual “a pandemia não é o acontecimento”, deve ser levada a sério, e o separa das tantas outras abordagens que, aderidas à pandemia, supõem que é ela, em si e por si, o acontecimento, embora a interpretem através de conceitos que já existiam muito antes dela. Para Cachopo, o acontecimento é a torção dos sentidos, ou seja, a transformação – que, mais do que promovida pela pandemia, pode ter sido por ela intensificada e acelerada – em nossos modos de percepção e de imaginação, de reconhecermos o que é proximidade e o que é distância, presença e ausência, espaço e tempo. Os sentidos que estão sendo torcidos, portanto, não são somente visão, audição, tato, paladar e olfato. São os sentidos pelos quais as coisas ganham, perdem e definem sentidos para nós no mundo em que estamos.
— Pedro Duarte, no Prefácio à edição brasileira
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A pandemia – como escrevo em tom de provocação logo no prólogo – não é o acontecimento. O acontecimento, precipitado pelas medidas tomadas para conter a pandemia, é o que designo por torção dos sentidos: um revolvimento do modo como nos imaginamos próximos ou distantes de tudo o que nos rodeia. Ao formular esta hipótese, há sensivelmente um ano, partia de um sentimento partilhado. Por um lado, sentimo-nos mais distantes dos próximos: era o hiato entre nós e os lugares, as pessoas e as experiências que nos habituáramos a ter perto de nós, das nossas casas, dos nossos afectos, dos nossos passos. Por outro lado, sentimo-nos – ou imaginámo-nos – mais próximos dos distantes: era o relance daqueles outros lugares, pessoas e experiências longínquos, nos quais pensávamos uma e outra vez, com cada vez mais frequência. Não foi só o medo mas também o despontar de uma consciência e de uma sensibilidade globais que animou os primeiros tempos da pandemia. […] Assim, a pandemia não mostra apenas que o acontecimento é a revolução digital. Revela também, se não sobretudo, como é a revolução digital o acontecimento. E é-o, como gostaria de frisar, por meio do seu impacto sobre a faculdade de imaginar. É a imaginação o campo de batalha, o plano em que, reconhecida a inseparabilidade entre imaginação e tecnologia, os efeitos perniciosos e as ilusões malsãs das tecnologias de remediação digital se combatem e as margens de manobra da emancipação, do cuidado e da criatividade se conquistam.
SOBRE O AUTOR
João Pedro Cachopo nasceu em Lisboa em 1983. É musicólogo e filósofo. Lecciona na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde integra o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. É o autor de Verdade e enigma: ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013), que recebeu o Prémio Primeira Obra do PEN Clube Português em 2014, e coeditou Rancière and Music (Edinburgh University Press, 2020), Estética e política entre as artes (Edições 70, 2017) e Pensamento crítico contemporâneo (Edições 70, 2014).