Por Edson Teles
Trecho do prefácio à edição brasileira de
A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo
“Sempre estivemos em guerra.” Essa frase de Ailton Krenak, pensador e ativista dos povos indígenas, sintetiza parte deste livro. Desde a formação do Estado moderno, o poder soberano tem fomentado batalhas contra os que não são donos do capital. Quanto mais se desenvolveram novos formatos de dominação institucional, mais foram se tornando alvo da violência estatal os revoltosos, os sujeitos atípicos, os povos originários, a classe trabalhadora, seus representantes e qualquer indivíduo ou grupo considerado inimigo da ordem.
A partir do final do século XIX, foi se imiscuindo no discurso liberal a ideia de que seria necessária uma nova dinâmica política para garantir a ordem e as leis do mercado. Da teoria à prática, o século seguinte viu surgir a gestão neoliberal de controle da sociedade. Historicamente, o projeto surgiu como resposta ao nascimento do Estado social europeu no início do século xx e se concretizou como política eficiente de destruição da cidadania oriunda da conquista de direitos. Não seria meramente o aspecto “social” do welfarismo que afrontava o pensamento e a prática do liberalismo de mercado, mas essencialmente o caráter político que a cidadania imprimia às democracias.
A história do Estado moderno está umbilicalmente ligada à fabricação de processos e regimes de subjetivação dos corpos. Ele nasce, discursivamente, para consolidar o exercício institucional da soberania popular, a qual seria a expressão das massas desejosas e impacientes por definir seu futuro. Porém, ao mesmo tempo, o popular se insurge como gregário em revolta e em movimento coletivo, brutal e primitivo. Por isso, acentuam os autores, a questão fundamental do neoliberalismo é: como limitar o poder de um povo politicamente unido? Como criar uma arte de governar capaz de submeter esse povo às autoridades administrativas e políticas do Estado? Como controlar o “caráter potencialmente ingovernável das democracias”?
Dessa forma, desde o entreguerras até o fim da Guerra Fria, a Europa testemunhou a emergência da teoria e do pensamento neoliberal visando evitar a ingovernabilidade de uma democracia de massas. A solução encontrada passou pela construção de um Estado forte, por meio da aliança entre as normas de mercado e o autoritarismo. Essa foi a forma mais eficaz de proteger a democracia liberal da política das massas. É por isso, argumentam os autores, que as diferenças entre as violências das ditaduras e das democracias, como as que experimentamos na América Latina, configuram-se como graus da mesma prática, e não divergências quanto à natureza do Estado. Para o neoliberalismo, entre a ditadura e a democracia não há diferença de valor, mas de eficácia na garantia do direito privado dos indivíduos e da ordem de mercado.
Assim, a violência de Estado atua para fortalecer a racionalidade neoliberal contra os seus inimigos, sejam aqueles que se autodeclaram opositores, sejam aqueles que, pelo caráter originário e cotidiano de uma experiência coletiva, oferecem risco à manutenção da normativa imposta. A violência que se libera não é necessariamente a legitimada pelas leis do estado de direito, mas a da brutalidade que se utiliza do Estado para atacar os esforços de democratização da sociedade.
Os valores políticos são substituídos pelo discurso da eficácia e da liberdade individual. Passa a importar a produtividade da gestão, com leis e instituições do estado de direito exercendo função instrumental. A par dos aspectos discursivos da democracia, o formalismo na escolha dos representantes e a tramitação institucional são considerados valores relativos, cujo investimento depende da potência em alcançar os objetivos gerais.
Como prevê o projeto neoliberal, constrói-se um Estado forte e violento para retirar o caráter político da decisão democrática, depositando a direção da economia nas mãos de um conselho de tecnocratas e no suporte da força militar. Com isso, a cisão da sociedade em partes antagônicas se atualiza com o estímulo à guerra civil. Toda a violência acionada pelo Estado, somada à de milícias e grupos de intolerância, manifesta uma forma de combate distinta de uma guerra civil clássica. A guerra neoliberal utiliza-se de divisões antigas e tradicionais, de sociedades nascidas de práticas de dominação e expostas a cisões culturais, sociais e políticas. O enraizamento desses conflitos nas várias camadas de sociabilidade permite às estratégias de dominação maior capilarização para os mecanismos de controle e vigilância.
São guerras que assumem configurações distintas e mobilizam os mais diversos métodos, mas os alvos são sempre grupos sociais, segmentos da população, coletividades. Por isso, o livro se propõe a reler o projeto neoliberal por meio de suas estratégias autoritárias e das realidades violentas que lhes são próprias. Trata-se de uma história das ideias, dos pensamentos, das teorias e das práticas de um projeto político de anulação ou eliminação da opção socialista, do poder dos sindicatos, da organização coletiva de grupos sociais e dos povos. Antes do início do combate, a racionalidade neoliberal busca ativar procedimentos para frustrar, destituir e impedir o acesso dos inimigos aos meios de luta e, quem sabe, dessubjetivá-los até que renunciem ao enfrentamento.
De acordo com a genealogia apresentada neste livro, a guerra civil neoliberal apresenta três características gerais: primeiro, pretende atacar os direitos sociais; segundo, alimenta-se de diferentes estratégias de ação; terceiro, utiliza-se de alianças com as oligarquias locais tendo por alvo coletivos populacionais. Essas práticas almejam, além da defesa da ordem global, um regime político e social antidemocrático, com a consolidação de uma liberdade que assegure nada mais que o empreendedorismo e o consumo. Talvez possamos dizer que a grande novidade da racionalidade neoliberal é criar o indivíduo que produz, controla e vigia, endivida e violenta a si mesmo.
A guerra civil se torna a norma da construção e do funcionamento do mercado, a atividade determinante dos agentes políticos e sociais cujas ações devem impedir qualquer organização coletiva da sociedade. A globalização do projeto neoliberal não visava apenas à imposição político-econômica mas também à produção de uma nova humanidade.
Na racionalidade neoliberal, qualquer forma coletiva de sociabilidade alternativa ao modelo individualista da lógica de mercado significa um risco à ordem. Daí o discurso de que um perigo ronda a civilização, forçando a necessidade do combate e da intervenção. Os valores tradicionais e a ordem da economia livre são ameaçados pelas subjetividades que entram em desacordo com as normas da sociedade fundamentada no modelo liberal. A civilização em risco é a ocidental: branca, classista, heteronormativa, patriarcal.
Por isso, a ordem se vê em perigo diante das culturas de etnias não hegemônicas, dos afrodescendentes, das sexualidades não binárias e também dos desempregados, dos militantes e ativistas, dos adictos, dos estrangeiros etc. Qualquer prática em ruptura com a tradição, qualquer atividade que configure um grupo social diverso da norma, se não puder ser assimilada como produto de consumo, significa o perigo de regressão a um estágio bárbaro, interrompendo e causando danos à evolução civilizatória.
Há na movimentação neoliberal uma dupla face: por um lado, ocorre a modernização e o dinamismo das tecnologias e de novas formas de vida; por outro, há as estratégias conservadoras da tradição racista e patriarcal, estruturada na família e na religião. A dupla performance do neoliberalismo permite a combinação das transformações exigidas pelo modelo econômico, adaptadas à defesa da restauração dos modos tradicionais de produção das subjetividades em torno de normas autoritárias e conservadoras. A junção da expansão violenta de mercados somada às tecnologias discursivas e aos valores tradicionais traz à cena política governos de extrema direita, como os de Jair Bolsonaro, Donald Trump e Viktor Orbán.
A efetivação dessa dupla face tem direcionado diversos dispositivos — policiais, militares, jurídicos, médicos, escolares, tecnológicos — para a atividade da guerra contra o inimigo. Para controlar esse oponente e garantir a segurança, o governo recorre a intervenções de exceção, desviando-se dos limites estabelecidos pelas leis. É o que os autores chamam de “inflação de exceções”, ou seja, medidas autoritárias que dispensam os mecanismos de suspensão da ordem jurídica, como sugeria Carl Schmitt. É a exceção autorizada como permanente, fazendo da militarização a autoridade de governo, e dos grupos de direita e das milícias os despachantes da violência liberada.
Enquanto combate o inimigo, e por meio da subjetivação da seguridade, a exceção se dispersa para todo canto e em qualquer temporalidade. Como sugere o livro, o inimigo é polimorfo e se encontra por toda parte, o que permite manter a existência de seu fantasma em qualquer território. Nesse sentido, não bastam mecanismos constitucionais de acionamento do estado de exceção, pois se trata da violência bélica anômica e liberada para qualquer esfera.
Com a expansão da ideia de exceção, manifesta-se uma nova racionalidade, na qual o indivíduo deverá governar a si mesmo e ser responsável por policiar e, eventualmente, penalizar o inimigo. A violência de Estado se mostra inseparável de uma violência exercida contra o outro e contra si mesmo. São estratégias que atingem a intimidade dos corpos.
Assim, a exaltação da civilização concebida como o locus da liberdade, da livre-circulação de ideias, da educação e do sufrágio universais e da cidadania se irrealiza no cidadão governado pela razão de mercado. O discurso iluminista e moderno — do sujeito abstrato dos direitos humanos, da boa política da democracia — cai por terra diante do fato de que tais benefícios foram, desde os séculos passados até hoje, privilégio do homem branco.
Os autores identificam na guerra colonial, a partir do caso da Guerra da Argélia (1954-1962), parte substancial das práticas e estratégias que seriam rearticuladas no projeto neoliberal, com a adoção dos “antigos métodos coloniais contra o inimigo interno”.
Por isso, a referência à fala de um líder indígena na abertura deste texto não é despropositada. A guerra neoliberal se configura como a resposta do capital à continuidade da história e da institucionalidade dos mundos moderno e contemporâneo. Ailton Krenak, na mesma ocasião da constatação de que vivemos em guerra permanente, acrescentou um comentário sobre o momento que o país atravessa sob a presidência de Bolsonaro:
Eu imaginava que os partidos políticos fossem fazer uma imensa coalizão para confrontar esse projeto neoliberal, mas nada aconteceu. As pessoas parecem anestesiadas. Nós, indígenas, continuamos resistindo, mas vejo o governo Bolsonaro como mais um capítulo da nossa luta colonial, que começou em 1500, quando os portugueses invadiram nosso território, e prossegue até os dias de hoje. O modelo de ocupação da América pelos europeus visava ao extermínio dos povos originários e ao longo desse tempo a gente nunca teve paz.
O ponto de vista de uma liderança indígena, na radicalidade de sua existência, expõe de forma plena o impacto do projeto neoliberal em territórios colonizados. O exercício das normas e da ordem do mercado como forma de governo se globalizou a partir dos anos 1980. Contudo, traz em seu teor e em seus alicerces toda a tradição colonialista e violenta dos últimos séculos. Trata-se da globalização de certa forma de gestão das populações sob a lógica do mercado, mas que faz uso da continuidade histórica de estratégias e ideologias autoritárias.
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Edson Teles é professor de filosofia política e coordenador do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e militante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos na ditadura (1964-1985)