Texto de orelha de Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas, por José Maurício Arruti
Ilustração de Aline Bispo

 

O território não é apenas a questão que funda o direito e o reconhecimento quilombola, é também o tema que tem dominado a produção acadêmica sobre essas comunidades. Apesar de serem citados nos artigos 215 e 216 do capítulo da Constituição dedicado à cultura, é no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que os “remanescentes das comunidades dos quilombos” são citados diretamente como sujeitos de direitos, sendo tais direitos eminentemente territoriais. No entanto, ainda que o tema central dos trabalhos produzidos sobre tais comunidades não seja a territorialidade e sua história, os conflitos em torno dela e as ameaças de expropriação, mesmo quando se fala de educação, parentesco, festa, dança, saúde ou alimentação, entre outros, até nesses casos percebemos que as discussões se orientam intrinsecamente associadas ao território, como base material e simbólica de tais comunidades.

Menos comum, talvez inédita, é uma leitura que aborde o vínculo com o território para além do material e do simbólico, em direção ao afeto. O olhar que Mariléa de Almeida lança sobre as mulheres quilombolas, suas biografias e seus projetos, serve para descrever como o afeto é um elemento constituinte de seus espaços de vida, seus projetos coletivos, suas lutas políticas. Mariléa nos faz compreender que, sem ter em conta as relações de afeto, perdemos uma parte fundamental da experiência que sustenta as relações territoriais. Mas também é possível reivindicar aqui as reflexões da antropóloga Jeanne Favret-Saada sobre “ser afetado”, para apreender como o trabalho de Mariléa, além de realizar uma história e um inventário das formas pelas quais o afeto produz espaços de vida nos quilombos, tem no próprio afeto um método, ou uma dimensão central da pesquisa. O modo como a autora se aproxima de suas interlocutoras, destacando as linhas que cruzam e aproximam suas experiências às delas, também acaba por constituir a própria pesquisa como um território de afetos.

Narrando experiências de dezenas de mulheres quilombolas do estado do Rio de Janeiro, este livro é capaz de demonstrar, com sensibilidade, como a luta pode ganhar a forma do cuidado, como a resistência pode se manifestar na ternura, como o território é produzido, atualizado e mantido pela capacidade de criar espaços seguros, nos quais é possível uma reconciliação com as histórias, os corpos e os saberes violados. Pelos olhos, pelos ouvidos e pelas mãos de Mariléa de Almeida, o quilombo torna-se quilombola.

 

JOSÉ MAURÍCIO ARRUTI é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola (Edusc, 2006).

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