Por Danika Ellis
Publicado no The Lesbrary
Audre Lorde é um nome que se destaca na literatura lésbica, na história negra e em seu legado na poesia. Li alguns de seus ensaios e poemas, mas nunca tinha lido um trabalho longo. Zami é sua autobiografia: começa na infância e cobre até seus vinte e poucos anos. Foi interessante ler sobre esse período de sua vida, porque uma parte de mim sempre imaginou Lorde totalmente formada como a figura imponente que ela é. O texto explora diversos assuntos, desde o relacionamento com a mãe, sua educação, seus vários empregos e relacionamentos, e como foi crescer como uma mulher negra gay nos Estados Unidos nos anos 1940 e 1950. Não vemos Audre Lorde como a grande poeta estabelecida, como uma ativista ou liderança do movimento lésbico – em vez disso, acompanhamos sua jornada para chegar lá.
A fundação de Lorde na poesia é profundamente visível em Zami. Algumas passagens são fraseadas poeticamente e, em alguns momentos, são usados trechos inteiros de poemas. Admito que fiquei um pouco intimidada em escolher esse livro por causa da reputação de Lorde como poeta e teórica. Este não é um livro para se apressar: como um poema, está repleto de muitas coisas, é preciso fazer uma pausa e refletir a respeito. Algumas linhas eu não consegui entender, mas essa é a natureza da leitura de poesia.
As observações de Lorde são muitas vezes atemporais ou, de maneira desanimadora, ainda oportunas, enquanto outros aspectos estão firmemente enraizados no espaço de tempo em que ela estava chegando à maioridade. Em alguns momentos, ela parece ter uma juventude selvagem e invejável: muda-se para o México sozinha apenas por amor, entretém um elenco rotativo de amigos empilhados em sua sala, experimentando drogas e vivendo relacionamentos. Na próxima página, vem algo realmente horrível: nós podemos até nos relacionar com a situação de ter que trabalhar em um subemprego quando jovem, mas quando esse trabalho expõe a garota a níveis prejudiciais de radiação – que levam a um câncer mais tarde na vida –, a coisa muda de figura. Nos relacionamos com a jovem Lorde quando ela experimenta o poliamor, vai criando entendimento de suas vivências lésbicas, tem problemas de comunicação nos relacionamentos; mas quando ela conta que sua parceira passou por tratamento de choque para curar a sua “doença mental”, é muito diferente. Também foi surreal ver eventos históricos ocorrerem casualmente em sua vida, como o macarthismo, que resultou no FBI aparecendo em sua porta várias vezes.
Seu cabelo crespo brilhava sob o sol de verão, enquanto sua grande barriga orgulhosa a movia pelo quarteirão e eu assistia, sem me importar se ela era ou não um poema. Ainda que amarrasse meus sapatos e tentasse espiar o que acontecia sob sua blusa quando ela passava, nunca falei com ela, porque minha mãe não falava. Mas eu amava DeLois porque ela caminhava como se sentisse que era alguém especial, como se fosse alguém que eu gostaria de conhecer um dia. Ela caminhava como eu achava que a mãe de deus deve ter caminhado, assim como a minha mãe, num tempo remoto, e talvez, algum dia, eu mesma.
A estrutura de Zami é um passeio pelas mulheres que moldaram a vida de Lorde, desde sua mãe e os relacionamentos amorosos duradouros, até breves amizades ou desafetos. Foi muito interessante ver como Lorde foi entendendo sua orientação sexual: essa não é uma história de “sair do armário” – não há uma revelação chorosa para sua mãe, nenhuma turbulência sobre a escolha de um rótulo. Pelo contrário, Lorde apenas registra a exploração gradual de seus sentimentos por mulheres. Sua observação sobre lésbicas ainda me parece muito aplicável:
Conhecer outras lésbicas era bastante difícil, exceto nos bares, que eu não frequentava porque não bebia. A pessoa lia a revista The Ladder e o boletim informativo da Daughters of Bilitis e ficava se perguntando onde estavam as garotas gays. Muitas vezes, descobrir que outra mulher era gay já era razão suficiente para tentar um relacionamento, para tentar alguma conexão em nome do amor, sem antes considerar que, na verdade, as duas pessoas podiam ser muito incompatíveis. Tais eram os resultados da solidão, e esse era, certamente, o caso entre mim e Bea.
Essa solidão e confusão sobre sair do armário ou apenas começar a se relacionar é, infelizmente, algo com que lésbicas e mulheres queer ainda lidam.
Maravilhada, mas não surpresa, fiquei quieta, finalmente, com meus braços em volta da Ginger. Então era isso que eu temia tanto não fazer direito. Quão ridículos e distantes esses medos pareciam agora, como se amar fosse uma tarefa fora do meu alcance, em vez de simplesmente abrir os braços e deixar meu próprio desejo me guiar. Era tudo tão simples. Eu me sentia tão bem que sorria na escuridão. Ginger se aninhou mais perto.
Ler sobre os primeiros relacionamentos de Lorde – intoxicantes e ardentes – foi dolorosamente nostálgico. Eu queria percorrer as páginas e tentar conversar com ela, debater sobre as decisões, mas só porque tenho vontade de fazer a mesma coisa com meu próprio passado.
Estivéramos famintas por amor durante tanto tempo que queríamos acreditar que o amor, uma vez encontrado, era todo-poderoso. Queríamos acreditar que ele poderia fornecer palavras para as minhas dores e raivas desconexas; que ele poderia fazer Muriel encarar o mundo e conseguir um emprego; que ele poderia libertar nossos escritos, curar o racismo, acabar com a homofobia e com a acne na adolescência. Éramos como mulheres famintas que passam a acreditar que a comida vai curar todas as dores do presente, além de sanar todas as feridas antigas da ausência.
Suas parceiras românticas não são as únicas mulheres retratadas em Zami. Uma personagem interessante é a colega de quarto de Lorde que se dedicava à causa feminista. Infelizmente, o movimento feminista na época era bastante homofóbico, se apoiando na falácia de que ser gay seria “burguês e reacionário”. (O que não deixa de ser curioso, já que o governo da época parecia associar as pessoas queer ao comunismo). Essa colega de quarto teve uma série de relacionamentos desastrosos com homens, e Lorde especula sobre como ela deve ter se sentido ao ver seu feliz relacionamento “incorreto” com uma mulher. As rupturas dentro do próprio movimento feminista também ecoam até hoje:
Cada uma das mulheres do nosso grupo tomava como certo, e o diria se fosse questionada, que estávamos todas do lado da justiça. Mas a natureza dessa justiça, do lado da qual se presumia que todas estavam, nunca era nomeada.
Claramente, a mulher que desempenhou o maior papel em sua infância foi sua mãe. Essa é uma figura quase mítica nos primeiros capítulos – adequada para a maneira que uma criança percebe seus pais. Ela exige atenção e respeito. Ela é forte, implacável, e Lorde cresceria para colidir com ela – e, então, vemos muito pouco dessa mãe depois da adolescência da autora. Isso faz sentido do ponto de vista da vida real, mas do ponto de vista da história, eu queria ver mais dela. Sem surpresa, o racismo desempenha um papel importante nessa narrativa, e vemos como os pais de Lorde tentam protegê-la. Como quando brancos na rua cospem na jaqueta de Audre, de 4 anos, e sua mãe a limpa com um lenço que carrega exatamente para esse fim. Como quando Audre pede para comer no vagão-restaurante de um trem e seus pais dizem que é muito caro – quando, na verdade, era proibido. Claro, eles não puderem proteger Lorde do racismo cotidiano de crescer negra nos anos 1940 e 1950. Isso inclusive confundiu Lorde, que, quando criança, internalizou a maneira como era agredida por outras pessoas como algo pessoal, e não como fruto do racismo.
Uma vez conversamos sobre como as mulheres negras tinham sido forçadas a empreender campanhas dentro das fortalezas dos inimigos, em excesso e com muita frequência, e sobre como nossas paisagens psíquicas haviam sido roubadas e esgotadas por essas repetidas batalhas e campanhas.
Não foi até Lorde crescer que ela começou a realmente entender que era tratada de forma diferente por ser uma mulher negra. Ela sonha em ir para o México e, para isso, trabalha em empregos exaustivos e alienantes para economizar o dinheiro. Quando realiza seu sonho, a autora se deleita em poder olhar ao redor, cercada por rostos não brancos, e encontrar pessoas que eram amigáveis e curiosas sobre ela, e não hostis.
Lorde enfrenta as opressões entrelaçadas por ser negra, lésbica e mulher, encontrando pouquíssimas pessoas com quem se relacionar: a maioria das lésbicas negras era muito fechada, ela explica. Ser uma mulher negra era uma condição difícil o suficiente, e ser mulher, negra e gay publicamente, um suicídio. Nos círculos lésbicos, sua negritude é apagada. Sua namorada branca era confiante de que ser gay é equivalente a ser negro: ambos são párias. Lorde não consegue sequer encontrar palavras ou forças para argumentar com ela sobre isso. O livro termina com um encontro sexual com outra lésbica negra e, embora seja um relacionamento breve, é um suspiro de alívio vê-la viver uma conexão em que não precisa explicar ou esconder nenhum aspecto de si mesma.
Eu me lembro de como me sentia sendo jovem, negra, gay e solitária. Com relação a grande parte disso eu estava tranquila, sentindo que tinha a verdade, a clareza e a solução, mas outra grande parte foi um verdadeiro inferno.
Não havia mães, nem irmãs, nem heroínas. Tínhamos de seguir sozinhas, como nossas irmãs amazonas, as cavaleiras nos postos avançados mais solitários do Reino do Daomé. Nós, jovens e negras e lindas e gays, sobrevivemos ao nosso primeiro coração partido sem amigas de escola ou de trabalho para trocar confidências durante a hora do almoço. Assim como não havia alianças para tornar tangível a razão dos nossos sorrisos secretos e contentes, não havia nomes nem razões dadas ou compartilhadas para as lágrimas que estragavam os trabalhos escolares de ciências ou os recibos da biblioteca.
Éramos boas ouvintes e nunca sugeríamos encontros de casais; afinal, não conhecíamos as regras? Por que sempre parecíamos pensar que amizades entre mulheres eram suficientemente relevantes para que nos importássemos com elas? Transitávamos o tempo todo num resguardo necessário, que fazia a pergunta “O que você fez no fim de semana?” soar impertinente. Descobrimos e exploramos sozinhas nossa atração por mulheres, às vezes em segredo, às vezes em rebeldia, e outras vezes em pequenos círculos que quase se tocavam (“Por que essas garotinhas negras estão sempre cochichando ou brigando?”), mas sempre sozinhas, contra uma solidão maior. Iniciávamos abruptamente, e, embora isso tenha resultado em mulheres fortes e imaginativas entre as sobreviventes, muitas de nós nem sequer sobreviveram.
Zami não é uma leitura fácil. Lorde passa por situações horríveis, incluindo um aborto ilegal e extremamente inseguro. Existem gatilhos sobre pedofilia, fantasia de incesto, automutilação, racismo e homofobia. É também um livro que pede para ser lido com calma e reflexão. Eu sinto como se tivesse apenas arranhado a superfície dele. Não espere que esta seja a história completa de Audre Lorde – é mais como o prólogo da mulher que conhecemos.