Por Ana Requena Aguilar
Publicado no El Diario
O desafio poliamoroso , da escritora, ativista LGBT e feminista catalã Brigitte Vasallo, é um misto de reflexão, crítica e proposta para desmantelar “a pirâmide da monogamia” que tem experimentado grande sucesso editorial na Espanha, onde foi publicado originalmente. Nos eventos de que participa, Vasallo critica os discursos fáceis sobre amor e politiza o sexo e o afeto. A monogamia é o sistema, mas alternativas — como o poliamor — não pode ser vistas como uma solução caso não desmantelem as lógicas e os valores sobre os quais se constróem as relações.
“Há muito a se considerar e desmontar: quanto tempo você dedica ao seu parceiro e quanto aos seus amigos; se antes de ir morar com seu parceiro você considerou se quer viver de outra maneira, por exemplo, com seus amigos, mesmo que pareça que você só pode fazer isso enquanto tem 20 anos; se há espaço para viajar com outros amigos, e não apenas com seu parceiro… Se desmontamos todas essas coisas, transar com alguém ou não acaba tendo muito pouco peso, mas precisamos tirar esse peso questionando todo o quadro”, explica.
Por que é tão difícil para nós questionar em voz alta os valores sobre os quais um casal é construído, colocar a exclusividade sexual ou afetiva na mesa, ou até mesmo dizer que as coisas estão dando errado em um relacionamento amoroso? “Porque nossa identidade está baseada nisso”, defende. Vasallo também se opõe a um modelo de poliamor em que tudo é ideal. “No poliamor você também pode sentir ciúmes, possessividade… Pode parecer que, a partir do momento em que você entra no poliamor, vale tudo. E não é assim.”
O livro não fala apenas sobre a monogamia, mas sobre identidade e pensamento monogâmicos. O que seriam?
Eu analiso como esse sistema amoroso que estabelece uma distribuição de nossos afetos e alianças é transferido para outras facetas da nossa construção comunitária. O pensamento monogâmico consiste em formar grupos, que também são grupos de salvação e proteção: fazer uma pátria ou um grupo ativista ou um casal não é algo frívolo ou casual: vivemos em um mundo muito duro em que precisamos ter comunidades, e temos nos configurado dessa maneira.
Então, montamos aquela comunidade à qual nos apegamos como salvação, acreditando que não haverá desigualdades, porque é a promessa que nos fazem; e acreditamos que essa identidade será superior a todas as outras e será confrontada com todas as outras. O pensamento monogâmico cria essas identidades hierárquicas, é uma entidade supremacista, em confronto com as demais. Entendemos que, se gostamos de alguém, temos que casar, nos comprometer pra vida toda, temos que comprar o pacote completo e para sempre. Sequer pensamos se estamos interessados em fazer uma aliança pontual.
Você afirma no livro que não se trata apenas da construção entre duas pessoas, mas da construção de valores e ideias que nem sequer questionamos… Que coisas tomamos como certas quando construímos nossos relacionamentos como casal?
Para começar, tem que ser em casal, e quando digo casal, forçando a gramática, não quero dizer que são duas pessoas — podem ser três ou cinco. Tomamos como certo a ideia de que amores e desejos têm que carregar a projeção de um casal, entendendo isso como algo que gera essa identidade conjunta, essa fusão entre duas ou mais pessoas. Não questionamos o percurso do casal, a escalada: se gostarmos um do outro e tudo correr bem, damos por certo que vamos ser um casal, vamos viver juntos…
Em muitos momentos de nossas jornadas amorosas, há um instante em que você para e se pergunta: “Como cheguei aqui? Quando tomei essas decisões?” Isso acontece porque são muitas as decisões que tomamos por padrão, pois são o único caminho que nos foi ensinado, que são válidos, que nos farão bem, que nos levarão à estabilidade emocional — ainda que inúmeras vezes possamos ver que não necessariamente é bem assim. Precisamos tornar o sistema visível para que possamos tomar decisões com consciência.
Mas isso é difícil de explicar ou entender quando há tantas coisas que damos como certas ou que acreditamos serem naturais: o que se sente ao se apaixonar, o desejo que parece incontrolável, a sensação de que não podemos tomar decisões sobre o que queremos sentir… Isso é mentira, podemos tomar decisões sobre nossos desejos e afetos?
Totalmente. Somos treinados pelo sistema para tomar decisões de forma específica. As pessoas sempre me dizem “eu sinto isso” como se o fato de sentir algo justificasse sua naturalidade e incontrolabilidade. Dou um exemplo: vamos imaginar que caminhamos por um cemitério à noite. A sensação que temos é de medo, embora não tenhamos a experiência real de ter visto um morto que ressuscitou do túmulo para fazer algo a você ou a alguém. O que sentimos também é muito mediado por narrativas ou fantasias que têm conteúdo social. Então, é claro que sentimos essas coisas, mas podemos experimentá-las de outras maneiras que serão mais saudáveis e coletivas. Além disso, se o desejo é algo que nos invade e nos toma, isso relacionado à cultura do estupro é um discurso problemático.
Então, falamos de repensar ou questionar o desejo…
Eu acho que uma das razões pelas quais o desejo foi deixado de fora da tomada de decisão é que ele também foi deixado de fora dos espaços de politização, porque tradicionalmente esses espaços trabalhavam em questões “importantes”, em termos patriarcais, como a economia. Nossa afetividade é importante e passa por tudo, temos que colocá-la politicamente na mesa também.
Sua crítica é feita não apenas à monogamia, mas a alternativas a ela, como o poliamor. Em seu livro, você alerta que exatamente a mesma escalada de ideias e decisões pode ser reproduzida em relacionamentos não monogâmicos. Uma das coisas que motivaria a escapar disso, seja qual for o nosso tipo de relação, seria justamente tomar consciência de nossas decisões, ou decidir pensando em todas as pessoas da rede afetiva.
Sim, uma das coisas que me parecem importantes, independente da forma relacional em que você esteja, que combina com você ou que seja possível para você, é diminuir o volume do casal. E isso significa construir as formas sociais que nos permitam diminuir o volume, para que não se ponha tanto em jogo em torno do casal — justamente pela questão da violência, da opressão da mulher, para que se possam criar redes mais amplas… Por exemplo, se todas as redes de apoio são baseadas no sangue e no casal, elas continham sendo, necessariamente, muito reduzidas.
De tempos em tempos, nos deparamos com estudos científicos que buscam uma espécie de validação científica da monogamia, respostas sobre se nos relacionávamos assim no passado. Por que existe essa obsessão em buscar respostas biológicas para esse modo social de se relacionar?
Esses estudos científicos tendem a reforçar o hegemônico. Nunca li artigos que dizem que a lesbianidade é normal, ou que o capitalismo não é natural. São também conclusões racistas, porque existem muitos grupos humanos que não têm relações exclusivas. Então, o que podemos dizer: que esses grupos são geneticamente diferentes ou inferiores? Esses estudos existem para reforçar a tese da antropologia que ainda estamos arrastando, de que a família heterossexual, burguesa, eurocêntrica é normal e as restantes são atrasadas.
No momento em que a monogamia foi imposta sistemicamente — porque a monogamia não é uma prática, é um sistema —, ou seja, o momento em que outra possibilidade de vida desapareceu, foi o momento da implantação do capitalismo e da primeira expansão colonial e genocida da Europa. Todos esses sistemas são construídos juntos. Pensar que a família nuclear é uma forma superior de relacionamento também sugere que essa forma cultural que gera essa família também é superior.
Você sustenta que a monogamia não é uma prática, mas um sistema, um sistema opressor?
Todos os sistemas são opressores enquanto sistemas, porque um sistema é definido para que não haja outras alternativas, para que tudo necessariamente leve você até lá, e isso já é uma opressão em si. Se contarmos quanta violência existe em nome dessa forma de amor, então ela não apenas é opressiva, mas gera violência. Isso não significa que seu parceiro seja especificamente um opressor ou que alguém me oprima porque tenho um parceiro exclusivo. Não se trata de pensar soluções individuais para problemas coletivos, trata-se do fato de que o sistema não nos deixa outra alternativa.
Você diz no livro que está muito claro que a exclusividade sexual não funciona, mas que continuamos insistindo em aplicá-la, que ela é socialmente sacralizada. Por quê?
Continuamos praticando a exclusividade sexual dentro do casal porque precisamos, porque quando construímos a relação com base em todos esses parâmetros, quando construímos essa identidade conjunta, a exclusividade é quase dada. A partir daí, é muito difícil aceitar que aquela pessoa — com quem a sua relação também lhe confere um valor pessoal, social, que também constrói sua própria identidade — tenha outra pessoa. Na minha opinião, para abordar a questão da exclusividade, devemos abordar primeiro a forma como construímos relacionamentos. Eu acredito que a exclusividade não pode ser desmontada sem reflexão, para não fazer mal nem a si mesmo e nem aos outros.
O que deveríamos desmantelar antes da exclusividade sexual?
A forma como construímos o casal. Por exemplo, todas aquelas sensações físicas que atribuímos ao “amor ou paixão verdadeiros”, temos que colocá-las na mesa e tomar alguma distância. E pensar se é isso que realmente queremos experimentar: ansiedade, falta de concentração, falta de sono, você não come ou come demais… tudo porque encontrou alguém de quem gosta e que gosta de você. É realmente necessário viver dessa maneira ou existem outras? Pensar no quanto estamos fazendo da nossa parte para que isso aconteça, o quanto é autossugestão, quantas coisas de que não gostamos no outro acabamos deixando de lado porque queremos continuar viciados nessas sensações. Enxergar essas questões não tira o interesse ou a emoção de um relacionamento — tira o risco dela. Me preocupa, por exemplo, o motivo pelo qual não saímos de relacionamentos quando vem a violência. Tecer redes facilitaria a fuga, falando também de culpa, construindo linhas de fuga juntos. Criticamos muito o amor romântico, mas depois olhamos nossas redes sociais e é pura propaganda do amor romântico. Você também está mandando mensagens para os outros assim: olha, amor romântico é uma merda, mas eu vivo um amor romântico.
Você ressalta que tendemos a aplicar dois modelos: ou a lógica romantizante das relações de casal ou a lógica do sexo casual. Na sua opinião, devemos desconstruir isso ou construir algo no meio?
O discurso poliamoroso menos politizado talvez seja muito insistente em dizer que “isso é amor, não é apenas sexo”. Eu entendo de onde vem essa ideia, mas ela também é problemática. Porque não podemos criminalizar o sexo: vamos analisar como o sexo pode ser cuidadoso e construir as condições para que o seja. E, ao mesmo tempo, ver como desromantizamos afetos e construímos nossos relacionamentos de outra forma.
“Metamor” é um dos conceitos que você acredita que pode fazer a diferença entre um tipo de relacionamento e outro. Por que essa é uma das diferenças?
“Metamor” é a palavra poliamorosa que usamos para falar sobre o outro relacionamento ou relacionamentos de uma pessoa que tem um relacionamento com você. Seríamos metamores duas pessoas ligadas a uma terceira pessoa. Para mim, o que torna uma relação compreensível como monogâmica ou não é essa relação entre metamores. Se for uma relação de cooperação, em que todos querem o bem comum, isso é uma mudança de dinâmica. Se for um relacionamento competitivo para ver quem fica com o maior pedaço do bolo, é mais do mesmo com outro nome. A cooperação tem que ser entre todes.
Há pessoas que costumam se sentir muito atacadas com este tipo de entrevista ou artigo em que se questiona a monogamia e o amor romântico. Eu posso até imaginar o tipo de comentário que vai surgir com essa publicação: “Eu vivo em casal porque quero!”, “Não sei por que estão tentando me dizer que vivo em um modelo opressor!”, “Se você ama alguém de verdade, não vai querer transar com outra pessoa”. O que você diria a eles?
Não se trata de quem é mais oprimido, trata-se de todos nós fazendo o que podemos. Mas também trata-se do fato de que existe um sistema que governa a todos nós e que estamos todos dentro desse sistema. Tornar o sistema visível é útil, não precisamos ter medo disso. E se depois de ver, for o que combina com você, ótimo. Entender o que nos acontece, o que vivemos e como é regido não me parece ser algo prejudicial a ninguém.