Gaza e os filhos de Eichmann

Por Tadeu Breda
editor

 

Algumas madrugadas atrás despertei às 3h40, inundado por pensamentos sobre o massacre israelense em Gaza. Insone, angustiado, escrevi estes pobres, pobres versos: “debaixo dos escombros/ há pessoas mortas/ debaixo dos escombros/ crianças/ mortas/ há/ debaixo dos escombros/ corpos/ pessoas/ havia”. No dia anterior, eu tinha finalmente decidido ver as imagens que o fotógrafo Motaz Azaiza, de Gaza, publica em seu perfil do Instagram. Numa delas, pequenos pontos luminosos surgem bem alto no céu escuro da noite. Assim que desaparecem, uma enorme explosão acontece a menos de cinquenta metros, destruindo um edifício. Os pontos luminosos eram mísseis. Azaiza está na porta de um hospital. Após o estrondo, corre para dentro, desesperado. No dia seguinte, quando amanhece, ele aparece em meio aos destroços, junto aos sobreviventes que retiram cadáveres endurecidos e empoeirados e partes de corpos humanos chamuscados de uma montanha contorcida de concreto. Imediatamente, desativo a tela do celular. Para mim, é impossível sustentar o olhar nessas imagens. A vontade de vomitar é imediata. A raiva, incontrolável.

Desde o começo da ofensiva israelense, em 8 de outubro, acompanhar as notícias (estou lendo assiduamente Haaretz, Guardian, Folha, Middle East Eye, Al Jazeera) me dá a nítida sensação de que viver e morrer em Gaza durante os bombardeios é uma loteria. Essa sensação se confirmou após mísseis disparados por Israel atingirem o Hospital Batista Al-Ahli, uma escola da Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos e uma igreja católica ortodoxa grega, em um intervalo de dois dias, com centenas de mortos e feridos. As Forças de Defesa de Israel admitem ter lançado mais de seis mil bombas sobre Gaza apenas na primeira semana da ofensiva. Não encontrei informações sobre quantas mais foram disparadas nos dias subsequentes — já faz mais de quinze dias que mísseis são lançados ininterruptamente sobre essa faixa de 365 quilômetros quadrados (equivalente a um quarto da cidade de São Paulo) onde vivem 2,5 milhões de pessoas, metade crianças. Os bombardeios — que não cessam e, pelo contrário, serão intensificados — já mataram mais de cinco mil palestinos, dos quais mais de mil são mulheres e mais de dois mil, crianças. Um feminicídio e um infanticídio brutais.

O exército israelense publica orgulhosamente nas redes sociais imagens aéreas dos seus modernos mísseis reduzindo edifícios a pó. Na noite de 19 para 20 de outubro, as Forças de Defesa de Israel gabaram-se de ter feito centenas de bombardeios em Gaza, destruindo vizinhanças inteiras. As fotos aéreas dos drones israelenses revelam quarteirões transformados em escombros. É uma perspectiva diametralmente oposta à de Motaz Azaiza. Os vídeos de Israel focalizam prédios, depois um clarão toma conta da tela, e então aparecem nuvens de fumaça e entulho. As fotos in loco de Azaiza mostram o céu enrubescido e, em seguida, o resultado: corpos destroçados, sacos brancos recheados de cadáveres (muito deles, pequenininhos), gente chorando, se desesperando, buscando algum alento no celular, estendendo as mãos para o céu e gritando para um Alá silencioso.

Enquanto não suporto encarar as postagens do fotógrafo palestino, consigo olhar sem maiores problemas para as tomadas distantes e distorcidas das câmeras noturnas que registram, lá do alto, os bombardeiros israelenses. Azaiza mostra a morte. Israel mostra a destruição. Azaiza retrata o drama e o sofrimento dos palestinos — vivos e mortos. Israel enfoca sua própria e gigantesca capacidade bélica. As imagens de Azaiza são de carne e osso. As israelenses, maquinais.

Para além de repisar a constatação de que vidas palestinas não importam (uma obviedade a essa altura da história e do recente conflito, bem como da reação internacional ao bombardeio sobre Gaza), assim como, no passado, vidas judaicas tampouco importaram para a mesma comunidade internacional que hoje se solidariza acriticamente com os israelenses, gostaria de chamar o pensador judeu Günther Anders para a conversa e tecer alguns comentários sobre o mais novo episódio da questão israelo-palestina à luz de Nós, filhos de Eichmann, carta aberta que o filósofo escreve a Klaus Eichmann após seu pai (Adolf Eichmann, oficial alemão responsável pela logística dos campos de extermínio nazistas) ter sido sequestrado, julgado e executado pelo então nascente Estado de Israel.

No livro, Anders se dedica a responder à seguinte pergunta: “O que tornou o monstruoso possível?”. É claro que sua referência imediata é o holocausto liderado por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. O extermínio de seis milhões de judeus é uma das expressões do monstruoso — talvez a maior e mais horrenda, mas certamente não a única. “A primeira resposta a essa pergunta soa banal. Pois ela é: não importa em qual nação industrializada vivamos, e não importa o nome político que ela tenha, nós nos tornamos criaturas de um mundo técnico”, escreve o filósofo, argumentando que “aquilo que nós agora conseguimos fazer (e por isso realmente fazemos) é maior que aquilo do qual conseguimos fazer uma imagem”.

Para Anders, “os objetos que estamos acostumados a produzir com o auxílio de nossa técnica, impossível de ser contida, e os efeitos que somos capazes de desencadear são tão grandes e tão explosivos que nós não mais conseguimos compreendê-los, que dirá então identificá-los como nossos”. O holocausto só alcançou tamanha capacidade de extermínio porque recorreu ao desenvolvimento técnico — e comunicacional e administrativo — disponível na época, industrializando a matança. Após uma intensa campanha de desumanização do Outro, os judeus (e ciganos e homossexuais e comunistas) deveriam ser colocados em trens, levados a campos de concentração, colocados em câmaras de gás e incinerados, antes que outras locomotivas chegassem puxando vagões com mais seres humanos indesejáveis pelo Terceiro Reich, destinados ao mesmo fim. Propaganda. Gerenciamento. Obediência. Eficiência.

A máquina de morte nazista girava longe dos olhos da população. Apenas uma parte da soldadesca fazia o serviço sujo. Oficiais, como Eichmann, assinavam, carimbavam, ordenavam. Como não tinham o horror cotidianamente diante dos olhos, podiam até mesmo, como lembra Anders, sentir o estômago revirar ao ver o sangue da massa de mortos jorrar do chão. O filósofo, então, emula um dos raciocínios que possibilitam a monstruosidade: “Eu não vejo diante de mim os milhões de pessoas que mandei serem assassinadas por gás. Eu não consigo vê-las diante de mim. Logo, posso tranquilamente mandar que as matem com gás”.

A tecnificação do massacre empreendido por Israel em Gaza funciona de modo semelhante. Poderiam os israelenses — e os seus apoiadores espalhados pelo mundo — sustentar a recente ofensiva se vissem e sentissem diariamente o cheiro do sangue da massa de mortos que jorra pelo chão, como o veem e o sentem permanentemente as equipes médicas dos hospitais de Gaza, repletos de feridos e cadáveres, e sem equipamentos e insumos suficientes, que não chegam devido ao bloqueio israelense?; se, todos os dias, como Motaz Azaiza e tantos palestinos, fossem cavoucar com as mãos residências reduzidas a escombros atrás de cadáveres empoeirados e sobreviventes que gritam sabendo que não serão resgatados e que muito provavelmente morrerão ali debaixo embalados pelo som de mais bombas?; se tocassem corpos de crianças desfiguradas ao invés de apenas olhar para sacos brancos recheados com sabe-se lá o quê?

Eu gostaria de acreditar que, confrontando-se com as imagens da monstruosidade que os militares israelenses estão produzindo em Gaza, o povo de Israel e seus apoiadores pudessem entender que uma atrocidade não justifica outra, que ao longo dos anos o exército israelense já cometeu atrocidades demais, e apenas parassem. Mas não acredito nisso, assim como não acredito que o povo alemão agiria para interromper o holocausto se recebesse imagens dos guetos e dos campos de concentração em tempo real. Isso, porém, é mera especulação.

O fato é que, hoje, a informação está disponível em profusão. A internet e a energia elétrica estão cortadas em Gaza, não em Israel — nem na Europa nem nos Estados Unidos. Qualquer um se sensibilizaria, se pudesse. Porém, como escreve Anders, “quando aquilo a que nós deveríamos realmente reagir se torna desmesurado, falha também nosso sentir. Não importa se esse ‘desmesurado’ se refere a planos, desempenhos de produção ou ações já realizadas, o ‘grande demais’ nos torna frios, ou melhor (pois também a frieza seria ainda uma espécie de sentimento), nem mesmo frios, mas completamente indiferentes: tornamo-nos ‘analfabetos emocionais’, que, confrontados com ‘textos grandes demais’, simplesmente não reconhecem mais estarem diante de textos. Seis milhões [ou cinco mil palestinos agora, e contando] permanece, para nós, um número, enquanto a notícia de dez assassinados talvez ainda possa ressoar em nós, e o assassinato de uma única pessoa nos enche de horror”.

Aqui, além da tecnificação da morte, a desumanização desempenha papel fundamental. E têm sido intensas as manifestações de desumanização dos palestinos emanadas de altas autoridades do governo e do exército israelenses nos últimos dias. O termo “animais humanos”, pronunciado pelo ministro da Defesa, Yoav Gallant, é apenas o mais explícito deles. A vontade de varrer os palestinos do mapa ficou cristalina durante o discurso do premiê Benjamin Netanyahu na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 22 de setembro, quando mostrou ao mundo um mapa intitulado “Novo Oriente Médio” no qual não havia Gaza ou Cisjordânia. Esse projeto de expulsão, expressado de forma ainda mais transparente pelas mensagens de Israel para que os palestinos que não queiram morrer saiam de Gaza o quanto antes — não se sabe por onde nem para onde, mas se sabe que, caso consigam cruzar a fronteira, jamais serão autorizados a regressar —, é um projeto de apagamento, de limpeza étnica, de extermínio. Um genocídio, com todas as letras.

Em certo sentido, e com números (números, novamente números) menores, Gaza, hoje, tornou-se uma mistura de Auschwitz e Hiroshima: uma prisão a céu aberto, um gueto, um campo de concentração de onde só é permitido para alguns palestinos saírem para trabalhar como mão de obra barata em Israel (“Arbeit macht frei”), não sem antes se submeterem a revistas e controles humilhantes, e que, em dez dias, recebeu carga explosiva semelhante a 25% de uma bomba atômica. As duas maiores monstruosidades do século XX, o holocausto e a bomba, exaustivamente debatidas (embora não suficientemente condenadas) pela história e pela indústria cultural, não impediram que novas monstruosidades ocorressem no próprio século XX, com o auxílio das tecnologias mais avançadas de cada época — que hoje podem ser representadas por drones assassinos e mísseis de extrema precisão, além das redes sociais.

“É incontestável que a maquinização do mundo, e com ela a nossa comaquinização, desde ontem avançou da forma mais terrível”, continua Anders, para quem “o soberbo silêncio e a soberba alegria da cultura” que dominaram o pós-guerra no Ocidente, com a criação da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as Convenções de Genebra, a expansão do estado de bem-estar social (e a criação do Estado de Israel) eram apenas “uma calmaria entre duas tempestades, um sono a que o mundo monstruoso se permite entre as monstruosidades de ontem e de amanhã”. De acordo com o filósofo, “amanhã a tempestade já poderá irromper novamente. E depois de amanhã poderá outra vez ocorrer que nós, caso pareça oportuno à máquina, sejamos novamente empregados como suas equipes de serviço ou como vítimas de seus objetivos de extermínio. Em todos os casos, é claro, como vítimas”.

Hoje, Estados Unidos e Europa — o Ocidente, a autoproclamada civilização — se colocam, de maneira inédita na contemporaneidade, como fiadores de um genocídio e de um infanticídio. Apressaram-se para prestar solidariedade a Israel nas primeiras horas após o ataque pedestre do Hamas. Enquanto a União Europeia anunciava o congelamento das migalhas que destina ao “desenvolvimento” da Palestina, enquanto a Feira do Livro de Frankfurt desistia de homenagear a escritora palestina Adania Shibli, enquanto vários países europeus proibiam manifestações em solidariedade aos palestinos, Washington não titubeou em mandar mais dinheiro, mais armas e duas frotas lideradas por porta-aviões para garantir que Israel massacrasse Gaza sem ser aborrecido por nenhum vizinho. Joe Biden desembarcou em Tel Aviv para uma reunião com Netanyahu, Gallant e outros membros do gabinete genocida israelense mesmo depois do bombardeio do Hospital Batista Al-Ahli (que só pode ter sido cometido pelos seus nobres aliados, uma vez que nenhum grupo palestino possui armas capazes de provocar quinhentas mortes em uma única explosão — caso contrário, elas já teriam sido empregadas do lado de lá do cerco). O premiê britânico, Rishi Sunak, faria visita semelhante no dia seguinte. Antes, o chanceler alemão, Olaf Scholz, confraternizara com Netanyahu em Israel.

Claro que Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha e outras potências europeias foram forjadas no genocídio de povos indígenas, africanos e asiáticos — os quais, apesar dos números (números, números) escandalosos, jamais receberam a devida condenação pública e, muito menos, a devida reparação histórica. Claro que compartilham com Israel uma vocação colonizadora, um “destino manifesto”, uma aura de superioridade perante o selvagem — cada um tem o seu. Claro que o Ocidente cometeu as maiores atrocidades em nome dos mais nobres valores. Contudo, pelo menos desde o fim da Guerra Fria, as intervenções internacionais ao menos tinham um verniz “civilizatório” (obviamente com muitas aspas): derrubar ditaduras e restabelecer a democracia (Iraque, Afeganistão) e a paz (Somália, Haiti), interromper genocídios (Bálcãs, Ruanda). Havia uma mínima preocupação em criar narrativas hipócritas que se enquadrassem nas ideias de direitos humanos, democracia, liberdade. Agora, o Ocidente age deliberadamente para sustentar um regime colonial, opressor e genocida, que pratica um indisfarçável apartheid étnico e religioso, uma teocracia que, por ser uma teocracia judaica — e não islâmica —, as democracias ocidentais consideram uma democracia.

(Pode-se dizer e certamente se dirá: “Nada disso, o Ocidente está apoiando Israel no combate ao terrorismo do Hamas”. É o que diz a propaganda das Forças de Defesa de Israel: “Ou você está com Israel, ou você está com o terrorismo”. Podemos abreviar muito esse debate recorrendo aos acontecimentos dos últimos dias. Quem é mais destrutivo? Quem mata mais civis inocentes? Quem mais realiza ataques sem chances de defesa? O que é terrorismo? Quem é terrorista? O rótulo de “terrorista” mais ajuda ou mais atrapalha a análise? Os israelenses repetem ad nauseam que os combatentes palestinos se escondem atrás de crianças, em mais um discurso de desumanização — afinal, seres humanos jamais fariam coisa parecida —, mas não falam que Israel se esconde atrás de dinheiro, armas, porta-aviões e tecnologia militar avançada do Ocidente. Além disso, quantas vezes já se ouviu falar nos grupos terroristas judaicos, como Lehava e Kach e Kahane Chai, do qual o ministro da Segurança Nacional israelense, Itamar Ben-Gvir, foi membro durante a juventude?)

Por outro lado, as nações consideradas o avesso da democracia e dos direitos humanos, como Irã, Qatar e Rússia, vêm exigindo insistentemente um cessar-fogo. Interesses escusos, todos têm. Mas, se o traço de humanidade, aqui, está em interromper o massacre em Gaza (porque, sim, vidas palestinas importam) e buscar uma solução política para o impasse envolvendo crianças, idosos, mulheres, civis capturados como reféns pelo Hamas em Israel sem que o exército israelense tenha agido com a rapidez com que sempre agiu contra qualquer agressão dos vizinhos, é legítimo dizer que, hoje, o Irã está trabalhando pela vida (dos palestinos e dos reféns mantidos pelo Hamas, também sujeitos aos incessantes bombardeios) muito mais do que os Estados Unidos e a Europa — e certamente muito mais que Israel. Lidemos com isso.

E lidemos também com o fato de que a explosão de violência do Hamas — que tristemente massacrou 1,4 mil pessoas em Israel, sendo catorze crianças, e sequestrou outras duzentas — não é um raio em céu azul. Não é possível debater a questão israelo-palestina sem recorrer à história. Há quem queira voltar aos tempos bíblicos para discutir a quem pertence a “terra prometida”. É um debate legítimo, mas, caso ele seja travado pelos judeus contra os palestinos (ou vice-versa), também deve ser travado pelos indígenas contra os brancos nas Américas e por tantos outros povos colonizados ao redor do mundo. Na inviabilidade de reverter os fluxos migratórios espontâneos, coloniais ou forçados ocorridos nos últimos cinco mil anos, o marco de 1947 é essencial. Com ele, veremos como as Nações Unidas dividiram igualmente o território entre palestinos e judeus e como os acordos jamais foram respeitados, porque a Grã-Bretanha, que colonizava a região e que deveria fazer cumprir a determinação da ONU, se retirou e permitiu a eclosão de uma guerra civil vencida pelos judeus com apoio do Ocidente.

Foi assim que a Europa se livrou de dois problemas: expiou sua culpa pelo holocausto (ápice do antissemitismo, uma invenção e uma tradição europeia por excelência) e mandou os judeus para fora de seu território, onde desde a Idade Média enfrentaram sucessivas perseguições, para criar um Estado ali onde determina seu mito de origem. Diante de solução tão “perfeita”, apoiar o massacre de palestinos (muçulmanos e cristãos) não significou um empecilho. Veio a nakba. Territórios foram tomados. Os vizinhos árabes reagiram. Israel — novamente, com apoio do Ocidente — venceu militarmente todos eles e tomou-lhes mais terra. Os palestinos foram confinados em Gaza e na Cisjordânia e começaram um longo processo de resistência, respondida com uma crescente violência. E aqui estamos.

Não se pode esperar que a relação entre colonizador e colonizado seja tranquila. Não se pode esperar que um povo oprimido aceite pacificamente a opressão. Não se pode esperar que um colonizador não viva com medo. Isso nunca aconteceu na história, nem nunca acontecerá. Como ocupação se faz com presença física, com corpos, uma criança que nasce hoje em Israel é, para todos os efeitos, uma ocupante, uma colonizadora, uma opressora. E uma criança que nasce hoje na Palestina é uma ocupada, uma colonizada, uma oprimida. Obviamente, ninguém é responsável por nascer onde nasceu — é o que Günther Anders diz expressamente a Klaus Eichmann, que não tem culpa nenhuma por ser filho do “arquiteto do holocausto”. Todas as crianças são inocentes. Contudo, quando adultos, nossa responsabilidade está nas decisões que tomamos a partir da herança que recebemos. Desde 7 de outubro, no Oriente Médio, mais de duas mil pequenas pessoas sequer tiveram essa chance, pois foram compulsoriamente arrancadas da vida durante a infância.

Muito se indagou sobre por que os judeus da Europa não se levantaram massivamente contra o nazismo, os campos de concentração, as câmaras de gás, evitando assim o holocausto. Anders repreende tal questionamento argumentando que o ser humano é incapaz de reagir adequadamente quando defrontado com uma monstruosidade inimaginável: “É impossível. E quem exige isso das vítimas deveria também exigir do peixe lançado na praia que ele imediatamente criasse pernas para assim caminhar de volta a seu meio úmido. A reação errada era inevitável, pois a desmedida do que se exigia simplesmente ultrapassava a medida daquilo que seres humanos em geral podem imaginar, sentir ou compreender”.

Mas houve judeus que, sim, se ergueram contra os nazistas. E o episódio mais conhecido dessa heroica resistência é o Levante do Gueto de Varsóvia, na Polônia, em 1943. Depois de trezentos mil judeus confinados ali terem sido levados à morte nos campos de concentração, alguns entre os poucos milhares que sobraram resolveram resistir com o que tinham à mão. Mataram todos os alemães que puderam, depois se entrincheiraram em suas casas, em túneis, nas tubulações de esgoto. Em resposta, os nazistas, com incomparável superioridade militar, arrasaram o gueto, que ficou reduzido a escombros, e mataram quase toda a resistência judaica. Eis o que dizem alguns sobreviventes: “A maioria foi a favor da rebelião. As pessoas achavam melhor morrer com uma arma na mão do que sem ela. Pode-se chamar este tipo de resistência de rebelião? Era uma luta para não sermos transportados para o matadouro, uma luta contra a morte”; “Eles lutavam, não tanto pela própria vida, mas mais pela dignidade de todos nós. Os alemães queriam privar a nós, judeus, da condição de humanos. Esse levante mostrou que eles não conseguiram”; “Esse era o momento que esperávamos para enfrentar esse alemão todo-poderoso”; “Matávamos o maior número possível, [mas] sabíamos que nosso destino estava completamente claro”.

Oitenta anos depois, frases semelhantes poderiam perfeitamente sair da boca de qualquer palestino — inclusive de membros do Hamas. Os principais grupos que conduziram o Levante do Gueto de Varsóvia se autodenominavam Organização da Luta Judaica e União Militar Judaica. O Hamas é um acrônimo de Movimento de Resistência Islâmica. Seus membros também se escondem em túneis e prédios, que também estão sendo reduzidos a escombros por uma força militar infinitamente superior, que controla a entrada e a saída do território que habitam. Olhando para trás, tenho certeza de que todos nós concordaríamos que os judeus cercados pelos alemães tinham pleno direito de tomar qualquer atitude que julgassem necessária para se libertar do regime de morte dos guetos e dos campos de concentração — qualquer atitude. Hoje, porém, não aceitamos que os palestinos façam o mesmo contra o regime de morte lenta que vivem em Gaza e na Cisjordânia, imposto pelo Estado de Israel. E exigimos, de maneira pedante e arrogante, que sejam pacíficos.

Antes da incursão do Hamas em 7 de outubro, o pensador italiano Franco Bifo Berardi vinha compilando ataques recentes conduzidos por colonos israelenses contra palestinos. Como a vida palestina não importa, os casos não ganharam a devida repercussão internacional. Mas tiveram consequências, assim como a ascensão da extrema direita israelense e seu projeto de redesenhar o Oriente Médio estabelecendo acordos com países árabes do entorno, sobretudo com a Arábia Saudita, isolando os palestinos com vistas à sua desaparição. A menos que os israelenses consigam eliminar todos os seres humanos inconvenientes que reivindicam o mesmo território onde recentemente constituíram um país, não haverá solução para o conflito sem desocupação, sem descolonização e sem o fim do apartheid promovido por Israel — enfim, sem justiça —, seja com um ou dois Estados. Como os israelenses não desejam devolver pacificamente os territórios que ocuparam à força, resta a opção do extermínio — que agora está sendo levada a cabo, sem data para terminar, com promessas de incursão territorial em Gaza e redução da já minúscula faixa destinada aos palestinos na costa mediterrânea, e com apoio do Ocidente. Fala-se em segunda nakba. É lícito perguntar: podemos esperar um holocausto palestino?

No final da carta a Klaus Eichmann, Günther Anders retoma e complementa o apelo que fez ao interlocutor no início do texto, quando pede ao filho que renegue a memória do pai. “Ao menos uma vez, imagine o que significaria se você se vinculasse a esse movimento contra o extermínio da humanidade.” A essa altura, Anders já externara a Klaus que, depois do holocausto, considerava todas as pessoas como “filhas de Eichmann”, ou seja, filhas de uma época em que o ser humano, ao desenvolver uma capacidade de destruição além de sua imaginação, pariu uma monstruosidade inapreensível. De acordo com o filósofo, essa monstruosidade sobreviveu ao nazismo. E precisa ser interrompida. “Imagine se você, Klaus, que experimentou no próprio corpo o que é ser um filho de Eichmann, se dirigisse aos outros filhos de Eichmann como alguém que dá um alerta. Em um primeiro momento você afastará essa ideia. ‘Um Eichmann pela paz?’, talvez pense você, ‘para me expor ao riso?’ Quem riria, Klaus Eichmann? Quem, senão os piores?”.

Me parece válido devolver a pergunta aos israelenses e a todos os judeus que ontem e hoje, com todos os matizes, apoiam o sionismo — que talvez um dia tenha sido uma ideia legítima, mas que se expressou como uma prática colonial, opressora e genocida. Quem riria de vocês, ou criticaria vocês, ou renegaria vocês, se, diante de um ataque hediondo, fruto de muitos ataques anteriores tão ou mais hediondos, vocês se vinculassem ao movimento contra o extermínio dos palestinos?; se vocês reconhecessem, de uma vez por todas, com tudo o que isso implica, a humanidade dos palestinos? Quem, senão os piores? “Já ocorreu de antigos ‘filhos de Eichmann’, homens que participaram das monstruosidades de ontem, que compreenderam que aquilo que ocorreu uma vez não pode, sob nenhuma circunstância, ocorrer novamente, virem para o nosso movimento. Por que lhe faltaria a coragem que tiveram esses homens, a coragem para dar esse passo? Imagine o que seria essa chance, e não apenas para você, mas também para nós — e isso significa: para todos —, se você tomasse essa decisão”, continua Anders.

Sim, somos todos filhos de Eichmann, mas, neste momento, mais que quaisquer outros, o são os israelenses que comandam esse massacre — e também todas aquelas pessoas, ao redor do mundo, judias e não judias, que o apoiam (ou o relativizam). Daí a extrema relevância de ecoar o apelo de Günther Anders. Se as vidas palestinas não importam; se as vozes palestinas — e as vozes de quem se solidariza com a Palestina — não são ouvidas; se a morte de mais de mil mulheres e de mais de duas mil crianças em Gaza sob bombas e drones de última geração não sensibilizam absolutamente; se as narrativas de Motaz Azaiza e de outros comunicadores palestinos não convencem diante da máquina de guerra de Israel e sua eficiente fábrica de narrativas, então quem, senão os próprios judeus, dos quais uma parte significativa infelizmente ocupa hoje a posição de algoz, pode romper o ciclo da monstruosidade?

“Perto de nós, que somos filhos de Eichmann exclusivamente em sentido figurado, você, Klaus, ocupa uma posição especial; você é um momento do horror; o mundo, caso o alarme sobre o mundo de Eichmann viesse de sua boca, da boca de um verdadeiro filho de Eichmann, escutaria prendendo a respiração e daria mais crédito àquilo que você dissesse do que ao que saísse de nossa boca. A maldição sob a qual você viveu até hoje poderia então converter-se em bênção.”

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