Uma caça às bruxas renovada

 

Está aberta a pré-venda de Caça às bruxas e capital, de Silvia Federici, livro que reúne as aulas do curso ministrado por Silvia Federici em abril de 2019 na Mediateca Gateway (hoje Punto Input) de Bolonha, Itália.

Confira abaixo trecho do posfácio que contextualiza o novo livro no pensamento e na obra da autora, escrito por Gabriella Palermo.

 

A violência de gênero é o instrumento de controle e disciplinamento exercido pelo sistema capitalista e patriarcal sobre a vida e o corpo das mulheres e das subjetividades LGBTQIA+. 

Trata-se de uma violência sistêmica e estrutural (por isso, originária) que assume múltiplas formas, desde a violência econômica e psicológica até a física, que chega ao extremo da privação da própria vida. 

Se durante a caça às bruxas que acompanhou a acumulação capitalista se consumou uma terrível violência contra o corpo das mulheres acusadas dos crimes mais horrendos, que eram torturadas e depois queimadas em público para impor, pelo terror, um novo modo de produção e novas formas de exploração, a violência de gênero tem funcionado como dispositivo de disciplinamento em todas as fases da transição capitalista até a atualidade. 

Entre os séculos xviii e xix, uma nova racionalidade capitalista — que intentava enfrentar a profunda crise da reprodução devida ao regime de exploração absoluta da “grande indústria” — introduziu uma divisão sexual do trabalho mais clara: o homem na fábrica, no espaço (público) da reprodução e do trabalho doméstico. Nessa fase, na qual se cumpriu a imensa transformação do salário familiar através da construção da família nuclear em torno da dona de casa, o trabalho reprodutivo não assalariado — que não consiste somente em procriar ou fornecer alimento e se encarregar da limpeza, mas também no cuidado psicológico, emotivo, sexual — era regulado pelo trabalhador assalariado, ao qual o capital delegava disciplina e controle: é o “patriarcado do salário”.

Inaugurado no início dos anos 1970 pela campanha internacional Salário para o Trabalho Doméstico (da qual Federici foi uma das principais ativistas) e pelos sucessivos desenvolvimentos das práticas militantes de um “feminismo marxista de ruptura” (Curcio, 2019; 2021, p. 15-24), o grande ciclo de lutas feministas revelou a centralidade do trabalho reprodutivo no capitalismo e a violência de sua gratuidade. A reestruturação da economia global que se seguiu ao liberalismo deu início a uma nova fase em que as atividades reprodutivas são organizadas como serviços que produzem valor. Na medida em que persistem o trabalho doméstico não remunerado e o processo de naturalização, ou melhor, de conexão direta entre o útero e as atividades de reprodução, as características do trabalho das mulheres são valorizadas no novo modo de produção.

Assiste-se concomitantemente ao desmantelamento do welfare state [estado de bem-estar social]. Nesse sentido, desde meados dos anos 1970, observamos uma repetição do processo de acumulação primitiva, que não é um momento que acontece de uma só vez com o advento do capitalismo, mas que se repete toda vez que o capital precisa de uma reestruturação. O endividamento crescente devido ao progressivo empobrecimento de camadas sociais cada vez mais amplas é acompanhado de uma reestruturação produtiva que prevê, por um lado, o crescimento da flexibilização, da deslocalização e da precarização do trabalho; e, por outro lado, no Sul do mundo, a maquilagem da produção e a privatização das terras em um processo de recolonização (Federici, 2012 [2019b]).

Hoje, a reestruturação capitalista é acompanhada por uma nova escalada da violência de gênero. A progressiva desvalorização do trabalho reprodutivo, com salários baixos e formas violentas de exploração, corresponde a uma nova disciplina do trabalho, baseada em hierarquias de raça e gênero — as mulheres migrantes de fato sofrem mais extorsões e abusos. Trata-se de contradições que emergiram com mais intensidade durante a pandemia de Covid-19. Fenômeno sanitário, político, econômico e social, a pandemia funcionou e continua a funcionar como um grande laboratório de experimentação, sobretudo no que concerne ao trabalho reprodutivo em suas diversas formas, do trabalho de cuidado ao trabalho doméstico (Borgia & Palermo, 2021). A crise sanitária funcionou como aceleradora de processos de individualização, desvalorização e exploração do trabalho, sobretudo o reprodutivo: a esperada “retomada” está, na verdade, ligada a uma cada vez mais profunda precarização do trabalho.

Durante a pandemia, além disso, a violência física alcançou índices altíssimos, confirmando que na maior parte ela se consuma dentro do espaço doméstico, perpetrada pelos homens da rede familiar ou conhecidos — para além da brutalidade dos atos violentos que continuam a ocorrer no espaço público. Segundo dados coletados pelo observatório nacional Non Una di Meno na Itália, somente em 2021 foram registrados 115 casos de feminicídios, lesbicídios e assassinatos de pessoas trans.

A isso se acrescenta uma profunda violência midiática contra o corpo das mulheres por meio de formas de vitimização ou justificação, tolerância e impunidade, e até mesmo culpabilização das vítimas. Essa nova escalada demonstra de uma vez por todas que o bem-estar social não corresponde ao desenvolvimento e ao progresso do capital (Federici, 2020a [2019a]); que as transformações do trabalho reprodutivo são sempre acompanhadas de uma reprodução da violência de gênero, como um dispositivo estrutural do funcionamento do capital; que a restauração dos processos de acumulação ocorre toda vez que o capital necessita se regenerar para se adaptar às mudanças em curso. De fato, entre as múltiplas causas da nova caça às bruxas, certamente está o fato de que o capital tem tentado agredir e cooptar as lutas dos movimentos feministas e transfeministas contemporâneos.

Na Itália, exemplos da violência do capital podem ser encontrados na oposição ao ddl Zan, projeto de lei contra a homotransfobia, e, de modo mais geral, nos processos de pinkwashing do feminismo neoliberal, que, em escala planetária, pretendem abduzir e normalizar as linguagens, as práticas e os discursos das lutas feministas e queer.

O que fazer?

Em um dos ensaios de O ponto zero da revolução [introdução da edição italiana da obra], Federici (2012 [2019b]) escreve: “Se quisermos que o feminismo represente uma força capaz de transformar a sociedade e criar relações sociais igualitárias, devemos abandonar a perspectiva tanto da igualdade quanto da ‘diferença’, já que nenhuma delas contesta a organização capitalista do trabalho com toda a sua carga de exploração, relações sociais racistas e machistas, o roubo constante da riqueza que produzimos e a pauperização geral da sociedade”.

 


GABRIELLA PALERMO é doutora pela Università degli studi di Palermo, Itália. Pesquisa as geografias do mar e trabalha com a conceituação do Mediterrâneo Negro. Faz parte do movimento transfeminista Non Una di Meno.

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