
Capital fóssil: a China como chaminé do mundo
A Elefante está lançando Capital fóssil, de Andreas Malm, livro que faz uma viagem até a Inglaterra do século XIX para entender a origem do aquecimento global. Segue abaixo o início do capítulo 14, intitulado “A China como chaminé do mundo: o capital fóssil hoje”, que atualiza a conversa sobre a explosão das emissões desde 2000: estamos investindo fortemente para firmar alterações climáticas irreversíveis.
Por Andreas Malm
Em 12 de maio de 2014, o New York Times noticiou que “uma ampla porção do grande manto de gelo da Antártida Ocidental começou a desmoronar, e parece que a continuidade de seu derretimento não pode mais ser interrompida”. Isso significaria que temos ao menos três metros de aumento do nível dos oceanos a caminho. A descoberta foi publicada por duas equipes independentes na Geophysical Research Letterse na Science — o mais novo acréscimo a um ruído de fundo formado por alarmes que disparam sem cessar. Geleiras que vão do coração da Antártida Ocidental até o Mar de Amundsen eram até então sustentadas por plataformas de gelo que funcionavam como tampões em uma banheira, mas os oceanos aquecidos vêm transportando cada vez mais calor para o continente, derretendo as plataformas e arrancando esses tampões.
Com a alteração do equilíbrio de forças, a banheira está se esvaziando e as geleiras têm se soltado do solo sem colinas ou cordilheiras que as impeçam de deslizar para dentro do mar. “Hoje apresentaremos evidências observacionais de que um grande setor do manto de gelo da Antártida Ocidental vem recuando de forma irreversível”, afirmou um dos autores principais em uma coletiva de imprensa convocada pela Nasa: “Ele ultrapassou o ponto de não retorno”. Alguns séculos provavelmente ainda seriam necessários para que a totalidade alcançasse seu destino, mas, observou o New York Times, mesmo 1,2 metro bastaria para inundar áreas nas quais vivem atualmente quatro milhões de estadunidenses. Além disso, a continuação da emissão de gases de efeito estufa iniciaria os mesmos processos nos mantos de gelo ainda maiores da Antártida Oriental e da Groenlândia. “Se de fato acendemos o pavio na Antártida Ocidental, é muito difícil imaginar que ele possa ser apagado”, comentou Richard B. Alley, especialista na área, “mas há um monte de outros pavios, e um monte de outros fósforos, e temos de tomar uma decisão agora: vamos acendê-los?”.
Naquele mesmo dia, o New York Times publicou que “companhias petrolíferas canadenses propõem a construção e a expansão de oleodutos que conectariam os campos de areias betuminosas a novos mercados na China e ao redor do mundo”. Não derrotadas pelos atrasos no projeto Keystonexl, concebido para transportar petróleo das regiões de areias betuminosas de Alberta através dos Estados Unidos até chegar a Houston, as empresas planejavam oleodutos que serpenteariam em direção às costas canadenses, tanto a leste quanto a oeste, e a partir dos quais o petróleo poderia ser transportado para ser queimado principalmente na China.
A produção de areias betuminosas subiria mais de um quarto na década seguinte, mesmo sem o Keystonexl. Diversas empresas dobrariam ou triplicariam suas produções. Não havia tantos projetos de oleodutos em discussão desde os anos 1950. Esses projetos encontraram várias formas de resistência — de povos originários, ativistas ambientais, comunidades locais preocupadas com a destruição de paisagens cinematográficas —, mas o vice-presidente de areias betuminosas da Shell Canadá expôs a convincente lógica da empresa: “Para nós, para o investimento futuro, o negócio são os oleodutos”, contou aoTimes. “Queremos uma capacidade maior. No longo prazo, precisamos de acesso a mercados globais.” O governo corria o risco de “confrontos violentos” caso os projetos mais controversos fossem implementados, mas as perspectivas para a maioria deles, concluiu o New York Times, “parecem animadoras”.
Considerado o período de 1751 a 2010, metade de todas as emissões de CO₂ provenientes da queima de combustíveis fósseis se deu depois de 1986 — em apenas 25 anos, na mesma época em que um dos maiores esforços de pesquisa na história produziu a ciência das mudanças climáticas. A virada do milênio representou outro marco. A conscientização generalizada das implicações catastróficas do aquecimento global pertence, em essência, ao século XXI, e, desde o ano 2000, a taxa de crescimento nas emissões de CO₂ tem sido o triplo da observada na década de 1990. Não graças à adoção de alguma política climática, e sim à depressão no processo de acumulação de capital, as emissões encolheram — um evento realmente extraordinário — pouco mais de 1% em 2009, mas só para disparar em 2010, com uma subida de quase 6%, e, depois, se estabilizar em uma média anual de 3%.
Extrapolando os piores cenários projetados pelo IPCC, essa nova investida dos negócios de sempre põe o mundo na rota de um aumento de temperaturas de 4°C até 2060, bem acima do nível em que se espera que os humanos sejam capazes de se adaptar com algum senso razoável de civilização intacto. As coisas saíram do controle. Podemos falar legitimamente em uma explosão de emissões pós-2000. Uma teoria do capital fóssil deve ter algo a dizer a esse respeito.
Dois fatos básicos a respeito dessa explosão saltam imediatamente aos olhos. Primeiro, ela tem sido centrada em um único país: a República Popular da China. Entre 2000 e 2006, 55% do crescimento global nas emissões de CO₂ ocorreu ali; em 2007, a cifra chegou a dois terços. Em 2004, a China se tornou o maior extrator de combustíveis fósseis do mundo; dois anos mais tarde, eclipsou os Estados Unidos como maior emissor.
Em segundo lugar, a explosão parece ter alguma relação coma globalização. Do início dos anos 1980 até 2008, o comércio global cresceu 8% ao ano — marcadamente mais rápido que a produção —, mas a novidade real estava na expansão do investimento estrangeiro direto (IED): a partir da década de 1980, os fluxos de IED cresceram mais rápido do que o comércio transfronteiriço; de 1990 a 2009, quintuplicaram e alcançaram um pico antes de despencar durante a crise financeira, e depois se recuperaram. Conforme isso se dava, a tendência também se centrava na China. Destino principal dos IED, o aporte para o país em 2008 foi quase o dobro daquele recebido por Rússia e Índia juntas; dois anos depois, a China desbancou a Alemanha como maior exportadora de bens manufaturados. Mas, para além dessas cifras já bem conhecidas, o que está acontecendo aqui? Que mistura inflamável entre China e globalização fez disparar a explosão de emissões, cujo poder para acender todo um conjunto de pavios sobre a Terra parece quase avassalador?
Foto: Code Rood Action Camp 2018 / Flickr