Cartas ao piloto de Hiroshima, em tempos de ‘culpados inocentes’

por Paulo Silva Junior

Claude Eatherly era um rapaz de 26 anos quando, depois de meses de treinamento, sobrevoou Hiroshima como parte da missão que explodiria uma bomba atômica horas depois. O jovem major tinha a tarefa de relatar as condições climáticas naquela manhã de 6 de agosto de 1945. Feita a verificação, se afastou do ponto do ataque, como previsto, e viveu o resto de sua vida, mais de três décadas, angustiado com a participação no fatídico evento.

Conta-se que, passada a explosão, atravessou dias sem falar com ninguém ainda no ponto de apoio da Força Aérea dos Estados Unidos. Depois, foi o único a resistir à ideia de ser tratado e festejado como um herói. Na sequência, pediu dispensa do trabalho e deixou o país. Aí voltou para casa, buscou retomar a vida, tentou cometer suicídio e passou a realizar pequenos delitos, atrás de uma punição formal. Tornou-se um pacifista, incomodou o governo e, entre tribunais e clínicas para tratamentos, ganhou o noticiário.

Günther Anders, em Viena, conheceu a história numa revista americana. Era o “caso Eatherly”. O filósofo alemão viu ali algo maior que apenas um dado pitoresco à margem de um grande evento.

É daí que vem o segundo livro que dá corpo à edição de Hiroshima está em toda parte, lançamento da Elefante que faz uma compilação de três publicações de Anders. Em Para além dos limites da consciência: correspondência entre Claude Eatherly, piloto de Hiroshima, e Günther Anders (1959-61), estão lá exatamente as cartas trocadas entre o intelectual e o agente, como diz a introdução de Robert Jungk, que oferecem uma resposta à pergunta: “o que fazer?”.

“Mas, para o leitor, o acontecimento mais comovente dessa correspondência é seu perceptível efeito curativo sobre Claude Robert Eatherly. Onde drogas e neurologistas falharam, um espírito clarividente, um amigo empático e acolhedor presenteou ao torturado paz interior, segurança, sentido à vida e esperança”, escreve Jungk no texto introdutório.

Seguem abaixo os três parágrafos iniciais da primeira carta de Anders ao seu destinatário, internado no Veterans Administration Hospital, no Texas. São mais de 70 correspondências publicadas no livro, trocadas ao longo de dois anos.

Carta 1
Ao senhor Claude R Eatherly,
ex-major da Força Aérea dos Estados Unidos
Veterans Administration Hospital, Waco, Texas
3 de junho de 1959

Caro sr. Eatherly,

O autor dessas linhas lhe é desconhecido. Por outro lado, nós – meus amigos e eu – o conhecemos. Com o coração apertado, acompanhamos o senhor enfrentar sua infelicidade, independentemente de estarmos em Nova York, em Viena ou em Tóquio. Não porque sejamos curiosos ou porque seu “caso” nos interesse do ponto de vista médico ou psicológico. Não somos médicos nem psicólogos. Interessa-nos porque estamos ocupados, cheios de ansiedade e ardente preocupação, em lidar com aqueles problemas morais que hoje atrapalham o caminho de todos nós. A tecnificação da vida – o fato de que podemos ser inseridos (sem saber e indiretamente, como parafusos de máquina) em ações cujos efeitos não conhecemos e que, se conhecêssemos, não poderíamos admitir – modificou nossa situação moral. A técnica fez com que pudéssemos ser de algum modo culpados inocentes, algo que outrora, no tempo não tão avançado tecnicamente dos nossos pais, ainda não existia.

Você compreende seus papel nisso: afinal, é um dos primeiros desse novo tipo de culpa, na qual hoje ou amanhã qualquer um de nós poderia estar enredado, realmente enredado. Você passou por uma situação pela qual todos nós poderíamos passar amanhã. Por esse motivo, para nós, você tem o grande papel de um exemplo paradigmático, de um precursor.

É bem provável que você não concorde. Você quer ter seu sossego, your life is your business. Nós lhe asseguramos que, igualmente, também não gostamos de indiscrição e lhe pedimos desculpas. Mas, nesse caso, pelo motivo que acabei de mencionar, a indiscrição infelizmente é inevitável, até necessária: sua vida também se tornou nosso business. Visto que o acaso (ou seja lá como chamamos o fato inegável) quis que a pessoa física Claude Eatherly tenha sido transformada no símbolo do futuro, não há mais como se resguardar da nossa indiscrição. Não é sua culpa que você tenha sido condenado a essa função de símbolo, e não outra pessoa qualquer entre os milhões de contemporâneos, e isso é certamente terrível. Mas assim são as coisas.

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