A maior prisão do mundo: uma história de março de 1948

Ilan Pappe, dos mais importantes autores sobre a questão Palestina e uma das principais atrações da Flip deste ano, já tem dois livros lançados aqui no nosso catálogo: primeiro Brevíssima história do conflito Israel-Palestina, e agora A maior prisão do mundo, cujo início do primeiro capítulo, “A guerra favorita”, está reproduzido abaixo. 

Por Ilan Pappe

Certa tarde, em 10 de março de 1948, as lideranças da comunidade judaica na Palestina, ao lado de seus comandantes militares, tomaram a decisão de ocupar 78% do país. Desde 1917, a Palestina vivia sob o domínio do Mandato Britânico. Na época, um milhão de palestinos habitavam aquela fatia de 78% do país (o que corresponde ao Israel atual sem os Territórios Ocupados). Os sionistas decidiram expulsar a maior parte deles. Naquela tarde, as forças posicionadas em campo receberam ordens de uma evacuação sistemática de palestinos de grandes áreas do perímetro. As instruções especificavam como a expulsão deveria ocorrer: intimidações em grande escala, cercos às aldeias, bombardeios dos bairros, incêndios de casas e cultivos, expulsões forçadas e, finalmente, detonações de dinamite nos escombros, a fim de impedir o retorno dos moradores desalojados. Cada unidade militar recebeu uma lista de aldeias e bairros a serem destruídos. O plano e as formas de sua implementação foram incluídos em um conjunto de documentos chamado Plano Dalet, ou Plano D — que se seguiu aos planos A, B e C, todos preparados pelas lideranças sionistas a partir de 1937 —, e foi o primeiro a introduzir a ideia da limpeza étnica da Palestina.

Essa decisão histórica dos líderes judeus foi o resultado inevitável do ímpeto ideológico sionista de garantir uma presença exclusivamente judaica na Palestina. O sionismo surgiu como um movimento que almejava um porto seguro contra o antissemitismo europeu, procurando um território onde pudesse redefinir o judaísmo como uma nacionalidade. Como esse território escolhido foi uma terra já habitada por outros povos, o sionismo se tornou um projeto colonial de assentamento, e como os fundadores do movimento queriam criar um Estado “democrático”, eles se preocuparam com a questão do equilíbrio demográfico, o que levou à decisão tomada em março de 1948. Em outros projetos coloniais de assentamento, como nas Américas e na Austrália, essa preocupação demográfica levou a genocídios de populações indígenas; na Palestina, deflagrou um interminável processo de limpeza étnica.

As lideranças sionistas consideraram o mês de março de 1948 — ao menos é o que parece, em retrospecto — o melhor momento para implementar sua estratégia de judaização da Palestina. Diversos desdobramentos levaram a essa confluência histórica “ideal”. O primeiro deles foi a decisão britânica de sair da Palestina e confiar seu futuro às Nações Unidas. O segundo foi a bancada sionista na ONU, que refletia o equilíbrio de poder internacional. As elites políticas ocidentais eram hostis à comunidade palestina e evitavam particularmente seu líder, Hajj Amin al-Husayni, que consideravam um aliado dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Mais importante, elas queriam enterrar o capítulo genocida do extermínio dos judeus pelos nazistas permitindo que o movimento sionista expropriasse a Palestina. Como resultado, a ONU rejeitou de antemão a exigência da liderança palestina, que solicitava um processo democrático para determinar o futuro do país (em 1947, os palestinos constituíam 66% da população local), e em vez disso apoiou uma solução sionista de dividir a Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu. A divisão foi rejeitada tanto pelos palestinos quanto pelos países árabes vizinhos. Essas nações árabes ameaçaram impedir a implementação do plano à força, enquanto os palestinos fizeram greve, enviaram petições e, durante cerca de uma semana, atacaram indistintamente assentamentos e comboios judaicos.

Seis meses mais tarde, a cobiçada porção de 78% da Palestina se tornou Israel, construído sobre as ruínas de centenas de aldeias destruídas, cidades demolidas e terras agrícolas expropriadas. Com o fim das hostilidades, terras e imóveis foram confiscados, como parte de uma legislação especial iniciada pelo novo Estado judeu no intuito de se apossar da propriedade, primeiro dos que haviam sido expulsos e, em seguida, dos palestinos que tiveram permissão de ficar (a estes, em alguns casos, era oferecida alguma compensação ou uma terra alternativa; em outros casos, a opção de comprar a própria terra por um preço muito mais alto). Os 22% restantes constituíram a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. A Cisjordânia não foi ocupada pelos judeus graças a um entendimento tácito como reino hachimita na Jordânia, que anexou a região em troca de uma limitada intervenção jordaniana na guerra de 1948.

Assim, a exclusão da Cisjordânia do futuro Estado de Israel naquele momento não foi resultado de uma derrota militar, mas de uma decisão política estratégica. Essa decisão nunca foi oficialmente adotada pela liderança sionista, porque a Cisjordânia — ou Judeia e Samaria, no jargão sionista — fazia parte do Eretz Israel (Terra de Israel), assim como a Galileia e o Neguev. Quando o acordo com os jordanianos foi divulgado, muitos funcionários e políticos em Israel o consideraram um erro nacional grave. Em resposta, rapidamente introduziram na opinião pública israelense o discurso da “oportunidade perdida”, mais tarde adotado pelos principais partidos e pela mídia, e que desempenharia um papel crucial no apoio subsequente à ocupação da Cisjordânia em 1967. O que se perdeu, segundo aqueles que divulgaram essa ideia, foi uma oportunidade histórica de ocupar a região durante a guerra de 1948.

Motivado por um senso de urgência, um significativo grupo de generais começou a buscar pretextos que obrigassem o governo a renegar o compromisso firmado com os jordanianos. Eles bateram com frequência seus tambores de guerra, acusando o reino hachimita de violar o acordo do armistício de 1949, que havia definido as fronteiras entre os dois Estados. Não seria uma empreitada fácil, pois os jordanianos aderiram fielmente aos principais pontos do armistício. Levaria mais dezoito anos até que uma nova oportunidade de ouro, similar àquela que se apresentara em 1948, permitisse a criação do cobiçado Grande Israel.

Na Faixa de Gaza, a história foi diferente, ao menos até 1967. Em muitos aspectos, foi a determinação egípcia que impediu uma ocupação israelense da Faixa entre 1948 e 1956, e esse território, quase 2% da Palestina histórica, foi submetida a um regime militar depois da guerra de 1948 — regime que o governo egípcio garantiu à Liga Árabe e aos palestinos que terminaria tão logo a Palestina fosse inteiramente libertada.

Mas a Faixa de Gaza, de modo muito similar à Cisjordânia, era tradicionalmente considerada pelos líderes israelenses conservadores como uma parte da Terra de Israel, e, na visão romântica dos artífices do Grande Israel, o Estado judaico precisava possuir ambas as áreas para florescer e prosperar. Alguns políticos cobiçavam essas regiões como territórios estratégicos e consideravam as fronteiras do armistício de 1949 verdadeiras “fronteiras de Auschwitz”, nas palavras cruelmente formuladas por Abba Eban, ministro das Relações Exteriores de Israel entre 1966 e 1974. Era uma expressão paranoica e alarmista de um representante do campo liberal e moderado dos sionistas de Israel (e alguém que, na hora da verdade, tentou conter a agressividade israelense em 1967, como veremos). Mas a maioria dos israelenses de fato sentia que aqueles contornos cartográficos — com um estreito corredor entre norte e sul, em torno da área da Grande Tel Aviv — representavam uma constante ameaça à existência de Israel. Qualquer exército árabe vindo da Cisjordânia poderia, de acordo com os estrategistas israelenses, rachar o Estado judeu ao meio facilmente.

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