O homem sobre a ponte: conversa com Manoel Ricardo de Lima

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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala

Hiroshima está em toda parte
, de Günther Anders, está sendo lançado aqui pela Elefante neste 2025,
 e é tema desta segunda temporada do nosso podcast, um Especial Hiroshima, em cinco episódios. O convidado deste programa é Manoel Ricardo de Lima, professor e escritor que tem literatura e pensamento muito próximos de um tema central do debate: a guerra.

Manoel é professor da Escola de Letras e da Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Letras pela Federal do Ceará e doutor em Teoria Literária pela Federal de Santa Catarina. É autor de uma série de livros, entre eles uma pequena coleção chamada Livros de guerra, com uma novela, um livro de contos, um de poesia e um romance, publicados pelas Sete Letras. Coordena a coleção O diabo na aula, na editora Mórula, onde publicou recentemente O lado esquerdo e O figurante, O vagabundo, além de estar lançando agora Leminski, pensador selvagem.

Na primeira parte do podcast, você ouve trechos do livro. A segunda, que reproduzimos aqui também em texto, é uma conversa com o convidado.

Manoel, Anders vai dizer na introdução do diário que não existem armas nucleares, mas que a gente vive numa situação que se dá por fatos nucleares. Que a política, então, ele vai dizer, acontece dentro da situação nuclear. Então, é como se a gente não estivesse construindo bombas, a gente estivesse vivendo numa situação nuclear de fato. Como que a gente faz para escrever, para elaborar, denunciar, registrar, pensar a memória de uma sociedade que se destrói, que escolheu viver sob esse risco iminente de acabar com tudo?

Paulo, acho que aí tem uma série de ideias que a mim, particularmente, remetem diretamente ao pensamento do Walter Benjamin, que, de algum modo, cruza as ideias do Anders. A primeira delas tem a ver com a estetização da política, quer dizer, que a política deixa de ter um caráter de ação e passa a ter um caráter meramente estético. Isso levaria, por sua vez, segundo também o Benjamin, a uma estetização da guerra, e ele começa a ver isso exatamente nos percursos do Reich, ali no começo dos anos 1930. Que haveria uma estetização da guerra.

O próprio Walter Benjamin vai dizer, de novo, num texto acho que de 1931 ou 1932, um pequeno ensaio chamado Caráter Destrutivo, que, de certo modo, ele se faz uma pergunta que seria: como destruir a destruição? Como podemos destruir a destruição? É uma das preocupações do Anders nesse prefácio a que você se refere. Essa iminência a que você se refere é exatamente isso… Criamos um sistema de destruição.

Colado a isso, a Elsa Morante, a crítica e romancista italiana, ali nos anos 1960, também de certo modo contemporânea a posteriori do Anders, vai chamar de “sistema de desintegração”. Criamos um sistema de desintegração. Então, me parece que tem a ver com o uso comum, em todas as esferas sociais, de um caráter bélico-militar. Eu acho que isso responde um pouco a essa perspectiva da destruição como iminência do risco. E aí eu acho que todo um caráter de memória, por exemplo, se altera, não só com a saída daquilo que nós chamávamos antigamente de uma luta de classes, mas agora por uma luta das imagens. Tudo é visto e o Anders fala disso.

O apanágio da televisão, por exemplo, durante a guerra do Vietnã. Ele desconfia da importância da televisão, para mostrar o que acontecia no Vietnã, e ao mesmo tempo que só se ficou sabendo do que acontecia no Vietnã através da televisão. Então, tem sempre um contraponto aí nessa problemática das imagens. Tem a ver com isso também, e porque essas imagens podem ser facilmente manipuladas. Já eram, naqueles anos 1960-70. Isso é uma preocupação muito comum naquele período com quem está vendo a repetição social se dar através dessas imagens televisivas, e agora como isso se dá atualmente.

E é um texto muito sensível, ao mesmo tempo que ele está sempre muito chocado. Ele fala o tempo todo da vergonha de sermos seres humanos, por exemplo, e tem um certo tom de busca de futuro, de esperança de mobilização, né. O Anders chega a convocar uma greve internacional, e ele conta que ver gente do mundo todo unida pela causa antinuclear, de certa forma reconstitui a humanidade. A gente ainda tem um caminho de solidariedade geral, de humanidade dessa forma? Cabe isso no capitalismo atual, na vida das pessoas no século XXI?

Eu acho muito interessante quando ele fala da greve de produto. Seria uma espécie de convocação aos trabalhadores e operários que trabalham diretamente com a construção da bomba. Como seria que uma marcha solidária em direção a uma comunidade da vida se desse a partir dessa greve de produto? Ele ao mesmo tempo desfaz a convocação à greve de produto, porque diz que foi tomado como ingênuo, como tolo, por ter imaginado como utopia uma greve dos trabalhadores, essa greve de produto. E ao mesmo tempo depois, em alguns momentos, ele faz essa convocação.

Ele não acha que a marcha apontasse para nada, nem resolvesse nada, mas ele acha que ela também não pode não haver. Eu acho essa imagem da marcha, que ela é absurdamente paradoxal e ao mesmo tempo dialética — não haver a marcha, haver a marcha, mas ela não pode deixar de haver —, uma espécie de construção da responsabilidade por essa solidariedade, o que é possível imaginar, não só a partir do Anders, mas a partir de uma série de questões em torno do termo e do termo como ação.

A dimensão solidária, me parece o nosso reza-missa. A solidariedade, a nossa coisa perdida. Hoje, me parece, ela se instala e se instaura entre corpos nos estatutos de micropolíticas, em aprendizagens que se dão em micropartículas coletivas. É impossível você pensar, me parece hoje, e isso não é uma questão do mesmo pessimismo que o Anders chama atenção, que o Benjamim chama atenção, que a Hannah Arendt lê de outro jeito, por exemplo. Mas o Benjamim chamava atenção para um pessimismo como potência constitutiva, que o otimista acha que tudo dará certo de algum modo enquanto o pessimista precisa se mover para que as coisas aconteçam. Então, eu fico imaginando que um projeto de solidariedade teria a ver com um movimento que me parece muito impossível pelo tamanho da coletividade que ele precisa engendrar.

Repare, se a gente imaginar rapidamente o pensamento do Pasolini na Itália dos anos 1960-70, o Pasolini não vê mais nenhuma perspectiva de construção solidária, porque ele imagina que há uma campanha, uma propagação social, de uma ideia de tolerância. E que a solidariedade nasceria, teria origem, teria gênese, num convívio pela tolerância. Mas aí ao mesmo tempo ele diz que a tolerância nunca é real, ela é falsa, porque, no momento em que você tolera alguém, você já a condenou antes. Então essa dimensão coletiva pela solidariedade através da tolerância não seria constituída, construída, possibilitada e por aí vai.

Então, eu acho que tem um nó górdio aí se a gente imaginar, por exemplo, que a riqueza em si, dentro de um sistema do capital, ela é talvez a maior das violências. É a acumulação de riqueza, e a acumulação de riqueza no nível absurdo dessa acumulação, porque acumular, e a acumulação do acúmulo… Esse tipo de violência não será banida do capital ou do capitalismo do século XXI, que é anarco-capitalismo, quer dizer, um capitalismo liberal ao extremo. Isso não vai desaparecer. Então como é que você pode ser solidário nesse enfrentamento constante do instrumento de opressão? Me parece muito inviável a perspectiva da solidariedade como constituinte de uma comunidade da vida agora, sim.

E entrando um pouco na questão das palavras, você pensando as palavras enquanto poeta, escritor, professor. O Anders passa muito por isso no diário e vai escrever, por exemplo, que a palavra guerra está ultrapassada ali, porque não houve guerra em Hiroshima. Ele fala em pura matança. Ele vai dizer também que se a bomba tivesse sido destruída hoje teria sido considerada limpa. Eu queria te ouvir um pouco sobre como a gente disputa essas formas de nomear hoje diante de mídia, de algoritmo, de fake news, de extrema direita…

O poeta Régis Bonvicino, que acabou de falecer numa queda na Itália, tinha uma postura muito contundente, inclusive acerca da fragilidade dos escritores e dos poetas no Brasil com a linguagem, e com a observação das coisas um pouco mais expandidas, quer dizer, que tentassem tocar as coisas para além do alcance das coisas que estão à mão. Ele dizia que o poeta no século XX passou a ser aquele que tudo nomeia, mas que não tem importância alguma. Então me parece que o atributo da linguagem como constituição, como dilação subjetiva de controle, hoje não só é notório como é exacerbado. Quer dizer, vivemos num plano subjetivo da linguagem, em que parece que essa linguagem não tem mais nenhum estatuto de referência. Entramos no plano definitivo de uma linguagem de síntese, quando não há um referente para essa linguagem.

O Anders, além desses exemplos que você dá, da “limpa”, da “paz”, tem um trecho no prefácio ainda sobre a questão da velocidade. Isso me chamou muito a atenção, que ele vai dizer que as modificações da política e da história que aconteceram nos últimos anos (quer dizer, ele está escrevendo em 1982, que é a última edição que ele cuida desse texto) têm a ver com as modificações da velocidade. E aí ele vai fazer toda uma pequena parte nesse prefácio em torno do termo, o que seria a velocidade, não mais só a história da técnica que está invertendo tudo, mas a velocidade da história da técnica. E esse termo passa a fazer parte intensamente de todo o pensamento dele durante todo o livro, a velocidade da modificação dos produtos, por exemplo, se referindo obviamente à bomba, à dimensão da bomba.

Essa mesma Elsa Morante que eu falei antes, um livro dela de 1967, salvo engano, que foi traduzido no Brasil agora, em 2014-15, pelo Davi Pessoa, que é um tradutor de literatura e filosofia italiana, além de professor da UERJ, o livro se intitula exatamente Pró ou Contra a Bomba Atômica. Que me parece uma conversa direta com o livro do Anders sobre Kafka, quando ele já inicia essa discussão, um livro de 1946, que se intitula Kafka: Pró e Contra. E essa dimensão da velocidade me parece muito severa, porque ele vai dizer que a velocidade apresenta os novos objetivos da destruição, e que essa destruição pela velocidade vai diretamente às formas de governo, isso que nós chamamos de economia completamente livre. O contrário disso seria imaginar as economias não livres, ou seja, totalitárias, ditatoriais. Enfim, então ele se pergunta como fazer qualquer asseguramento de paz diante desse novo espectro da história da técnica, a velocidade.

Como eu falei da riqueza, o Paul Virilio, um filósofo francês, que me parece que dos anos 1980 para cá, depois do Anders, veio a ser o grande pensador da instrumentalização da história técnica a partir dos elementos bélicos militares, vai dizer que junto com o problema da riqueza no capital, no capitalismo, o outro problema que precisa ser discutido é o da velocidade. A velocidade dos motores. Tanto que ele vai dizer que nós saímos das democracias para as dromocracias, ou seja, regimes de governo instalados pela velocidade.

Vou dar um exemplo, o senador Davi Alcolumbre disse que se o presidente Lula produzisse, provocasse, estabelecesse o veto às medidas que eles querem implantar às 10 da manhã, às 10h01 ele colocaria em votação no plenário. Isso não é mais estatuto de democracia parlamentar, é dromocracia parlamentar, que se constitui sob o judice da ameaça.

E a gente está sempre visitando a memória dos sobreviventes de guerras, genocídios, ataques, é um assunto que toca a humanidade. E nesse caso há alguns pontos particulares, por exemplo, o nível de barbaridade do ataque com o Japão já praticamente rendido (muita gente não sabia nem o que estava acontecendo); outro fato é que três dias depois acontece outra bomba em Nagasaki, não que elas precisem ser comparadas, mas de certa forma se torna ainda mais cruel. Qual o seu palpite sobre como a gente pode reconstruir uma sociedade que acredite em valores humanos depois de tanta destruição, se a gente pensar, por exemplo, num futuro de Gaza?

Eu tendo a imaginar que não tem mais retorno disso. O temor, por exemplo, apontado pelo Günther Anders exatamente em torno de que não haja uma preocupação comum com a Terceira Guerra Mundial. Ele fica muito assustado que não haja uma preocupação entre os cientistas intelectuais e que ele chama, inclusive, de que há uma preguiça, eu adorei isso, há uma preguiça de pensar sobre o problema atômico, o problema nuclear. Há uma disputa por construção de arsenal nuclear, e veja que no Brasil dos anos 1980 se começa a ter a construção da usina nuclear, quer dizer, tem que ter usina nuclear, tem que ter energia nuclear, quase como um poderio demonstrativo ou uma demonstração de alguma ideia de poder em torno dessa perspectiva atômica, nuclear.

Depois desse primeiro problema, dessa disputa entre nações, é a disputa de fronteira. E a fronteira a gente sabe a dimensão fascista que o termo tem, esses termos fronteira, território, que são termos de controle. Se pegarmos o exemplo dos palestinos e da faixa de Gaza… E aí com muito cuidado ao falar sobre isso, com muito respeito ao quantitativo de mortos, a dimensão secular desse genocídio, porque é um genocídio secular, que ele começa com as primeiras ideias em torno disso no século XIX, depois elas são instituídas formalmente a partir de 1917, depois em 1947, 1948, com um desejo europeu, um europeu comum, e que os ingleses chefiam isso, e que tem a ver com a construção do Estado de Israel e um afastamento completo dos árabes daquela região. A região diminui sensivelmente de tamanho para a habitação dos árabes, e ainda tem aí um aspecto, se a gente quiser puxar uma nota de rodapé, que é a questão dos colonos, por exemplo, se você tinha mil colonos ali no Líbano e na Cisjordânia, hoje você tem 700 mil, um milhão, e esses colonos produzem uma guerra diária, uma guerra civil, a guerra dos dias, diária, uma guerra diária contra a população palestina dessas regiões, desses assentamentos. Então, quer dizer, isso tem a ver com um problema só na minha cabeça. O racismo.

A grande atenção da Europa, me parece, com a dimensão nazista promovida por Adolf Hitler, tem a ver que era uma população branca e rica que Hitler atacava, a população judaica. Isso não sou eu quem diz isso, está em vários textos, inclusive de pensadores judeus. Quando isso se vira para uma população moura, árabe, de outro tom de pele, de outra perspectiva, inclusive de monoteísmo, quer dizer, você sai do judaísmo para o islamismo, tem uma islamofobia evidente nisso… Então tem uma questão muito evidente para mim aí que é o racismo. Então não me parece que haja nenhum valor humano, se a gente pensar numa valoração do humano, que não passe por essa, que seria quase a perspectiva da bactéria, a perspectiva do verme, que é você reduzir o ser humano por completo a um fungo. É não atribuir importância, inclusive, a essas pequenas e minúsculas e vidas substratas que nos mantém, como os fungos, as bactérias, os vermes, como são importantes na nossa cadeia de mundo, de vida, de tudo. É a larva, é reduzir aquilo que não atribuímos importância. Então isso me parece racismo o tempo todo.

Por fim, Manoel, você tem sua série de livros com a guerra como tema. Queria saber o que é escrever sobre, diante, assistindo ou em estado de guerra? Como é essa busca nesse tempo de violência, de barbárie? Até para fazer uma referência ao livro, se o Anders vai colocar o evento da bomba atômica como uma virada de chave para esse estado permanente de autodestruição, já são algumas gerações nascendo com o conhecimento de, por exemplo, quanto tempo o mundo precisa para se destruir, para acabar em caso de uma nova grande guerra. O que é, no fim das contas, escrever diante disso tudo?

Bom, aí tem muitas nuances, né? A primeira delas me leva exatamente ao texto do Anders, que você se refere, e tem um trechinho, e aí eu posso até ler, tem duas linhas, que onde ele fala que o objetivo que a técnica encarnada na indústria nuclear deve perseguir constantemente para se manter viva é a destruição, inclusive de instalações técnicas. É uma guerra da técnica, né? É sobre isso que estamos falando.

E aí tem a famosa e clássica proposição do Theodor Adorno, depois de Auschwitz, ao se deparar com o problema do poema em direção ao extermínio, que depois de Auschwitz não seria mais possível escrever poesia. E aí vem Paul Celan, o poeta romeno-alemão, judeu, que reinstala um pouco o problema de outro modo. A curva disso aí me parece que é a poesia brasileira, especificamente no caso, e aí eu posso te falar o porquê da minha escolha por esse projeto dos livros de guerra, a poesia brasileira é terminantemente adocicada e lírica.

João Cabral não cansava de se perguntar a Vinícius de Moraes se ele não tinha outro órgão, se ele só tinha o coração, né? Então, por a poesia brasileira ter uma tradição lírica, com furos nessa tradição lírica, ela termina por ser pessoalizada. Se você pega um livro de um escritor japonês como Kenzaburo Ue, sobre o filho, vítima do atomismo da bomba em Hiroshima, que se chama Questão Pessoal, o livro em nenhum momento é pessoalizado no problema do Kenzaburo Uo como relato, como narrador dessa memória e desse pequeno filho, dessa pequena criança que cresce vítima dessa atomização, né? Mas por outro lado, ele expande isso para um problema coletivo do ser humano, vítima dessa radiação nuclear, né?

Já que falei dele, o Régis Bonvicino relatava, contava, quando eu era garoto e encontrava com ele, ia muito para São Paulo só encontrá-lo porque editávamos uma revista juntos, ele morava ali em Higienópolis, Santa Cecília, na rua Piauí, e a gente ia para uma praça ali perto. E numa dessas praças ele disse que ali em 1986 ele encontrou o Paulo Leminski pela última vez, eles eram muito amigos, e uma das frases que o Leminski disse para ele é que ele, Leminski, não ia suportar porque estava tudo atomizado. Então essa recuperação, essa rememoração agora do Régis e do Leminski, me parece muito interessante, primeiro pela postura política contundente de um poeta como o Régis, e depois pela postura política contundente de um poeta como o Leminski, que agora vai ser homenageado numa feira literária que tem como sua financiadora principal a Vale. Que é uma empresa de mineração irresponsável, por sua vez responsável pela morte de milhares de pessoas e da destruição da vida de milhares de pessoas. Ao mesmo tempo pela destruição de rios, e mata nativa, e espécies animais, uma denúncia que já vinha sendo feita pelo Carlos Drummond de Andrade, o poeta, desde os anos 1960, numa série de textos para jornais e numa série de poemas.

Qual a atribuição disso? Nenhuma. A poesia brasileira hoje ela vive de um nicho de pacto cínico, todos escrevem do mesmo jeito, uns para os outros, para se lerem e se converterem em beldades e, como eu poderia dizer, cocottes nessas feiras. É uma espécie de cocotagem. Ao mesmo tempo que você vê por outro lado uma outra dimensão muito oportunista na tentativa de organização de antologias, de poemas, que tratem dessas questões como por exemplo o genocídio em Gaza. Pessoas que nunca falaram sobre isso, nunca estiveram preocupadas com isso, mas de uma hora para outra se colocam preocupadas em circunstância de ocasião. Eu acho isso desrespeitoso, sabe. Um malogro.

Então meu projeto desde o começo, desde o primeiro livro, tem a ver com essa problemática do livro de guerra, da guerra, mas não apenas como uma instrumentalização da técnica bélico-militar. Mas a guerra cotidiana, a guerra dos dias, que num país como o nosso de terceiro mundo, racista e de distinção regional muito grande, porque é um país de dimensões continentais absolutas e absurdas, essa guerra dos dias é um vilipêndio, é muita violenta. Então essa guerra dos dias tende a uma expansão, por exemplo, se a gente levar a ideia de uma guerra do dia, de alguém miserável, de uma comunidade do Rio de Janeiro, alguém de pele preta, que sofre por exemplo violação policial na sua família, na sua vida, sua comunidade, seu bairro, sua rua, sua viela, seu barraco, o que for… Se você transferir isso para o problema palestino, numa gradação, é o mesmo problema. A diferença é a gradação do uso. Ainda mais se você imaginar que essa polícia usa instrumentalização bélica de Israel. A polícia do Piauí comprou armamento de Israel. Então estamos diante de uma questão que é essa guerra dos dias, essa guerra técnica.

Como vivenciar a esperança de solidariedade, de uma comunidade de vida, de uma retomada do abraço, cuidado, atenção, diante de tudo isso? Então meu trabalho vai nesse corte. E para fazer esse trabalho como escritor, ou poeta que talvez imagino que possa cumprir, tem a ver com uma tomada de posição de não acolher o pacto cínico. Acho que no Brasil não tem mais o escritor público, o poeta público, e, ah, a revolução era o Maiakovski que ia para a rua, mas a revolução não se dá mais nesse modo. A revolução se dá nas coisas mais simples, como por exemplo você gravando isso comigo e eu dizendo essas coisas, me parece que tem aí uma questão que pode ser imaginada como um princípio de uma ideia astronômica da revolução. De alteração de alguma coisa. Começa com uma tomada de posição, e depois a gente pode ir para isso que o Anders chama de marcha. Mas começa com um pensamento e uma tomada de posição sobre essas coisas todas.

> #01 Hiroshima está em toda parte: conversa com Cristiane Nakagawa

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