
bell hooks, violência patriarcal e processo penal
Em artigo publico no site Migalhas, especializado em conteúdo jurídico, a advogada criminalista Marta Clem traz o pensamento de bell hooks para a reflexão sobre violência doméstica (no caso, patriarcal) e suas implicações no direito penal. A Elefante vem publicando a obra de hooks desde 2019, e você pode conhecer a coleção de 14 livros em nosso site.
Por Marta Clem
Publicado no Migalhas
A premiada escritora Chimamanda Ngozi Adichie, em palestra proferida no TED Talks, explicou o perigo e o impacto degradante de uma história única: ela apresenta uma compreensão limitada e estereotipada da história, rouba a dignidade das pessoas, torna difícil o reconhecimento da humanidade em comum.
Narrativas de violência contadas e moduladas por poderosos segmentos de comunicação social têm o condão de apagar a humanidade de uma, duas ou de um grupo indefinido de pessoas, nos termos que a eles parecerem mais atraentes no momento e, obviamente, isso influencia fortemente os campos político e jurídico de uma nação, mormente o campo penal, contribuindo para a fixação da imagem pública de um delinquente categorizado, generalizado, construído no imaginário coletivo por intermédio de estereótipos.
A despeito das mídias de massa tradicionais não ocuparem enorme espaço na vida dos brasileiros da atualidade, como foi entre os anos de 80 e 90, os telejornais de cobertura policial seguem com altíssimos índices de audiência, sendo catapultados a um número infinito de pessoas por intermédio das republicações nas mídias sociais.
Questões complexas, como violência contra vítimas pertencentes a grupos vulneráveis, discriminação e (in)segurança pública, chegam à psique da população, na maior parte das vezes, através de narrações pitorescas, pouco comprometidas com a objetividade ética, propositadamente omissas naquilo que não alcança forte apelo popular.
Zaffaroni nos ensina que a seletividade estrutural da criminalização secundária confere especial destaque às agencias policiais, que, por sua vez, vivem tensamente condicionadas às agências de comunicação e as políticas.
Casos de violência de gênero são televisionados quase que diariamente e, ainda que seja indiscutível os gravíssimos índices de violência contra a mulher (segundo o Atlas da Violência de 2025, entre 2022 e 2023, teve crescimento de 2,5% nos crimes de feminicídio, sendo a média nacional de dez mulheres assassinadas por dia), as mídias de massa costumam reduzir a abrangência do conceito de violência doméstica, encerrando o tema ao assassinato bárbaro de mulheres realizado por homens que integram o seu círculo de convívio pessoal.
Contudo, além de haver inúmeras outras formas de agressão (psicológica, patrimonial etc.), o sujeito ativo da violência doméstica pode ser tanto o homem quanto a mulher. Ou seja, mulheres também são agentes de violência.
No polo passivo, por sua vez, pessoas designadas como do sexo masculino ao nascer, mas que se identificam e vivem como mulheres, as mulheres trans, também são compreendidas como vítimas desse tipo de violência.
Em observância ao impacto social que o enviesamento conceitual da violência doméstica vem causando em diversos setores da sociedade, com foco nas ações de natureza penal — o mais drástico campo do Direito — este texto busca a compreensão do conceito sob uma ótica multidisciplinar, trazendo para o debate a teórica feminista bell hooks, escritora, artista, uma das maiores pensadoras antissexistas do mundo. Suas obras buscam por transformação e superação de quaisquer formas de opressão, pautando-se na interseccionalidade entre gênero, raça e classe.
Afinal, o que é violência doméstica? De que resulta? Quem são seus proliferadores?
Inicialmente, importa destacar a definição trazida pela lei 11.340/06, o mais relevante dispositivo legal de defesa das mulheres vítimas de violência doméstica.
Em resumo, segundo a 11.340/06, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que ocorra no âmbito da unidade doméstica, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual.
As formas de violência, para além do feminicídio, incluem agressão física, moral, patrimonial, sexual, psicológica, com destaque às constantes atualizações legislativas que visam inibir o crescente uso de tecnologias para perseguir, constranger, ameaçar e humilhar mulheres (como a lei 15.123/25, marco jurídico significativo que agrava a pena do crime de violência psicológica contra a mulher quando perpetrado mediante o uso de tecnologias de inteligência artificial, as chamadas deepfakes).
Além disso, conforme informado, os tribunais superiores estendem os polos ativo e passivo, aumentando o alcance da norma para abarcar, respectivamente, mulheres (como potenciais agressoras) e mulheres trans (potenciais vítimas).
No campo teórico feminista de matriz radical, bell hooks nos propõe uma abordagem ainda mais ampliada do conceito de violência doméstica, preferindo, em razão de seus contornos práticos, nomear o fenômeno como “violência patriarcal”.
Ela explica que o termo violência patriarcal é útil porque, diferentemente da expressão violência doméstica, ele lembra o ouvinte que a violência no lar se relaciona com um problema maior: o sexismo.
Sexismo é um complexo sistema de opressão que privilegia os homens e lhes confere poder sobre as mulheres. Ele não se limita a violência física, inclui a objetificação sexual, perpetuação de estereótipos de gênero e a exclusão da mulher da história. De acordo com hooks, homens e mulheres são socializados desde o nascimento para aceitar pensamentos e ações sexistas. Como consequência, mulheres podem ser tão sexistas quanto homens.
A violência doméstica, portanto, renomeada como violência patriarcal, integra um complexo sistema de poder que prejudica primordialmente mulheres, mas também homens. Ela é um dos mecanismos de perpetuação do sexismo e fundamenta-se na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de variadas formas de força coercitiva.
Em Feminist theory: from margin to center, a autora deixa claro que é um equívoco reduzir a luta contra o sexismo como um movimento anti-homem. De acordo com hooks, inicialmente o foco do feminismo em violência doméstica destacou a violência de homens contra mulheres, contudo, com o progresso do movimento, restou evidenciado que a violência doméstica também estava presente em relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Ou seja, mulheres em relacionamentos com mulheres são inúmeras vezes vítimas de abusos.
Além disso, a autora lança luz ao fato de que, na luta por evidenciar a violência de homens contra mulheres, algumas pensadoras feministas de matriz reformista, optaram por apontar como vítimas sempre e somente mulheres, solapando a realidade da violência patriarcal perpetrada por mulheres contra crianças:
Em um esforço zeloso de chamar atenção para a violência de homens contra mulheres, pensadoras feministas reformistas ainda escolhem frequentemente retratar como vítimas sempre e somente mulheres. O fato de que vários ataques violentos contra crianças sejam cometidos por mulheres não é igualmente destacado e visto como outra expressão de violência patriarcal.
É nesse ponto que a autora feminista nos apresenta um alerta:
É essencial para a continua luta feminista pelo fim da violência contra mulheres que essa luta seja vista como parte de um movimento maior pelo fim da violência. Até então, o movimento feminista se concentrou primordialmente em violência masculina e, como consequência, proporciona credibilidade para estereótipos sexistas que sugerem que homens são violentos e mulheres não; homens são algozes, mulheres são vítimas.
Hooks continua:
Esse tipo de pensamento nos permite ignorar a extensão de que mulheres (e homens), nesta sociedade, aceitam e perpetuam a ideia de que é aceitável que uma parte ou grupo dominante mantenha seu poder sobre o dominado por meio de força coercitiva. Isso nos faz negligenciar ou ignorar até que ponto mulheres exercem autoridade coercitiva ou atos violentos contra outras pessoas. O fato de que mulheres talvez não cometam atos de violência com tanta frequência quanto os homens não nega a realidade da violência feminina. Devemos enxergar tanto homens quanto mulheres nesta sociedade como grupos que apoiam o uso da violência, se quisermos eliminá-la.
Ou seja, é preciso localizar e encarar o problema da violência patriarcal em sua extensão completa e complexa, o que significa dizer que para acabar com o patriarcado (sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos nós participamos de sua disseminação: homens e mulheres. Homens, como um grupo, são quem mais se beneficiaram e se beneficiam.
Não se pode reduzir a luta pelo fim desse nefasto problema a estereótipos sexistas e a demonização irracional e incondicional de homens, principalmente do ponto de vista jurídico penal, mais especificamente da valoração da prova no processo penal. Por séculos mulheres foram silenciadas, suas palavras desacreditadas, todavia, não é razoável a adoção de um formato de justiça que internalize o superdimensionamento da narrativa da vítima.
Para além dos princípios processuais penais básicos, como a presunção de inocência, dúvida razoável, ônus da prova, aferição de coerência interna e externa da palavra da vítima, muito bem explicados por Janaína Matida em A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção de inocência, sugere-se aqui que a feminista bell hooks pode contribuir com a racionalidade probatória na análise e valoração da prova nos delitos de gênero mediante sua visão expandida da violência doméstica, que de forma lúcida e cirúrgica, nos lembra que esse tipo de violência faz parte de um enorme mecanismo de poder chamado sexismo e que ele engolfa a todos nós.
Nesta multifacetada e feroz rede de violência encontra-se também a mulher como sua perpetuadora e, se a ideia é dar fim a violência patriarcal, não conseguiremos ocultando ou nos recusando a enfrentar partes da história. Voltamos ao perigo de uma história única, maniqueísta, que demoniza uns, endeusa a outros, modulando-se por tendencias midiáticas e/ou políticas populistas, seguindo na contramão do moderno processo penal democrático.