Marion Nestle: ‘A indústria de alimentos é igual à do cigarro’
Entrevista com Marion Nestle,
autora de Uma verdade indigesta
Publicado em VivaBem, UOL
Uma jarra de água, uvas graúdas, um bolo caseiro que parecia ser integral e diversas outras delícias que mal vi porque cheguei afobada. O trânsito tinha causado o atraso de alguns minutos até a sede da organização não governamental ACT Promoção da Saúde, uma das responsáveis pela vinda ao país de Marion Nestle, considerada uma das principais vozes da ciência da alimentação no mundo.
Ao lado da mesa, a nutricionista americana logo abriu um sorriso que não fechou mais, mesmo quando falou sobre verdades indigestas — Uma verdade indigesta, aliás, é o título de um de seus livros, lançado no Brasil pela Editora Elefante.
Bióloga molecular pela Universidade da Califórnia, Marion Nestle entrou no mundo da nutrição no final dos anos 1960, quando lecionava na Universidade Brandeis. Passou por outros lugares — até pelo Departamento de Saúde do governo dos Estados Unidos — e, em 1988, foi parar na Universidade de Nova York, onde se aposentou em 2017.
Quinze anos antes disso, porém, lançou o livro que deu uma guinada em sua trajetória, “Food Politics”. Em suas páginas, soltou o verbo mostrando o que a indústria de alimentos faz com a nossa saúde e a rede que a apoia nessa missão nefasta, tentando abrir os olhos das pessoas.
É ao que ela se dedica até hoje, aos 89 anos, com fôlego e ânimo de fazer inveja a esta colunista esbaforida, curiosa para saber qual tinha sido a motivação para ela focar na indústria alimentícia. E é aí, logo no começo da história, que entra o cigarro.
“Deveríamos fazer o mesmo com a Coca-Cola!”
O episódio aconteceu bem antes de Marion Nestle publicar o tal livro. A cientista tinha ido a um evento do American Cancer Institute sobre as causas comportamentais dos tumores malignos. “Havia um número imenso de cientistas advogando contra o tabagismo por lá”, relembra. “Claro que eu sabia que o cigarro causava câncer. Mas, sinceramente, nunca tinha parado para refletir sobre a questão do marketing.”
A sacada foi quando um pesquisador exibiu como a indústria de tabaco agia para atrair jovens, ou seja, para garantir futuras gerações de fumantes. “Chocante, mas davam um jeito de atrair até crianças”, disse ela a quem cresceu “fumando” cigarros de chocolate.
Foi neste exato instante que veio o seu primeiro insight. “Pensei: nós, nutricionistas, deveríamos fazer a mesma coisa, ir a eventos de medicina e mostrar o marketing da Coca-Cola. Porque ele é idêntico. Ora, os anúncios associam o refrigerante a situações alegres e felizes que todos gostariam de viver, chegam aos locais mais remotos e atraem principalmente crianças, seus futuros consumidores cativos.”
Dá para sentir o sabor desse marketing não só na bebida, mas em todos os alimentos ultraprocessados, comento — e Marion Nestle, que resolveu investigar as estratégias de venda desses produtos a partir daquele evento sobre câncer, concorda.
“A culpa da obesidade infantil não é dos pais e, sim, da indústria”
No meio dos anos 1990, não dava mais para negar o crescimento da obesidade infantil mundo afora. “Porém, quando eu ia a congressos, palestrante atrás de palestrante questionava a mesmíssima coisa: ‘o que podemos fazer para que os pais comecem a alimentar seus filhos direito?’ Bem, na verdade, eles falavam mais diretamente das mães, porque a culpa sempre cai mais sobre a mulher nessas horas”, lamenta a professora.
E o que a espantava ainda mais? “Nunca ouvi um deles dizer algo como: ‘o que podemos fazer para que a indústria pare de vender porcaria e ultraprocessados para as crianças?’ Essa pergunta nunca foi feita. Havia uma lacuna. Juntando tudo, foi por isso que escrevi aquele primeiro livro e todos os outros sobre esse tema.”
“Eles só querem lucro e só lucram se você comer mais”
A cientista continua: “O propósito das indústrias de alimentos não é fazer com que as pessoas comam bem e tenham saúde. Elas visam o lucro. Todo o sistema criado por elas é estruturado para que as pessoas comam o máximo possível e com a maior frequência possível, porque é assim que elas ganham dinheiro.”
Aliás, não só o sistema — das embalagens ao anúncio, passando pela exposição privilegiada em supermercados e o apoio de políticos. A própria formulação desses produtos, altamente palatáveis, é feita para criar a vontade de a gente dar mais e mais mordidas até não restar farelo.
“Não dá para enxergar essa indústria como mera produtora de alimentos que parecem maravilhosos sem refletir sobre motivação por trás disso”, acredita a pesquisadora. “Provocar essa reflexão é um dos meus maiores objetivos.”
E uma coisa é certa: bebidas e alimentos ultraprocessados não catapultam apenas a obesidade em pessoas de todas as idades. Eles comprovadamente nutrem o crescimento do diabetes, da gordura no fígado, das doenças cardiovasculares e de vários tipos de câncer.
Na semana passada, a revista britânica The Lancet lançou o primeiro de uma série de artigos reforçando esses elos entre ultraprocessados e problemas graves de saúde. Os 43 autores de vários países clamam que é preciso fazer alguma coisa com urgência. Há mais de vinte anos, a professora Marion Nestlé já tinha consciência disso.
“A indústria de alimentos é peça-chave de um capitalismo cruel”
Indagada se algo mudou nas últimas duas décadas, ela responde sem titubear: “Hoje, quando faço uma palestra sobre política alimentar, evito falar em capitalismo porque noto um desconforto no público. Mas aí sempre alguém levanta a mão e diz: ‘não é de capitalismo que estamos falando?’ Então, acho que as pessoas já começam a entender perfeitamente do que se trata. E talvez a pergunta que precise ser feita seja outra: o que podemos fazer para que o capitalismo pare de ser tão cruel? A indústria de alimentos é peça-chave que o movimenta, criando abismos entre pobres e ricos.”
Uma parcela da população já está mais consciente. No entanto, quando falta dinheiro e educação, a indústria faz a festa. É nas camadas economicamente mais vulneráveis que o consumo de alimentos ultraprocessados mais cresce.
“Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas que não têm como comprar alimentos saudáveis também não têm tempo para cozinhar. Aliás, muitas vezes, não têm fogão ou geladeira, nem sequer foram ensinadas a preparar uma refeição”, observa. “Cresceram em uma cultura em que consumir ultraprocessados é o normal. Educação é importante nesse contexto, mas não sejamos ingênuos: ela não é tudo.”
“Estamos falando de um marketing que sabe driblar qualquer regra”
Marion Nestle conta que, ao aterrissar no Brasil, foi logo a um supermercado. “É sempre a primeira coisa que faço quando chego em algum lugar”, revela. “Desta vez, procurei por cereais, porque estou escrevendo um livro sobre eles. E vi duas embalagens absolutamente iguais de determinada marca. Uma tinha selo de advertência, avisando que o produto era rico em sódio, gorduras e açúcares. Mas a outra, não. Curioso, não é mesmo?”
A pesquisadora, então, foi caçar qual seria a diferença entre as caixas e descobriu. “Apesar de não falar português, consigo entender rótulos”, garante. “E, no caso, um dos cereais tinha adoçante artificial. No entanto, o açúcar era o segundo item na lista de ingredientes.”
A ordem nessa lista encontrada nas embalagens vai do que existe de maior a menor quantidade em um alimento. “No cereal, o que fizeram foi diminuir um pouco a quantidade de açúcar, adicionando o adoçante, só para o produto escapar do ponto de corte a partir do qual seria obrigado a exibir o selo de advertência”, entendeu Marion Nestle.
Para ela, é por essa razão que o conceito de ultraprocessado precisa ser radical: “Note que, se a gente focar nele, aquele cereal continuará sendo um ultraprocessado, contendo mais ou contendo menos açúcar. Basta as pessoas se atentarem a isso. Atualmente, há até mesmo produtos que se dizem ‘fit‘, mas são igualmente ultraprocessados, levando a um consumo maior de calorias também”, exemplifica.
Marion Nestle, que faz muitos elogios às políticas alimentares adotadas no México, se espanta ao ver que, até mesmo lá, a indústria dá o seu jeitinho. Em uma de suas idas a supermercados locais, fotografou pessoas virando as embalagens nas prateleiras de modo a esconder os selos de advertência.
O que, então, poderia ser feito? “Muita coisa ainda”, acredita. “Taxação não resolve, mas ajuda. Educação é necessária, mas precisa caminhar ao lado de políticas que, por exemplo, restrinjam severamente a propaganda desses alimentos. Valorizar a oferta de alimentos naturais, comida de verdade, é fundamental. Mas, sim, será difícil mudar. Precisamos persistir. Difícil não quer dizer impossível”, diz, escancarando ainda mais o sorriso.
Foto: Reprodução Youtube Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome










