A tragédia em Gaza não começou em outubro de 2023

Por Rafael Domingos Oliveira
Trecho da Apresentação
Gaza no coração

 

Fragmentos de três dias em Gaza:

 

(i) Janelas tremem violentamente, reverberando os mísseis dos caças que explodem no chão, lançando estilhaços e detritos por todos os lados. Bebês esperneiam, cachorros latem e o pandemônio se sucede. As ruas estão sem tráfego. Tudo o que se move torna-se alvo. Acima, os caças israelenses guincham cortando o ar, acompanhados pelo habitual zumbido dos drones que pairam sobre as nossas cabeças. […] O Ministério da Saúde de Gaza anunciou que os hospitais estão com falta de remédios e que 25% dos suprimentos médicos estão em falta. O porta-voz do ministério, Dr. Ashraf al-Qidwa, implorou à comunidade internacional para que reaja frente às necessidades da população.

(ii) Em declaração oficial, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, negou as acusações de que Israel está alvejando civis palestinos. “Israel tem como alvo os terroristas do Hamas, não civis inocentes. Ao contrário, o Hamas alveja civis israelenses, e se esconde atrás de civis palestinos. O Hamas, portanto, carrega toda a responsabilidade por qualquer mal que os civis, tanto israelenses como palestinos, possam vir a sofrer.”

(iii) Com lágrimas nos olhos, o âncora do canal televisivo Al-Aqsa anunciou a morte do jornalista palestino Hamed Shehab no início de noite de quarta-feira, atingido por um ataque aéreo israelense enquanto dirigia para casa na rua Omar al-Mukhtar. Shehab, 27 anos, estava trabalhando para a emissora local Media 24. Dirigia um carro que tinha as letras “TV” em adesivos vermelhos grandes no teto quando foi atingido por um míssil israelense.

 

Ao ler esses relatos, seria natural que qualquer pessoa rapidamente associasse os eventos narrados a alguns dos episódios que se seguiram ao dia 7 de outubro de 2023. São descrições com um grau de detalhamento incomum aos canais da imprensa hegemônica, é verdade; no entanto, quem lê notícias internacionais certamente esbarrou em alguma do tipo. Os fatos acima, porém, foram escritos há dez anos — respectivamente, nos dias 9, 10 e 11 de julho de 2014 — pelo jornalista palestino Mohammed Omer, testemunha ocular daquela que ficou conhecida como operação Margem Protetora. Após quase dois meses de ataques mortais, mais de dois mil pessoas foram assassinadas em Gaza pelas forças israelenses — 536 delas, crianças. Dias antes do início da ofensiva, em 2 de julho, o jovem palestino Muhammad Abu Khdeir, de dezesseis anos, havia sido sequestrado, torturado e queimado vivo por colonos judeus. Quando foi capturado, Khdeir estava à espera de amigos com os quais comeria antes do jejum diurno do Ramadã; depois, iriam para a mesquita. Um dia antes, o jovem tinha decorado as ruas de Shuafat, seu bairro em Jerusalém, com lanternas típicas do mês sagrado dos muçulmanos. Seu corpo seria encontrado dias depois nas florestas de Deir Yassin.

Os relatos de Omer sobre os eventos de 2014 também caberiam perfeitamente nas descrições da ofensiva israelense em Gaza ocorrida entre 27 de dezembro de 2008 e 18 janeiro de 2009, conhecida no mundo árabe como Massacre de Gaza e referida por Israel como operação Chumbo Fundido. Mais de 1,5 mil palestinos foram assassinados na ocasião, e outros cinco mil ficaram feridos. As descrições do jornalista palestino ainda seriam plausíveis se se referissem à ofensiva israelense de maio de 2021, batizado pelo Estado judeu como operação Guardião das Muralhas, que vitimou mais de trezentos palestinos e provocou o deslocamento forçado de 72 mil pessoas.

Mesmo nos intervalos entre os sucessivos morticínios perpetrados por Israel, a vida em Gaza não é fácil. O Movimento de Resistência Islâmica — mais conhecido pelo seu acrônimo, Hamas — venceu as eleições para o governo de Gaza em junho de 2007. Desde então, Israel e Egito impuseram um bloqueio total ao território, o que significa o controle de tudo o que entra e sai por terra, ar e mar. Em março de 2008, o relatório de uma coalizão de organizações de direitos humanos que contou com a participação de Anistia Internacional, Care International, Cafod, Christian Aid, Médecins du Monde, Oxfam, Save the Children e Trócaire advertia que o bloqueio a Gaza constituía uma punição coletiva à população civil, e que a situação humanitária na estreita faixa territorial era a pior desde o início da ocupação israelense, em 1967, considerada ilegal pela Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Gaza possui uma das maiores densidades demográficas do mundo. O bloqueio impôs aos cerca de dois milhões de habitantes da região uma crise permanente, ampliada a cada onda de bombardeios intensivos de Israel — que ocorrem em intervalos de 3 a 5 anos. Dados oficiais revelam que mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza e que pelo menos 45% da força de trabalho está desempregada. Muitas das pessoas que moram em Gaza são refugiadas de ações militares anteriores promovidas por Israel. Existe uma escassez crônica de água, energia, alimentos, combustíveis e medicamentos.

O bloqueio israelense é sustentado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, que justificam seu apoio pelo fato de o Hamas não reconhecer o direito de existência do Estado de Israel.

Como resultado, a maioria dos gazenses sobrevive com menos de dois dólares por dia. Em 1998, cerca de 21,6% da população vivia na pobreza absoluta, percentual que subiu para aproximadamente 35% em 2006, conforme dados do Banco Mundial. Sem assistência financeira e humanitária, em 2007 o índice de pobreza absoluta chegou a 67%.

A situação se agrava a cada ano, e agora chegou a níveis extremos.

No relatório “Alerta de Gênero: o impacto de gênero da crise em Gaza”, divulgado em janeiro de 2024 pela ONU Mulheres, duas mães são mortas em Gaza a cada hora; 85% da população foi deslocada, incluindo mais de um milhão de mulheres e meninas; mais de dez mil crianças perderam a mãe. Segundo dados da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), 63 mulheres são assassinadas por dia em Gaza. Mulheres e crianças são alvos preferenciais de Israel, que, como de costume, acusa o Hamas de utilizá-las como “escudo humano”.

A tragédia em Gaza, porém, não começa com o bloqueio de 2007; está profundamente conectada com a catástrofe palestina de 1948, a Nakba.

Abder Raouf Ibrahim Yusuf Misleh era uma criança quando seu povoado foi invadido por forças judaicas: primeiro, pelo Irgun Zvai Leumi; logo depois, pela Brigada Alexandroni, criada pela Haganá. Abder Raouf era uma das mais de duas mil pessoas, distribuídas em 434 casas, que habitavam a aldeia de Qaqun, seis quilômetros a noroeste do distrito de Tulkarm, no território da Palestina histórica. Em algum dia entre março e junho de 1948,

Abder viveu um verdadeiro pesadelo:

 

Lembro exatamente de quando entraram na minha aldeia. Eu tinha mais ou menos 12 anos, a minha aldeia tinha uma mesquita, tinha uma praça só. […] Naquele praça, sempre juntava muita gente no fim do dia, pra conversar, pra trocar ideia, toda aquele coisa de aldeão. Aquele dia, mais ou menos era cinco, seis horas da tarde, os judeus bombardearam aquele praça e mataram pessoas. Trinta e oito pessoas mortos na praça! Nós estávamos jantando, a comida ficou no prato.

 

A Haganá foi uma organização paramilitar judaica que operou no território palestino entre 1920 e 1948, quando se transformou na célula central das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). O Irgun, também uma organização paramilitar sionista, surgiu como uma dissidência radical da Haganá. Essa organização foi considerada de natureza terrorista e de inspiração nazifascista, conforme denunciado por intelectuais judeus — entre eles, Albert Einstein e Hannah Arendt — em uma carta aberta publicada no New York Times em 4 de dezembro de 1948. Um dos líderes do Irgun, Menachem Begin, tornou-se, em 1977, o sexto primeiro-ministro de Israel. Além disso, o grupo transformou-se, ainda em 1948, no partido de direita Herut, que em 1973 liderou a coalizão responsável pela criação do Likud, partido atualmente presidido por Benjamin Netanyahu.

 

Eu vi mulheres que a bomba explodiu, eu vi gente com barriga tudo aberta. Eu pessoalmente vi um amigo meu, a gente estudava junto. Eu vi, com minha idade. Eu passei a mão no rosto dele, na testa dele, pra reconhecer ele, tinha sangue pra tudo lado, a cabeça dele cortada, o rosto todo branco e eu passei a mão na testa dele pra reconhecer ele, eu nunca esqueço essa cena.

 

A cena, rememorada por Abder Raouf em entrevista à pesquisadora Soraya Misleh, sua filha, é inacreditavelmente contemporânea: as imagens e vídeos de crianças palestinas assassinadas, decapitadas, amputadas ou em estado de choque após perderem os pais e a família em bombardeios israelenses em Gaza circulam o mundo em tempo real. Os relatos de Mohammed Omer e Abder Raouf, assim como as imagens de Gaza pós-outubro de 2023 que nos chegam graças ao corajoso trabalho de jornalistas e fotógrafos como Motaz Azaiza, Belal Khaled, Bisan Owda, Wael Al-Dahdouh, entre tantos outros, criam a impressão de que Gaza, e os palestinos em geral, vivem um regime de historicidade particular, uma espécie de história sem tempo, submetidos a uma eterna repetição da catástrofe. […]

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