Antissemitismo e o domo de ferro ideológico de Israel

O “domo de ferro ideológico” consiste numa estratégia de desarmar críticas ou mesmo denúncias contra ações do Estado de Israel que desrespeitam tratados internacionais e os direitos humanos, utilizando para isso acusações de antissemitismo.

Por Rafael Domingos Oliveira
Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil

 

No último dia 13 de novembro, o artista, curador e professor haitiano radicado nos Estados Unidos, Anaïs Duplan, tornou público em sua rede pessoal no Instagram o e-mail que recebeu de Peter Gorschlüter, diretor do Museu Folkwang, em Essen, Alemanha. Na mensagem, Gorschlüter afirmou: “Percebemos que você compartilha e comenta uma série de postagens em seu canal do Instagram à luz da situação atual em Israel e em Gaza. Do nosso ponto de vista, algumas dessas postagens são inaceitáveis. Estas postagens não reconhecem o ataque terrorista do Hamas e consideram a operação militar israelita em Gaza um genocídio”.

Um dia antes, Duplan havia publicado sobre as notícias de que pacientes internados na UTI do hospital Al-Shifa, em Gaza, morreram devido às condições do bloqueio imposto por Israel que, além dos bombardeios, também impede que alimentos, água, energia e ajuda humanitária entrem em Gaza. Postagens anteriores de Duplan tratam do conflito, chamando atenção para o morticínio compartilhado nas redes sociais há 40 dias. Em momento algum, Duplan relativiza os ataques cometidos pelo Hamas.

O e-mail de Gorschlüter segue: “Ao publicar as declarações no seu canal do Instagram, você nos colocou na situação em que o museu pode ser considerado um apoiador de tendências antissemitas e de vozes que questionam o próprio direito à existência do Estado de Israel”. Duplan havia sido convidado como curador de uma mostra sobre Afrofuturismo, um dos temas de maior destaque em sua carreira intelectual e artística. O Museu Folkwang é considerado uma das instituições culturais mais importantes da Alemanha, e sua coleção abrange obras de arte dos séculos XIX e XX, além de um importante acervo fotográfico. Durante o regime nazista, Folkwang foi um dos museus mais afetados pela purga contra a chamada “arte degenerada”, tendo perdido, naquela época, mais de 1200 obras de artistas como Cézanne, Matisse, Chirico e Munch.

O e-mail de Gorschlüter é encerrado com a dispensa inegociável de Duplan: “Como consequência entendemos que não podemos mais apresentar o seu conceito curatorial sobre o Afrofuturismo na exposição. Entraremos em contato com os artistas convidados em nosso nome para comunicar esta decisão e pagaremos todos os honorários e custos de viagem acordados com você”.

A evidente desimportância com que a direção do museu parece tratar o tema do Afrofuturismo, já que o projeto foi cancelado em função de postagens no Instagram, além da absoluta falta de respeito ao trabalho de Duplan e sua equipe que estavam, inclusive, a caminho de Essen no momento que receberam o e-mail, deve ser acrescida pela séria acusação de antissemitismo. Gorschlüter, representando todo o aparato institucional de Folkwang, acusa Duplan de um crime. Este não é, no entanto, o primeiro caso em que um posicionamento pró-Palestina, ou apenas de crítica ao Estado de Israel, é objeto de censura e ataque, invocando o antissemitismo.

No final de outubro, a Associação Brasileira de Antropologia tornou pública uma nota de repúdio às tentativas de criminalização de cientistas por solidariedade ao povo palestino. A nota cita “tentativas de amedrontamento e silenciamento de pesquisadores que expressem sua solidariedade ao povo palestino”, tais como ameaças à vida e segurança, elaboração de listas criminalizantes e diferentes meios de estigmatização. Dentre as situações descritas na nota, destaca-se a ação conjunta feita por deputados bolsonaristas que divulgaram em suas redes sociais listas com nomes de entidades, parlamentares e ativistas pró-Palestina, como “apoiadores do Hamas”. E mais grave ainda, os próprios autores das listas afirmam ter enviado os nomes à representação estadunidense no Brasil.

Domo de ferro

O que une estes e outros tantos casos similares em todo o mundo é uma estratégia, difundida por entidades e intelectuais sionistas, que chamo de “domo de ferro ideológico” do Estado de Israel. “Iron Dome” é como ficou conhecida a tecnologia criada pela empresa de armas Rafael Advanced Defense Systems Ltd., com financiamento estadunidense. O sistema consiste na defesa antiaérea, projetado para interceptar e destruir mísseis de curto alcance e bombas de artilharia ainda no ar. Segundo as Forças Armadas israelenses, o Domo de Ferro, em operação desde 2011, apresentou uma “taxa de sucesso” de 90% em relação às tentativas de ataque contra o território israelense. Tal como a tecnologia militar, que impede que bombas atinjam o solo, o “domo de ferro ideológico” consiste numa estratégia de desarmar críticas ou mesmo denúncias contra ações do Estado de Israel que desrespeitam tratados internacionais e os direitos humanos, utilizando para isso acusações de antissemitismo. A diferença é que, enquanto o domo de ferro militar pode ser considerado uma legítima forma de proteger a vida e segurança de civis israelenses, o domo de ferro ideológico, por sua vez, se configura numa estratégia cínica e autoritária de silenciamento, impedindo que ações do Estado sejam objeto de reflexão crítica e censurando o debate público.

Carreata “Palestina Livre” pelas ruas da Fronteira entre Brasil e Uruguai (Rivera e Livramento ) (Crédito: Marcelo Pinto/A Plateia)

Por tratar-se de uma estratégia ideológica, o procedimento de silenciamento não é mais realizado apenas por instituições e entidades ligadas diretamente ao Estado de Israel, como ocorre com todo o sistema de ensino israelense – o que já foi largamente debatido em estudos como os da professora da Universidade Hebraica de Israel, Nurit Peled-Elhanan. A essa altura, a lógica já pode ser considerada um paradigma norteador da cobertura midiática, de instituições culturais e educacionais, e de toda e qualquer situação de debate público a respeito das atrocidades cometidas pelo Estado de Israel contra o povo palestino há décadas.

O antissemitismo é, certamente, uma das mais antigas e perenes ideologias racistas da história humana. Atestam isso os eventos históricos de perseguição aos judeus e os estigmas que recaem sobre pessoas judias ainda hoje. O antissemitismo consiste num aparato de ideias, concepções e valores que atribuem aos judeus características intrínsecas e inexoráveis, a fim de justificar práticas discriminatórias e, no limite, o extermínio. O Holocausto, ou Shoah, foi, sem dúvida, o mais infame evento histórico na história do antissemitismo e da perseguição aos judeus. Mas não foi o único. Mesmo após a Segunda Guerra Mundial é possível identificar eventos de escala muito menor, mas que demonstram a continuidade de uma concepção desumanizadora em relação às vidas judias.

Sem dúvida, críticas ao Estado de Israel podem ter origem ou reforçar uma visão antissemita, ou ainda flertar com o antissemitismo. E quando for o caso, elas devem ser denunciadas. No entanto, isso não se aplica a todas as situações e nem mesmo à maioria delas. Há elementos muito concretos e contundentes para subsidiar críticas duras em relação à formação do Estado de Israel, os meios pelos quais este Estado se expandiu e as estratégias autoritárias e violentas com que se afirmou e afirma ao longo das últimas 7 décadas, sem que isso signifique a filiação a um modelo antissemita de pensamento. E, sobretudo, sem que isso signifique a atribuição de qualquer ideia estigmatizante em relação às pessoas judias.

Para que a estratégia sionista do domo de ferro ideológico seja desconstruída, é necessário antes de tudo dissociar o antissemitismo do antissionismo. E para isso, é fundamental lembrar que o sionismo não é apenas um movimento político que defende a autodeterminação do povo judeu, como tentam emplacar alguns sionistas mais moderados, forjando para si uma falsa imagem de progressismo. O sionismo não defende “a” autodeterminação do povo judeu, mas “uma” forma de autodeterminação dos judeus que possui como consequência a expropriação e, no limite, o extermínio, por meio da limpeza étnica, de outros povos; ou, na melhor das hipóteses, busca justificar o deslocamento forçado dessas populações, negando o seu direito à terra de origem.

Colonialismo

É verdade que o aparato racista e colonialista não é um problema congênito do sionismo, o que explica uma certa perspectiva socialista que vigorou em uma fase da sua história e as diferentes linhas interpretativas, os debates acalorados e as diversas formas de recepção das suas teorias e projetos políticos em cada lugar que deitou raízes. No entanto, a história do sionismo é a história do que ele realizou até este momento, isto é, a história de uma prática e não apenas de uma ideia. Neste sentido, há uma vasta bibliografia que não apenas caracteriza o caráter racista e colonialista do sionismo e de seu desenvolvimento no interior da política israelense, como também documenta essa história.

Disponível em nossa língua, o trabalho do historiador Nur Marsalha é, certamente, uma excelente introdução ao assunto. Em Expulsão dos palestinos: o conceito de transferência no pensamento sionista (1882-1948), publicado originalmente em 1992, Marsalha detalha o período inicial do movimento sionista a partir da sua primeira grande realização: a Nakba, a catástrofe que se abateu para quase 800 mil palestinos e seus descendentes por meio da ação violenta das milícias sionistas envolvidas com a ocupação israelense e com o surgimento do Estado de Israel. Estudos como o de Marsalha evidenciam a particularização do sionismo em relação à experiência judaica e apontam que a história de Israel é, como toda a história humana, fruto de escolhas políticas e morais e não o resultado da natureza ou da providência divina.

Durante décadas, a principal forma de censurar a luta do povo palestino foi a interdição do uso da própria palavra “Palestina”. Percebendo que seria impossível negar a existência real de todo um povo, a estratégia sionista busca interditar a crítica ao Estado de Israel. Ao invocar o antissemitismo, o pensamento sionista cria não apenas um espantalho, mas afasta tentativas de elaboração mais complexas a respeito das políticas de estado israelenses, encerrando o debate antes mesmo que ele se instaure e, igualmente grave, criminalizando o simples esforço de reflexão crítica.

A estratégia funciona bem porque o paradigma sionista estabelece um vínculo natural entre o povo judeu e o Estado Nacional. Daí falar-se em uma etnocracia. Na versão sionista da História, a Terra de Israel, a Nação de Israel e a experiência judaica são uma e a mesma coisa. Isso é um falseamento da narrativa histórica, conforme já demonstrado por estudiosos israelenses, como Schlomo Sand e Ilan Pappé.

Para desarmar uma estratégia tanto cínica como irresponsável, devemos nos perguntar: é plausível, ou aceitável, que um Estado exproprie a terra de milhares de pessoas, de forma violenta, criando um processo de deslocamento forçado, e depois estabeleça campos de refugiados onde essas pessoas e seus descendentes viverão anos, isolados por muros, sofrendo bloqueios de água, alimentos e energia, sendo vítimas de humilhações diárias, prisões arbitrárias e assassinatos a sangue frio? É aceitável um Estado que descumpre tratados internacionais, ocupa áreas ilegais, comete crimes de guerra e ainda difunde uma versão vitimizada dessa história, utilizando seu aparato educacional e ideológico para retraumatizar crianças nacionais, ensinando-as a encarar pessoas que praticam outra religião e falam outra língua (mas que dividem o mesmo território) como animais ou sub-humanos?

Essas são ações de um Estado – o Estado de Israel – fundamentado em uma ideologia racista e colonialista. Elas não servem para caracterizar os judeus. Judeus são pessoas que praticam uma religião complexa, de grande beleza e fundamental para a nossa sociedade. Os judeus merecem viver em paz e com dignidade onde quer que estejam. Os judeus não são o Estado de Israel. O Estado de Israel é um Estado que opera, comprovadamente, na violência, no apartheid e no extermínio contra outros povos, arrogando para si o título de “democracia”. É essencial distinguir entre as ações de um Estado e a identidade de um grupo étnico ou religioso. Interditar uma crítica às políticas de um Estado nacional é um dos maiores absurdos que o sionismo já produziu. Todo e qualquer Estado Nacional pode ser criticado e denunciado, sobretudo quando parte dos seus fundamentos são a expropriação, a violência e o desejo de extermínio de populações inteiras.

O antissemitismo não pode seguir sendo utilizado como um domo de ferro ideológico do Estado de Israel. Isso desonra a experiência judaica, que é multifacetada e plural. E, principalmente, compromete a luta pela erradicação do próprio antissemitismo. É fundamental que criemos as condições para desarmar a estratégia sionista para que possamos fazer o debate de forma radical – enfrentando a raiz do problema. Sem isso, não será possível sequer imaginar a possibilidade de uma paz verdadeira no território palestino.

Justiça à história

Em outro livro fundamental sobre o assunto – Caminhos divergentes: judaicidade e crítica ao sionismo (2012) -, a filósofa Judith Butler relembra o caso de Primo Levi que, em Os afogados e os sobreviventes (1986), além de refutar os antissemitas, buscou também um caminho crítico em relação àqueles que utilizam o Holocausto para legitimar o poder brutal de um Estado. Ela escreve:

“Quando lhe perguntaram se ele odiava os alemães, Levi disse que não deveríamos categorizar um povo inteiro tendo como base seu caráter nacional. Quando lhe perguntaram sobre sua suposta insensibilidade para com o derramamento de sangue judeu, respondeu que o sangue judeu não deveria ser privilegiado em relação a nenhum outro, e, em seguida, deu suas palavras finais sobre o assunto: não podemos permitir que os sofrimentos do Holocausto justifiquem tudo”.

Mas além de desarmar a perversa estratégia sionista, é preciso coragem para se posicionar em defesa da vida, da verdade e da justiça, mesmo que isso signifique enfrentar todo um Estado. Essa coragem tem custos, como a história de Anaïs Duplan deixa evidente. Mas, para encerrar com as palavras de Butler, “fazer uma separação entre aquele sofrimento histórico [o Holocausto] e as explorações políticas contemporâneas de qualquer espécie é uma parte do que deve ser feito se quisermos seguir o exemplo de Levi para fazer justiça à história e lutar pela justiça no presente”.

 

Rafael Domingos Oliveira é historiador e educador, especialista em diáspora africana nas Américas e relações raciais no Brasil. É autor de Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e liberdade (2022) e atua na área de preservação do patrimônio histórico e cultural.

Foto destaque: Alisdare Hickson – Judeus ortodoxos protestando contra a ocupação de Israel e o tratamento brutal que dispensa aos palestinos. Whitehall, Londres, 5 de junho de 2018.

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