Batalha cultural em um campo minado e coberto de lama

Por Maristella Svampa
Publicado em Revista Ñ 

Dizem que a categoria de “guerras culturais” se tornou um carro-chefe das extremas direitas, embora sua introdução no campo político tenha ocorrido pela esquerda e seu uso na América Latina tenha se dado principalmente por meio dos populismos progressistas, entre 2000 e 2015.

A noção de guerras culturais é atribuída a Antonio Gramsci, o grande teórico marxista italiano, embora muitas vezes seja assimilada à categoria de hegemonia. Gramsci entendia a hegemonia como a construção de um bloco histórico em termos de valores, ideias, crenças, enfim, como a direção político-ideológica necessária para a conquista e construção do (novo) Estado.

Feito esse breve esclarecimento, gostaria de me referir aos diferentes usos que a extrema direita “libertária” e o progressismo kirchnerista fazem das “guerras culturais” na Argentina, pois as divergências em termos de valores e princípios são hoje fundamentais.

Para a extrema direita que avança agressivamente em escala global, e em particular os libertários argentinos, a esquerda perdeu a “guerra” no campo da economia, mas ganhou a “guerra cultural”. A esquerda é atribuída ao domínio da cultura e, com isso, à reprodução de uma determinada visão de mundo, o que se traduziria em um “doutrinamento” nos campos educacionais e culturais.

Assim, apesar de a esquerda ter perdido a guerra para a globalização neoliberal e do livre mercado a partir dos anos 1990, paradoxalmente seu triunfo no campo cultural teria sido afirmado através de uma política de reconhecimento de direitos políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais, étnicos e sexuais (o que nos países do Norte a direita chama de “wokismo”).

Para a extrema direita, os defensores desse status quo cultural são os intelectuais, os artistas, os acadêmicos, os trabalhadores da cultura, sem esquecer a figura estratégica do funcionário público. Esse grupo seria o grande responsável pela consolidação de uma espécie de ditadura do “politicamente correto”, cuja inscrição em termos de direitos deve ser apagada da esfera do Estado, como primeiro passo, enquanto se avança com outras formas de disciplinamento sobre a sociedade.

Por outro lado, no campo do kirchnerismo, as guerras culturais tiveram duas expressões diferentes. Primeiro, a partir de 2007, com a Resolução 125 [que aumentava a tributação sobre a exportação de soja e gerou grande reação do agro argentino], foi entendida como um esquema polarizador, consolidando uma leitura maniqueísta da política: nós vs. eles. Mas, visto no espelho dos populismos latino-americanos, o kirchnerismo refletia a ambivalência ou tensão fundamental entre elementos autoritários e elementos democráticos.

O segundo elemento das guerras culturais do kirchnerismo é mais amplo em termos de valores, e coloca o kirchnerismo na vereda oposta às propostas libertárias. Refiro-me às políticas públicas no campo dos direitos humanos, culturais, das diversidades, impulsionadas por uma ampla gama de movimentos sociais democráticos. Esse aspecto das lutas culturais e políticas incluiu a lei de casamento igualitário (2010), diversidade de gênero (2012), legalização do aborto (2020), a criação da Secretaria de Agricultura Familiar, o fortalecimento da Universidade Pública e do Conicet [Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas], entre outras estruturas de Estado que, agora, o governo “libertário” de Milei está empenhado em eliminar ou sufocar.

Nesse ponto, quatro esclarecimentos são necessários: (i) Esse conjunto de direitos sustentados pelo kirchnerismo refere-se a valores compartilhados por amplos setores democráticos e progressistas, e que apontam para o que se entende por uma sociedade mais justa e igualitária; (ii) O kirchnerismo impôs uma agenda de direitos, mas de maneira seletiva. Não incluiu direitos ambientais e quase nenhum direito indígena. (iii) O kirchnerismo exagerou, especialmente em seus últimos anos, e partidarizou em excesso essa agenda de direitos, em um contexto de forte empobrecimento e precarização da sociedade; (iv) Mais uma vez, trata-se de um progressismo que, apesar de todos os seus erros, compartilhou de modo conflituoso um campo democrático que claramente o excede.

Alguns insistirão que ainda há muitas semelhanças com a atualidade, mas não devemos abusar das analogias. Honestamente, considero um grave erro político e intelectual assimilar kirchnerismo e Milei, pois suas visões de mundo são muito diferentes. Enquanto o kirchnerismo fez um uso conflituoso e muitas vezes abusivo da guerra cultural e dos valores democráticos, esvaziando-os até mesmo de sua potencialidade, a extrema direita utiliza a batalha cultural como ferramenta anti-igualitária e antidemocrática.

Diante de uma extrema direita que avança com crueldade implacável, absorvendo o campo da direita e centro-direita, destruindo os farrapos de justiça social que nos restam, o importante é identificar com clareza e urgência quem são nossos aliados do lado dos direitos, da justiça e da igualdade. E começar a tecer novas alternativas políticas consequentes com a dinâmica desse campo democrático.

 

*Maristela Svampa é socióloga, escritora e pesquisadora argentina. É formada em filosofia pela Universidade Nacional de Córdoba e doutora em sociologia pela École Pratique des Hautes Études, na França. É pesquisadora principal do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas [Conicet] e professora titular da Universidade Nacional de La Plata no campo da teoria social latino-americana. É autora de As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências (2019) e Debates latino-americanos: indianismo, desenvolvimento, dependência e populismo (2023).

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