Traduzido por Isadora Szklo no blog do Grifa Podcast
Entrevista original de Abigail Bereola no site Shondaland
Para muitas mulheres, a escritora e intelectual bell hooks não precisa ser introduzida. A aclamada autora feminista escreveu mais de 30 livros e transformou em sua tarefa de vida derrubar sistemas de opressão e dominação. Seu livro O feminismo é para todo mundo, escrito em 2000, é uma leitura obrigatória, uma espécie de cartilha sobre equidade das mulheres. Já sua obra de 1993, Sisters of the Yam, mergulha em uma reflexão sobre a saúde emocional da mulher negra. Em Ensinando a transgredir, escrito em 1994, hooks estudou educação como um caminho para a liberdade. Este ícone intelectual até mesmo escreveu alguns livros infantis.
No início dos anos 2000, hooks publicou uma série de livros sobre amor e relacionamentos — All About Love: New Visions, Communion: The Female Search for Love, The Will to Change: Men, Masculinity, and Love e Salvation: Black People and Love — clamando ser o amor seu tópico favorito de escrever sobre. Esses livros exploram o conceito de amor, em conjunto com ideias sobre masculinidade e feminilidade. Hoje, quase 20 anos depois do primeiro livro escrito sob a temática “amor”, a obra de bell hooks permanece popular e relevante — servindo como fonte inestimável para refletir sobre o que significa se importar com o outro e até mesmo para aceitar um término.
Em uma quarta-feira a tarde, conversei com hooks ao telefone sobre o profundo trabalho do amor próprio e como a falta dele é parte importante da cultura patriarcal de abuso e violência.
“A tarefa do amor é primeiro e principalmente sobre conhecimento. Não é fácil conhecer alguém.”
Abigail Bereola: Em seus livros, você escreve especificamente sobre “o desejo de amar e ser amado como digno de estudos sérios e atenção”. Amor é algo buscado, o romance permeia todas as coisas, e as pessoas estão sempre falando sobre seus parceiros e relacionamentos, mas mesmo assim, discussões reais sobre o amor e como alcançá-lo são frequentemente consideradas levianas. O que você acha sobre isso?
bell hooks: Eu acho que quando a tarefa do amor é autêntica, ela é muito difícil. A tarefa requer integridade, congruência entre o que pensamos, dizemos e fazemos. Eu acho que romance tem um sentido totalmente diferente, como “é simples, vem e vai”, então acho que as pessoas preferem aceitar uma falsificação do amor, ao invés de realmente realizar a tarefa de amar. Porque essa tarefa é primeiro e principalmente sobre conhecimento e conhecer alguém. Não é fácil conhecer alguém. Você não a conhece em um minuto. Sempre me choca ver pessoas que se conhecem e, um mês depois, se casam ou vão morar juntas. Sempre penso, será que realmente se conhecem?
AB: Quanto tempo você acha que demora para cultivar o amor?
bh: Eu acho que depende muito mais do quanto você está disposto a se ocupar de atos de conhecer e cuidar. Não é sobre o tempo, mas sobre o que você está disposto a fazer. Eu acho que, porque as pessoas são tão ocupadas e envolvidas em outras coisas, é muito difícil de parar e pensar “Ok, acabei de conhecer essa pessoa por quem eu sou muito atraída, mas pode me levar um ano para realmente entender quem ela é.”
AB: Em Communion, você discute a competição feminina devido a noções de escassez — de homens, de trabalho, de atenção, de amor — e como isso é uma barreira para cultivar a solidariedade entre mulheres. O que você acha que é preciso para se afastar desse modelo? Como começamos a ver que o que é nosso, é nosso, e aceitar isso com honra?
“Amor próprio começa com aquele balanço corajoso em que você vai até os sótãos e armários de si mesmo e vê o que está lá”
bh: Eu acho que a resposta pra essa pergunta é todo o projeto de se amar. Seu primeiro amor é o amor próprio, e amor próprio começa com aquele balanço corajoso em que você vai até os sótãos e armários de si mesmo e vê o que está lá. O que você gosta sobre si? Como você interage com outras pessoas?
A maioria de nós vive essa jornada de forma tão árdua porque vivemos em uma cultura de baixa auto-estima. Mulheres, especificamente, com frequência são arrebatadas pela armadilha da baixa auto-estima. E então, nesse sentido, é muito difícil de confiar que a vida está certa, que você é capaz de encontrar o amor, ou de que sua vida pode ser significativa sem amor, quando estamos falando de relações afetivas.
Eu não tenho um parceiro. Tenho sido uma celibatária há 17 anos. E eu adoraria ter um parceiro, mas eu não acho que minha vida seja menos significativa dessa forma. Eu sempre digo às pessoas que minha vida é uma torta, e que há um pedaço dela faltando, mas há muitos pedaços inteiros. Será que eu realmente quero usar meu tempo procurando apenas esse pedaço faltoso, e me julgando por isso? Isso é importante quando debatemos competição feminina, também, o fato de que estamos sempre julgando. Anos atrás, costumávamos realizar uma prática nos círculos feministas que era assim: “Você consegue passar um dia inteiro como uma mulher sem fazer julgamentos críticos sobre si mesma?”. Mesmo sem pensar, vem um turbilhão de julgamentos negativos e isso é muito contrário ao amor. E assim, evidentemente também pensamos que todas as outras mulheres estão fazendo o mesmo.
Quando eu estava relendo The Will to Change: Men, Masculinity and Love, me preparando para essa entrevista — eu não havia lido em alguns anos — eu pensei “bell hooks, esse livro é muito bom, e eu acho que você deveria fechá-lo e reservar um tempo para ser grata por sua mente realmente inteligente e pelo presente de pensar esses pensamentos”. Eu não acho que eu teria sido capaz de fazer isso 20 anos atrás, porque eu teria sido invadida por uma noção como “Ah, você se acha!”, ao invés de “Eu tenho a capacidade de analisar honestamente o meu valor.” Mulheres amarão mais a si e aos outros se puderem se dar ao direito dessa análise honesta.
AB: Em All About Love, você escreve sobre como é comum tentar achar alguém que possa amar os defeitos que você mesma não ama. Mas em The Will to Change, você também discute como, tendo em mente a relação entre masculinidade e amor, homens frequentemente se lançam à fuga da intimidade por meio de táticas abusivas. Então, eu penso, como as parceiras íntimas de homens são muitas vezes confidentes de sua vulnerabilidade, mas também de sua raiva, como você diz, você sente que é mais aceitável para os homens ter e mostrar seus defeitos em um relacionamento íntimo do que para as mulheres?
bh: Eu acho que especificamente é ok para um homem demonstrar seus defeitos para a mulher com quem está envolvido. Eu não penso que homens em particular são abertos para mostrar seus defeitos em relacionamentos sem intimidade, porque eles querem estar seguros. Enquanto isso, mulheres são criadas para sentir que não estamos seguras e que, na verdade, estaremos mais seguras se aceitarmos nossos defeitos, se assumirmos a vulnerabilidade. “Não sou boa nisso”, “Eu erro”, e assim por diante. Pensamos que isso vai facilitar nosso caminho no mundo. Eu não acho que homens acham que isso facilita seus caminhos no mundo.
AB: É fácil pensar que química é uma das bases do amor, mas em All About Love, você nos alerta sobre essa linha de pensamento. Você diz que amor é uma ação, e uma escolha. Mas e quando escolhemos amar alguém que não nos ama? Isso também caracteriza uma forma de amor perfeito, ou esse deve ser mútuo?
bh: Eu posso amar alguém que não me ama, mas não posso ter um relacionamento de amor com alguém que não me ama. É muito difícil seguir amando alguém que não vai te amar. Eu me lembro quando eu estava em um relacionamento com um homem mais novo e ele havia decidido que não queria me amar, e eu continuei aguardando que ele me amasse. Eu dizia para minha terapeuta “Bom, eu vou até a casa dele”, e ela disse “Bem, acho que tudo bem você ir até a casa dele por amizade, mas se você vai atrás de amor, você não vai encontrar, porque isso não é algo que ele vai poder te dar e ele não quer trabalhar em te dar.” Essas foram verdades muito duras de ouvir, mas eram reais. Eu ainda sou amiga dele hoje em dia, apesar de termos terminado anos atrás, porque eu parei de esperar que ele me desse algo que ele não queria dar, ou que talvez fosse totalmente incapaz de dar.
AB: Em All About Love, você discute o amor perfeito na ideia de algo um estado de aperfeiçoamento, ao invés de algo que está lá inerentemente. Como você acha que acontece esse processo de aperfeiçoamento através do tempo?
bh: Eu acredito que seja muito sobre aceitação de si e do outro. Sempre me impressiona o quanto nós não aceitamos. Eu estava falando em um grupo sobre pessoas que estão casadas há muito tempo, como 30 anos. Muitas delas — especialmente nos relacionamentos heteronormativos — existe esse rastro de insatisfação ou irritação com o outro. Isso existia entre meus pais, que foram casados por mais de 30 anos, mas é como se nunca houvesse aquele momento de aceitação daquela pessoa como ela é. Porque essa aceitação da pessoa como ela é pode significar que você vai precisar aceitar que ela não vai ser quem você quer que ela seja, e isso é muito difícil para nós. Nós queremos fazer das pessoas quem nós queremos que elas sejam.
Quando eu vejo mulheres jovens buscando amor em uma relação heteronormativa, a primeira questão que vem em mente a elas não é algo como “Ele é gentil?”, mas sim “Primeiramente, ele é bonito?”. Em seguida “O que ele faz da vida?”. Eu mesma sou assim também, com todo meu feminismo. Muitas pessoas não concordam comigo, mas eu realmente acredito que homens são tão infelizes em relacionamentos quanto mulheres nessa sociedade patriarcal. Porque estudos mostram que muitos homens, de diferentes raças, classes sociais e status socioeconômicos, escolhem uma parceira baseada em sua aparência. A gente ouve homens falando coisas como “Nossa, quando eu a vi eu sabia que essa era a mulher da minha vida.” Mas na realidade eles só estão falando sobre uma profunda atração que tiveram com a aparência física da pessoa. Não é sobre as suas qualidades pessoais. Frequentemente em espaços heteronormativos, se o homem não está exibindo sua masculinidade patriarcal, as pessoas logo pensam “bell, ele é gay.” Essa é provavelmente uma das mais intensas barreiras que homens heterossexuais encontram quando desafiam o patriarcado, o medo de ser visto como gay, a homofobia que está por trás disso. Vejo que o homem realizado e que realmente construiu seu amor próprio não tem medo de ser considerado gay, porque sabe quem ele é. Se acharem que ele é gay, tudo bem, se não acharem, tudo bem também. Mas eu não acho que a maioria dos homens se permite a liberdade de ser realizado.
AB: O que você acha que é necessário para um homem ser plenamente realizado?
bh: Muito disso começa na infância. Eu acho que até que nós realmente olhemos para como o patriarcado e a dominação influenciam como nós criamos meninos, não veremos muitas mudanças. Não dá pra começar só quando o homem tiver 20 ou 30 anos.
Quando eu penso em um homem adulto se masturbando na frente de alguém, eu penso que ele foi um daqueles meninos que receberam mensagens estranhas, lá pelos seus 10 anos, e eles estão representando tais mensagens. É curioso, as pessoas refletem psicologicamente sobre um homem que entra em uma igreja e mata 20 pessoas, mas não refletem psicologicamente sobre um homem que é culpado de mau comportamento sexual, como, “o que aconteceu com ele? O que criou essa necessidade, esse desejo?” Em ambos, pensamos que não se trata de um comportamento tido como normalizado, porque se fosse, mais pessoas estariam fazendo o mesmo. Mas nós não queremos olhar para o coração masculino — de meninos e homens — porque nós teríamos que olhar para o que fez a dominação patriarcal.
AB: Você escreveu esses três livros no início dos anos 2000. O que você acha que mudou na cultura Norte Americana a respeito do amor e o que você acha que continua igual? Você mudou algumas opiniões desde então sobre o assunto?
bh: O que eu percebo é que se você faz a escolha de amar a si mesmo e aos outros, é muito mais difícil — em termos de achar um parceiro ou até mesmo um círculo de pessoas para frequentar. Eu fiquei impressionada ao reler The Will to Change e perceber o quanto daquilo que escrevi ainda é real hoje. Eu sinto como se não tivesse havido muita mudança por parte do coletivo de homens na nossa sociedade. Nem preciso dizer que isso é muito perturbador.
Eu diria que, em termos de políticas e práticas feministas, o mundo mudou mais para mulheres com relação ao seu trabalho, mas que, na verdade, em relação às famílias — quaisquer famílias — não houveram grandes mudanças. Eu vejo mulheres hoje em dia trabalhando em empregos de tempo integral mas continuando fazendo grande parte das tarefas domésticas, ainda cuidando em grande parte dos filhos. Eu conheço muitas mulheres que vivem sozinhas, em especial mulheres acima de 40 anos, que viveram relacionamentos com homens que foram incrivelmente cruéis e abusivos, e não pretendem viver isso novamente. Eu não as vejo vivendo sozinhas como uma afirmação de poder e realização. É quase como uma forma de autoproteção. Eu não acho que nós falamos sobre isso.
A maioria dos homens são patriarcais, o que significa que eles sequer tem seu amor próprio como aspecto central de suas vidas. Então, não vamos ganhar o amor próprio que eles não tem para dar. Pessoalmente, acredito que eles deveriam estar em espaços terapêuticos que os ensine o amor. Eu sempre gostei daquele momento no filme Thelma e Louise em que uma delas diz que quando uma mulher está chorando, ela não está se divertindo. Eu penso que esse seja um nível muito básico de consciência emocional, e muitos homens sequer o tem.
AB: Eu vi uma coisa interessante no Twitter outro dia. Era algo que alguém tinha dito, algo como a ideia de que todos os homens charmosos que a pessoa conhecia eram na verdade abusadores.
bh: Mas veja, eu diria que a maioria dos homens que a maioria dos homens que conhecemos tem um abusador dentro de si porque o patriarcado os treinou, desde a infância. Portanto, o cara mais legal pode se ver em uma situação em que o abusador pode ganhar vida de dentro dele. Meu jovem ex namorado, por exemplo, foi durante muito tempo um cara tranquilo, mas durante o processo de término, ele se tornou furioso e agressivo. Eu acho que nós não queremos assumir o que o patriarcado faz com a vida pessoal dos meninos e dos homens.
AB: Você acha possível alcançar uma sociedade amorosa, em particular nesse tempo? Como você acha que seria essa sociedade?
bh: Eu acho que sociedades começam com nossas pequenas unidades comunitárias, que são as famílias — biológicas ou as que escolhemos. Frequentemente fico maravilhada quando conheço pessoas que foram criadas em famílias amorosas, porque elas são muito diferentes, vivem o mundo de forma diferente. Eu não concordo que toda família é disfuncional — eu penso que nós não queremos admitir que quando as pessoas são amorosas, o mundo é diferente. O mundo é incrível, é um mundo de paz. Não digo que essas pessoas não sentem dor, mas elas sabem como lidar com a dor em uma forma que não seja negando a si mesmas. Por isso, penso que desde que nós comecemos a olhar novamente para a família, desafiando e transformando o patriarcado dentro das estruturas familiares, independente de quem seja, existe esperança para o amor.