Classe, racismo e terrorismo policial

Para Keeanga-Yamahtta Taylor, a rebelião social que cresce dia a dia nos Estados Unidos está lançando o país em um ‘território desconhecido’ ao misturar mortes de pessoas negras pela polícia com desencanto geral da juventude — inclusive branca

Por Keeanga-Yamahtta Taylor
Publicado em Democracy Now

 

Parte do que estamos vendo é resultado de anos e anos de raiva reprimida. Muitas pessoas fizeram referência aos anos 1960, fizeram referência aos acontecimentos que tiveram lugar em Ferguson, em 2014, mas acho importante dizer que o que está ocorrendo agora não é apenas uma repetição de eventos passados: é consequência do fracasso do governo Donald Trump e do establishment político e econômico deste país para resolver crises [como a que vitimou George Floyd] e que, portanto, se acumulam com o tempo. Agora, estamos assistindo à fervura disso.

Imagine o quão desesperadas e cheias de raiva as pessoas estão, para sair e protestar nas condições de uma pandemia histórica que já matou mais de 103 mil estadunidenses, que teve um impacto desproporcionalmente horrendo sobre as comunidades negras, vitimando 24 mil afro-estadunidenses. Um em cada dois mil negros morreu de covid-19 nos Estados Unidos até agora. Imagine como as coisas devem estar difíceis, para que as pessoas saiam às ruas nessas condições.

Então, o acúmulo e a continuidade da brutalidade, do abuso e da violência policial, e dos assassinatos cometidos pela polícia, obrigaram as pessoas a suportar essas condições, porque é óbvio que não há nada que nosso governo possa fazer sobre isso — ou melhor, o governo é cúmplice e escolhe não fazer nada sobre isso.

Enfim, os vídeos de espancamentos, abusos, assassinatos policiais nunca deixaram de ser veiculados. Portanto, as condições que levaram ao movimento #BlackLivesMatter [#VidasNegrasImportam], após os acontecimentos de Fergunson, nunca deixaram de existir. O que reacendeu esse pavio, agora, foi obviamente o linchamento público de George Floyd em Minneapolis, mas também o contexto mais amplo no qual isso está ocorreu, foi registrado em vídeo e se espalhou: desemprego em massa e mortes causadas pela pandemia, sobretudo. Por isso, acredito que os protestos também — mas não apenas — contra a brutalidade policial.

Além disso, vemos muitos — centenas, senão milhares — de jovens brancos participando dessas revoltas, fazendo com que essas rebeliões sejam realmente multirraciais. Isso é importante. Algumas pessoas descreveram a participação de brancos como agitadores externos. Há relatos de supremacistas brancos se infiltrando em algumas das manifestações. Devemos prestar atenção nisso, acompanhar e tentar entender. Mas acho que não podemos descartar de plano a participação dos jovens brancos, porque temos que ver que a vida dos brancos também foi destruída pelas políticas adotadas na última década.

Portanto, sabemos que a expectativa de vida de homens e mulheres brancos comuns se inverteu — algo que normalmente não acontece no mundo desenvolvido. E é impulsionado pelo vício em opioides, alcoolismo e suicídio. Assim, a sensação, para muitas pessoas desta geração, é que a vida perdeu o sentido: você se formou na faculdade, sua vida foi atravessada pela guerra [Afeganistão, Iraque] na virada do século XXI, depois pela recessão [2008] e, agora, por uma pandemia mortal.

Estamos assistindo a uma rebelião de classe, com o racismo e o terrorismo racial no centro. Por isso, me parece que estamos em território desconhecido nos Estados Unidos.

 

Keeanga-Yamahtta Taylor é professora de estudos afro-estadunidenses na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e autora de From #BlackLivesMatter to Black Liberation, que em breve será publicado no Brasil pela Elefante.

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