Coragem e ousadia em defesa da Amazônia

Em maio — mais precisamente, no dia 24 — se completam treze anos do assassinato de Maria do Espírito Santo da Silvia e José Cláudio Ribeiro da Silva. O casal de ambientalistas foi executado em uma emboscada nos arredores de Nova Ipixuna, no Pará, onde atuavam em um projeto agroextrativista e denunciavam sistematicamente as ilegalidades cometidas pelo avanço do progresso: derrubada de árvores nobres para a indústria madeireira, produção de carvão para as siderúrgicas locais, substituição da vegetação nativa por pasto etc.

Os mandantes do crime continuam soltos — e, em boa medida, desconhecidos. Apenas um foi condenado pela justiça, mas fugiu e está com o paradeiro desconhecido até hoje. Em Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia, Felipe Milanez aborda em profundidade a história de Zé Cláudio e Maria. O crime é tratado em detalhes, mas o que salta aos olhos é o exemplo de vida e luta em defesa da Amazônia que o casal encarnou até o último dia. Nesta entrevista, o autor explica como conheceu e se envolveu com o casal, e por que a preservação ambiental deve ser pautada pelos povos da floresta — e não por decisões de gabinete ou corporações.

 

Como você conheceu Maria e José Cláudio? Como e por que se envolveu com a luta deles?

 

Fui apresentado a Maria e José Cláudio pelo advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Marabá, José Batista Afonso. Era o ano de 2010, eu trabalhava como jornalista independente, depois de alguns anos como editor da National Geographic Brasil, e investigava a produção ilegal de carvão usada nas siderúrgicas de ferro-gusa, as guseiras, na região de Carajás, no Pará. Esse era um dos principais fatores de desmatamento, trabalho escravo e outras dimensões de violências associadas também à extração ilegal de madeira e grilagem de terras. Batista, um dos grandes defensores de direitos humanos na Amazônia, falou do assentamento agroextrativista onde moravam Maria e José Cláudio, da luta ambiental contra madeireiras e carvoeiros, e das ameaças de morte que recebiam. Assim, fui passar um dia com ele e ela, conhecer sua casa, sua vida, fazer uma série de entrevistas. Nos tornamos amigos. Fiquei encantado com a simpatia e o carisma, com suas falas lindas, com a luta, com a beleza das ideias, a simplicidade com que explicavam temas complexos e amplos, e a coragem e a força das suas consciências. Batista tinha me pedido para tentar ajudar a chamar a atenção na mídia para conseguir uma proteção do governo ao casal. Incialmente publiquei uma entrevista com José Cláudio (aqui), e intermediei o convite para que participassem do TEDx Amazônia. Posteriormente publiquei outro artigo falando das denuncias, mas sem grande impacto. Era angustiante acompanhar o sofrimento crescente das ameaças nas nossas conversas pelo telefone, e eu sem poder ajudar.

 

Como você soube do assassinato do casal?

 

A notícia do assassinato chegou até mim através de Batista, e foi devastadora. Se antes havia um desinteresse da imprensa, com a repercussão internacional do crime a situação mudou. As cenas que eu havia gravado no dia que estivemos juntos transformaram-se no documentário Toxic Amazon, feito em parceria com o canal Vice.com, e que contribuíram para a ONU reconhecer Maria e José Cláudio como Heróis da Floresta. Junto de Batista — e com Claudelice Santos, irmã de José Cláudio, e Laisa Santos Sampaio, irmã de Maria — passei a me dedicar à luta por justiça e trabalhar para que as famílias fossem ouvidas. Com muito respeito e admiração pela coragem das irmãs que seguiam firme na defesa das ideias de Maria e José Cláudio mesmo diante das ameaças que passaram a sofrer, me juntei como um aliado dessa luta coletiva por justiça, e segui atuando na imprensa e publicando denuncias e artigos para forçar o Estado a agir. Os assassinos e o mandante foram presos ainda em 2011, e os pistoleiros condenados em primeira instância. No entanto, o mandante, o fazendeiro José Rodrigues Moreira, foi absolvido num julgamento contestado, anulado posteriormente. José Rodrigues Moreira aproveitou para fugir. No segundo julgamento, em 2016, ele foi condenado a 60 anos de prisão, e até hoje está solto. Outros comparsas do consórcio da morte não foram investigados.

 

Como você tem lidado com essa impunidade?

 

Marcado pelo luto e tristeza, procurei outras formas de lutar. Meu interesse na ecologia política veio na sequência dessa espiral, ao buscar entender melhor as condições que produziram a violência e que levaram aos assassinatos. Com o tempo, passei e refletir mais sobre o quanto eu havia aprendido com Maria e José Cláudio, seus ensinamentos, suas complexas visões de mundo, suas experiências de vida. Passei a ver a vida com um outro olhar e entendi que isso também constitui a luta dele e dela — suas lutas eram pela vida. Hoje, é fundamental que o mandante, José Rodrigues Moreira, condenado a 60 anos de prisão, seja encontrado e preso. Se a Polícia Federal prendeu os assassinos e mandantes de Marielle Franco, se prenderam os fugitivos da penitenciária de Mossoró (aliás, em Marabá, na mesma região em Maria e José Cláudio foram assassinados) porque é que até hoje não prenderam o mandante? Espero que esse livro, que é parte de um projeto coletivo maior, ajude a chamar a atenção para essa terrível injustiça.

 

Muitos ambientalistas já foram assassinados ou correm risco de morte no Brasil. Por que você resolveu escrever sobre Maria e José Cláudio, e não sobre outros ativistas?

 

Porque eu conheci José Cláudio e Maria, e eles me ensinaram muito sobre ecologia, sobre a floresta, sobre a vida, sobre a luta, sobre o amor, sobre a pedagogia, e sinto que é importante compartilhar com mais pessoas o tanto que eu aprendi com ele e com ela, o tanto que eram especiais. Acredito que suas memórias e histórias de rebeldia podem inspirar novas gerações, e ajudar para que as vozes dos defensores ambientais sejam ouvidas, que sejam os protagonistas da defesa da Amazônia e dos territórios. Essa é uma pequena contribuição. No meu trabalho, venho documentando histórias de insurgências nas lutas ambientais. Assim organizei um livro de depoimentos de sertanistas e lideranças indígenas — Memórias sertanistas: cem Anos de Indigenismo no Brasil (Edições Sesc, 2015) –, sobre a história da resistência indígena contra as guerras de conquista — Guerras da Conquista (Harper Collins, 2021) –, entre outros artigos e projetos que desenvolvo hoje na Universidade Federal da Bahia. Acredito que documentar as insurgências é um caminho da descolonização do conhecimento, para narrar uma outra história que siga a luta anticolonial. Mas, sobretudo, Lutar com a floresta é um livro de agradecimento. Um agradecimento ao privilégio de ter conhecido Maria e José Cláudio, de poder conhecer e conviver com José Batista, Claudelice Santos e Laisa Sampaio, pessoas que se tornaram para mim grandes referências e pelas quais eu tenho uma imensa admiração. Para ele e elas eu dedico esse livro.

 

Qual a característica da vida e do ativismo de Maria e José Cláudio mais chamou a sua atenção?

 

Maria me disse que o mais importante na luta era a ousadia, e José Cláudio enfatizava a coragem de agir diante da injustiça. Ela e ele tinham plena consciência de suas limitações, mas mesmo assim nunca deixaram de lutar para tentar mudar o mundo. Suas vidas eram vividas em consonância com suas ideias e seus valores. Seus sonhos eram sonhos coletivos: tanto de ver a classe trabalhadora com autonomia e liberdade, livres da opressão do patrão e do latifúndio, quanto a floresta preservada e saudável. Maria e José Cláudio colocavam em prática o que Paulo Freire parecia tentar dizer pela dialética entre objetividade e subjetividade: os sujeitos que são conscientes do mundo, sujeitos cognoscentes, críticos e criativos que compreendem seus limites e não deixam de agir para mudar o mundo. Mas há muito mais. Suas ideias vieram das lutas dos movimentos sociais do sul e sudeste do Pará, da experiência única do convívio com a floresta. A minha interpretação é bastante limitada pela minha experiência, mas permeada de admiração. Por isso, publico em Lutar com a floresta a integra das entrevistas que realizei com ela e com ele, para que cada um possa interpretar à sua maneira um pouco das ideias e do pensamento de Maria e José Cláudio.

 

Até quando teremos que produzir narrativas sobre o martírio em defesa da Amazônia? O que precisa mudar para que esse martírio dê lugar à preservação?

 

O martírio, como abordo, é o testemunho: o testemunho da destruição do planeta. São as testemunhas da violência contra as pessoas e contra o planeta, testemunham e documentam uma era de violências que precisa ter fim. Temos que contar uma outra história do Brasil, uma outra história do Antropoceno, das resistências e das insurgências, a “história que a história não conta”, como cantou a Mangueira na Sapucaí em 2019 (inclusive tendo o livro Memórias sertanistas como uma de suas referências). Temos que seguir revendo nossa história em comum da conquista e da colonização para ouvir as vozes silenciadas e assim aprender que os defensores ambientais hoje devem ser ouvidos vivos, devem ocupar espaços nos lugares de tomadas de decisão em defesa da vida em comum. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, em Belém, a COP 30, povos indígenas, comunidades tradicionais e defensores ambientais, organizados em movimentos, deveriam ser os grandes protagonistas, e não as corporações e os Estados. Claudelice Santos lidera hoje o Instituto Zé Cláudio e Maria, em Marabá, com uma equipe muito engajada e comprometida. No dia 6 de maio de 2024 ela recebeu um dos mais importantes prêmios de direitos humanos do mundo, o Prêmio Tulipa de Direitos Humanos, do governo da Holanda. Fazem um trabalho extraordinário junto a defensoras ambientais, e conseguem, com muita tenacidade, proteger a floresta e seguir com as ideias de José Cláudio e Maria, hoje uma pequena e esplêndida reserva florestal. O mesmo acontece com as lideranças indígenas: os povos indígenas resguardam 80% da biodiversidade do planeta, protegem a Amazonia do desmatamento, guardam os rios e as montanhas, mas são excluídos sistematicamente das negociações do clima. Essa gente, os povos dos territórios que lutam em defesa da Terra, é a grande maioria que precisa liderar as mudanças urgentes que temos que enfrentar. Não as falsas transições energéticas e os negócios espúrios que as corporações e o mercado querem fazer para ganhar dinheiro diante da emergência climática. Mas uma transformação ecossocial profunda de conviver com a natureza, como Maria e José Cláudio propunham.

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