Feminismo: uma política transformadora

Por bell hooks
Trecho de Erguer a voz

 

Vivemos em um mundo em crise governado por políticas de dominação, um mundo onde a crença em uma noção de superior e inferior e sua concomitante ideologia — de que o superior deveria governar o inferior — afetam a vida de todas as pessoas em todos os lugares, sejam pobres ou privilegiadas, letradas ou iletradas. A desumanização sistêmica, a fome, a devastação ecológica, a contaminação industrial e a possibilidade de destruição nuclear são realidades que nos lembram diariamente de que estamos em crise. Pensadoras feministas contemporâneas frequentemente citam as políticas sexuais como a origem dessa crise. Elas insistem na diferença como o fator que dá oportunidade para a separação e a dominação, e sugerem que a diferenciação do status entre mulheres e homens é uma indicação de que a dominação patriarcal do planeta é a raiz do problema. Tal hipótese tem fomentado a noção de que a eliminação da opressão machista conduziria necessariamente à erradicação de todas as formas de dominação. É um argumento que tem levado influentes mulheres brancas ocidentais a acreditar que o movimento feminista deveria ser a agenda política central de mulheres em todo o mundo. Ideologicamente, pensar nessa direção permite às mulheres ocidentais, especialmente às mulheres brancas privilegiadas, mulheres brancas privilegiadas, sugerir que a exploração racista e de classe é apenas fruto do sistema maior: o patriarcado. Dentro do movimento feminista no Ocidente, isso tem levado à hipótese de que enfrentar a dominação patriarcal é uma ação feminista mais legítima do que enfrentar o racismo ou outras formas de dominação. Tal pensamento prevalece, apesar das duras críticas feitas por mulheres negras e outras mulheres não brancas que questionam essa premissa. Especular sobre uma divisão antagônica entre homens e mulheres existente nas primeiras comunidades humanas é impor ao passado, aos grupos não brancos, uma visão de mundo que se encaixa perfeitamente nos paradigmas feministas contemporâneos que nomeiam o homem como inimigo e a mulher como vítima.

Claramente, a diferenciação entre forte e fraco, poderoso e impotente, tem sido um aspecto central definidor de gênero no mundo, carregando consigo o pressuposto de que homens deveriam ter maior autoridade e governar as mulheres. Tão significativo e importante quanto esse fato é que não se deveria encobrir a realidade de que mulheres podem participar — e realmente participam — das políticas de dominação, tanto como perpetradores quanto como vítimas: dominamos, somos dominadas. Se o foco na dominação patriarcal mascara essa realidade, ou se torna o meio pelo qual as mulheres desviam a atenção das reais condições e situações de nossas vidas, então as mulheres cooperam com a submissão e a promoção da falsa consciência, inibindo nossa capacidade de assumir responsabilidades pela transformação de nós mesmas e da sociedade.

Especulando sobre os primeiros arranjos sociais humanos, sobre mulheres e homens lutando para sobreviver em pequenas comunidades, é possível que a relação pai/mãe-criança com sua real, perene e imposta estrutura de dependência, de forte e fraco, de poderoso e impotente, seja um lugar para a construção de um paradigma de dominação. Enquanto essa circunstância de dependência não necessariamente conduz à dominação, presta-se à encenação de um drama social em que a dominação poderia facilmente ocorrer como um meio de exercitar e manter o controle. Essa especulação não põe mulheres fora da prática de dominação, no papel exclusivo de vítimas. Ela, sobretudo, nomeia mulheres como agentes de dominação, como potenciais teóricas e criadoras de um paradigma de relacionamentos sociais no qual aqueles grupos de indivíduos designados como “fortes” exercem poder tanto de forma benevolente quanto coerciva sobre aqueles designados como “fracos”.

Enfatizar paradigmas de dominação que chamam a atenção para a capacidade da mulher de dominar é uma maneira de desconstruir e desafiar a noção simplista de que o homem é o inimigo, e a mulher, a vítima — a noção de que os homens sempre foram os opressores. Tal pensamento nos permite examinar nosso papel como mulheres na perpetuação de sistemas de dominação. Para compreender dominação, precisamos compreender que nossa capacidade como mulheres e homens de ser dominados ou dominadores é um ponto de conexão, uma convergência. Mesmo falando a partir da experiência particular de viver como uma mulher negra nos Estados Unidos, uma sociedade de supremacia branca, capitalista, patriarcal, onde um pequeno número de homens brancos (e ilustres “homens brancos”) constitui os grupos dominantes, compreendo que em muitos lugares no mundo oprimidos e opressores compartilham a mesma cor. Compreendo que bem aqui, neste recinto, oprimidos e opressores compartilham do mesmo gênero. Bem agora, enquanto eu falo, um homem que é vitimado, ferido, machucado pelo racismo e pela exploração de classe está ativamente dominando uma mulher em sua vida; mesmo enquanto eu falo, mulheres também exploradas, vitimadas, estão dominando crianças. É preciso lembrar, enquanto pensamos criticamente sobre dominação, que nós todos temos a capacidade de agir de maneiras que oprimem, dominam, machucam (seja esse poder institucionalizado ou não). É preciso lembrar que, primeiro, precisamos enfrentar o opressor em potencial dentro de nós — precisamos resgatar a vítima em potencial dentro de nós. Caso contrário, não podemos ter esperança de liberdade, de ver o fim da dominação.

Esse conhecimento parece especialmente importante neste momento histórico, quando mulheres negras e outras mulheres não brancas trabalham para criar consciência sobre as maneiras como o racismo dá poder a mulheres brancas para agirem como exploradoras e opressoras. Cada vez mais, esse fato é considerado uma razão pela qual nós não deveríamos apoiar a luta feminista, muito embora o machismo e a opressão machista sejam um problema real em nossas vidas como mulheres negras (ver, por exemplo, o livro Black Women, Feminism, Black Liberation: Which Way? [Mulheres negras, feminismo, libertação negra: qual caminho?], de Vivian Gordon). É necessário que falemos continuamente sobre as convicções que configuram nossa contínua defesa da luta feminista. Ao chamar a atenção para o entrelaçamento de sistemas de opressão — sexo, raça e classe —, mulheres negras e muitos outros grupos de mulheres reconhecem a diversidade e a complexidade da experiência de ser mulher, de nossa relação com o poder e a dominação. A intenção não é dissuadir as pessoas não brancas de se tornarem engajadas no movimento feminista. A luta feminista para acabar com a dominação patriarcal deveria ser de primeira importância para mulheres e homens em todo o mundo, não porque seja a base de todas as outras estruturas opressivas, mas porque é a forma de dominação que estamos mais propensos a encontrar de modo permanente na vida cotidiana.

Diferentemente de outras formas de dominação, o machismo molda e determina diretamente relações de poder em nossas vidas privadas, em espaços sociais familiares, no contexto mais íntimo (casa) e nas esferas mais íntimas de relações (família). Geralmente é dentro da família que testemunhamos a dominação coerciva e aprendemos a aceitá-la, seja a dominação de pai/mãe sobre a criança, seja a do homem sobre a mulher. Embora as relações familiares possam ser — e com mais frequência sejam — caracterizadas pela aceitação de uma política de dominação, elas são simultaneamente relações de cuidado e conexão. É essa convergência de dois impulsos contraditórios — a insistência em promover o crescimento e a insistência em inibir o crescimento — que fornece um contexto prático para a crítica, a resistência e a transformação feministas.

Crescendo numa casa de classe trabalhadora, negra, dominada por um pai, eu experimentei a autoridade coerciva de um adulto como uma ameaça mais imediata, mais propensa a causar dor imediata do que a opressão racista ou a exploração de classe. Era também evidente que experimentar exploração e opressão dentro de casa faria com que alguém se sentisse ainda mais impotente quando encontrava forças dominantes fora de casa. Isso é verdade para muitas pessoas. Se somos incapazes de enfrentar e acabar com a dominação nas relações em que há cuidado, parece totalmente inimaginável que possamos enfrentar e acabar com ela em outras relações institucionalizadas de poder. Se não podemos convencer nossas mães e/ou pais a se preocuparem com não nos humilhar e diminuir, como podemos pensar em convencer ou enfrentar um empregador, alguém que se ama, um estranho que sistematicamente humilha e deprecia? 

O esforço feminista para acabar com a dominação patriarcal deveria ser uma preocupação primária precisamente porque insiste na erradicação da exploração e da opressão no contexto familiar e em todos os outros relacionamentos íntimos. É esse movimento político que mais radicalmente se dirige à pessoa — ao pessoal — mencionando a necessidade de transformação do eu, dos relacionamentos, para que possamos ser mais capazes de agir de um modo revolucionário, desafiando e enfrentando a dominação, transformando o mundo fora do eu. Estrategicamente, o movimento feminista deveria ser um componente central de todas as lutas de libertação, pois desafia cada um de nós a modificar nossa pessoa, nosso comprometimento pessoal (seja como vítimas, perpetradores ou ambos) num sistema de dominação.

O feminismo, como luta libertadora, deve existir à parte de e como parte de uma luta maior para erradicar a dominação em todas as suas formas. Devemos compreender que a dominação patriarcal compartilha uma base ideológica com o racismo e outras formas de opressão de grupo, que não há esperança de que seja erradicada enquanto esses sistemas permanecerem intactos. Esse conhecimento deveria diligentemente configurar a direção da teoria e da prática feministas. Infelizmente, o racismo e o elitismo de classe entre mulheres têm conduzido à repressão e à distorção dessa conexão. Portanto, é necessário agora que pensadoras feministas critiquem e revisem a teoria feminista e a direção do movimento feminista. Esse esforço de revisão é talvez mais evidente no reconhecimento amplo e constante de que machismo, racismo e exploração de classe constituem sistemas interligados de dominação — de que sexo, raça e classe, e não somente sexo, determinam a natureza da identidade, do status e da circunstância de qualquer mulher, o grau em que ela será ou não dominada, o quanto ela terá ou não poder para dominar.

Ao mesmo tempo que o reconhecimento da complexa natureza da condição de mulher (impresso na consciência de todos, sobretudo, por mulheres não brancas radicais) é um disciplinador significativo, também é somente um ponto de partida. Ele fornece uma estrutura de referência que deve servir como base para alterar e revisar meticulosamente teoria e prática feministas. Ele nos desafia e nos chama a repensar os pressupostos comuns sobre a natureza do feminismo que têm tido o mais profundo impacto na grande maioria das mulheres, na consciência de massa — e questiona radicalmente a noção de uma experiência feminina fundamentalmente comum, que tem sido vista como um pré-requisito para nossa união, para a unidade política. O reconhecimento da interconexão entre sexo, raça e classe enfatiza a diversidade da experiência, forçando uma redefinição dos termos para a unidade. Se mulheres não compartilham “opressão comum”, o que pode servir então como base para nos juntar?

Diferentemente de muitas companheiras feministas, acredito que mulheres e homens devem compartilhar uma compreensão comum — um conhecimento básico sobre o que é feminismo — se for para o feminismo, algum dia, se tornar um poderoso movimento político de massa. No livro Feminist Theory: From Margin to Center, sugeri que definir feminismo amplamente como “um movimento para acabar com o machismo e a opressão sexista” nos permitiria ter um objetivo político comum. Teríamos então uma base sobre a qual construir a solidariedade. Definições múltiplas e contraditórias de feminismo criam confusão e enfraquecem o esforço para construir um movimento feminista que inclua todo mundo. Compartilhar um objetivo em comum não implica que mulheres e homens não tenham perspectivas radicalmente divergentes de como esse objetivo poderá ser alcançado. Cada indivíduo começa o processo de engajamento na luta feminista em um nível único de consciência; diferenças reais de experiência, perspectiva e conhecimento fazem do desenvolvimento de estratégias variadas de participação e transformação uma agenda necessária.

Mulheres engajadas em revisar radicalmente os pilares centrais do pensamento feminista devem sempre enfatizar a importância do sexo, da raça e da classe como fatores que, juntos, determinam a construção social da feminilidade, visto que está profundamente enraizado na consciência de muitas mulheres ativas no movimento feminista que o gênero é o único fator determinante. Entretanto, o trabalho de educar para uma consciência crítica (geralmente chamado de conscientização) não acaba aí. Muito da conscientização feminista no passado buscou identificar as maneiras particulares pelas quais os homens oprimem e exploram as mulheres. Usar o paradigma de sexo, raça e classe significa que o foco não começa com os homens e o que eles fazem às mulheres, mas, ao contrário, começa com as mulheres trabalhando para identificar, tanto individual quanto coletivamente, o caráter específico de nossa identidade social.

Imagine um grupo de mulheres de diversas origens se juntando para falar sobre feminismo. Primeiro, elas se concentram em resolver sua condição em termos de sexo, raça e classe, usando isso como o ponto de vista a partir do qual começam a discutir o patriarcado ou suas relações particulares com homens individualmente. Dentro da antiga estrutura de referência, uma discussão poderia consistir somente de conversas sobre as experiências delas como vítimas em relação aos homens opressores. Duas mulheres — uma pobre, outra bem rica — poderiam descrever o processo pelo qual têm sofrido abuso físico de parceiros e encontrar certas convergências que poderiam servir como base para a criação de laços. Porém, se essas mesmas mulheres se envolvessem numa discussão sobre classe, não só divergiriam no que diz respeito à construção social e expressão de feminilidade, mas também a suas ideias sobre como confrontar e mudar sua condição de abuso. Ampliar a discussão incluindo uma análise de raça e classe poderia expor muitas outras diferenças, mesmo que emergissem convergências.

Claramente, o processo de criar laços é mais complexo, porém essa ampla discussão propiciaria a troca de perspectivas e estratégias para a mudança que, mais do que diminuir, enriqueceriam nossa compreensão sobre gênero. Enquanto feministas têm cada vez mais concordado com a ideia de diversidade “da boca pra fora”, não temos desenvolvido estratégias de comunicação e inclusão que permitam uma implementação bem-sucedida dessa visão feminista.

Pequenos grupos não são mais o lugar central para a conscientização feminista. Grande parte da educação feminista para a consciência crítica acontece nas aulas de estudos sobre mulheres ou em congressos sobre gênero. Livros são uma fonte primária de educação, o que significa que a massa de pessoas que ainda não leem não consegue acessá-la. A separação entre as formas como os movimentos de base compartilham o pensamento feminista, ao redor de mesas de cozinha, e as esferas onde grande parte do pensamento é gerado — a academia — enfraquece o movimento feminista. O pensamento feminista avançaria se o novo pensamento feminista pudesse ser compartilhado no contexto de pequenos grupos, integrando a análise crítica com a discussão de experiências pessoais. Seria útil promover mais uma vez o cenário do pequeno grupo como uma arena de educação para a consciência crítica; assim, mulheres e homens poderiam se juntar em bairros e comunidades para discutir questões feministas.

Pequenos grupos continuam sendo um importante espaço de educação para a consciência crítica, por várias razões. Um aspecto especialmente importante para o contexto de pequenos grupos é a ênfase na comunicação do pensamento feminista e da teoria feminista de um modo que seja facilmente compreendido. Em pequenos grupos, os indivíduos não precisam ser igualmente letrados ou totalmente letrados, pois a informação é primeiro compartilhada por meio da conversa, em diálogo, que é necessariamente uma expressão libertadora. (A alfabetização deveria ser um objetivo para as feministas ao mesmo tempo que devemos garantir que não se torne uma exigência para a participação na educação feminista.) Reformar pequenos grupos subverteria a apropriação do pensamento feminista por um grupo seleto de mulheres e homens acadêmicos, geralmente brancos, com origem em classes privilegiadas.

Pequenos grupos de pessoas engajando-se juntos numa discussão feminista, numa luta dialética, criam um espaço onde o “pessoal é político” como ponto de partida da educação para a consciência crítica — e, como tal, pode ser estendido a uma politização do eu focada em fazer compreender as maneiras pelas quais sexo, raça e classe, juntos, determinam nosso destino individual e nossa experiência coletiva. O movimento feminista avançaria se muitas pensadoras feministas renomadas participassem de pequenos grupos, reexaminando criticamente como seus trabalhos podem ser modificados ao incorporar perspectivas mais amplas. Todos os esforços de autotransformação nos desafiam a nos engajar em permanente autoexame crítico e de reflexão sobre a prática feminista, sobre como vivemos no mundo. Esse comprometimento individual, quando aliado ao engajamento numa discussão coletiva, proporciona um espaço para a resposta crítica que fortalece nossos esforços para mudar e nos tornarmos novos. É nesse comprometimento com os princípios feministas em nossas palavras e feitos que reside a esperança de uma revolução feminista.

É trabalhando coletivamente para confrontar a diferença e para expandir nossa consciência sobre sexo, raça e classe como sistemas interligados de dominação, sobre os modos pelos quais reforçamos e perpetuamos essas estruturas, que aprendemos o verdadeiro significado da solidariedade. Esse é o trabalho que deve ser a base do movimento feminista. Sem isso, não podemos efetivamente enfrentar a dominação patriarcal; sem isso, permanecemos indiferentes e alienados uns dos outros. O medo do enfrentamento doloroso leva mulheres e homens ativos no movimento feminista a evitar encontros críticos rigorosos; porém, se não podemos nos engajar dialeticamente de uma maneira comprometida, rigorosa, humanizada, não podemos ter esperança de mudar o mundo. A verdadeira politização — alcançando consciência crítica — é um processo difícil, “de tentativa”, que demanda desistir de determinadas maneiras de pensar e ser, mudar nossos paradigmas, nos abrirmos para o desconhecido, o não familiar. Ao passar por esse processo, aprendemos o que significa lutar e, nesse esforço, experimentamos a dignidade e a integridade de ser, que vem com a transformação revolucionária. Se não transformamos nossa consciência, não podemos mudar nossas ações ou demandar que os outros mudem.

Nosso comprometimento renovado com um processo rigoroso de educação para a consciência crítica irá determinar a forma e a direção do futuro movimento feminista. Não conseguiremos ser símbolos de poder do pensamento feminista até que novas perspectivas sejam criadas. Dadas as condições privilegiadas de muitas pensadoras feministas de destaque em termos de status, classe e raça, é mais difícil convencer as mulheres da importância desse processo de politização nos dias de hoje. Mais e mais, parecemos formar seletos grupos de interesse compostos por indivíduos que compartilham perspectivas similares. Isso limita nossa capacidade de se envolver em discussões críticas. É difícil envolver as mulheres em novos processos de politização feminista porque muitas de nós pensam que identificar homens como o inimigo, enfrentar a dominação masculina, ganhar igual acesso ao poder e ao privilégio é o fim do movimento feminista. Isso não é o fim — e sequer é o lugar onde queremos que se inicie um movimento feminista revitalizado. Queremos começar, como mulheres, nos dirigindo a nós mesmas seriamente, não somente em relação aos homens, mas em relação à completa estrutura de dominação da qual o patriarcado é apenas uma parte. Se a luta para erradicar o machismo e a opressão sexista é — e deveria ser — o impulso principal do movimento feminista, devemos aprender a ser solidárias e a lutar juntas para nos prepararmos politicamente para esse esforço.

Somente quando confrontarmos as realidades de sexo, raça e classe, as maneiras como nos dividem, nos diferenciam e nos opõem, e trabalharmos para reconciliar e resolver esses problemas, é que seremos capazes de participar da realização da revolução feminista, da transformação do mundo. O feminismo, como Charlotte Bunch enfatiza repetidas vezes em Passionate Politics [Política apaixonada], é uma política transformadora, uma luta contra a dominação na qual o esforço é mudar a nós mesmas, bem como as estruturas. Falando sobre a luta para confrontar a diferença, Bunch afirma: 

Um ponto crucial do processo é entender que a realidade não parece a mesma a partir da perspectiva de diferentes pessoas. Não é de se surpreender que uma das maneiras pelas quais feministas começaram a compreender a diferença foi por meio do amor de uma pessoa de outra cultura ou raça. É preciso persistência e motivação — o que o amor frequentemente gera — para ir além de hipóteses etnocêntricas e realmente aprender sobre outras perspectivas. Nesse processo, e enquanto se busca eliminar opressão, também descobrimos novas possibilidades e ideias que vêm da experiência e da sobrevivência de outras pessoas.

Imerso no comprometimento com a revolução feminista está o desafio de amar. O amor pode ser e é uma importante fonte de empoderamento quando lutamos para confrontar questões de sexo, raça e classe. Ao trabalhar juntos para identificar e enfrentar nossas diferenças — enfrentar as maneiras como dominamos e somos dominados — e transformar nossas ações, precisamos de uma força de mediação que nos apoie para que não nos quebremos no processo, não nos desesperemos.

Os trabalhos feministas dedicados a documentar e compartilhar como indivíduos enfrentam diferenças construtivamente e com sucesso são insuficientes. Mulheres e homens precisam saber o que está do outro lado da dor experimentada na politização. Precisamos de relatos detalhados sobre como nossas vidas são mais plenas e ricas quando mudamos e crescemos politicamente, quando aprendemos a viver cada momento como feministas comprometidas, como companheiras trabalhando para acabar com a dominação. Ao redefinir e reformular estratégias para o futuro movimento feminista, precisamos nos concentrar na politização do amor, não somente no contexto de falar sobre vitimização em relacionamentos íntimos, mas em uma discussão crítica, na qual o amor é compreendido como uma força poderosa que desafia e resiste à dominação. Quando trabalhamos para sermos amados, para criar uma cultura que celebra a vida, que torna o amor possível, nós nos movemos contra a desumanização, contra a dominação. Na Pedagogia do oprimido, Paulo Freire evoca o poder do amor, declarando:

Cada vez mais nos convencemos da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós a revolução, que não se faz sem teoria da revolução, portanto sem ciência, não tem nesta uma inconciliação com o amor. […] Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor no mundo capitalista que a revolução vá deixar de ser amorosa, nem os revolucionários façam silêncio de seu caráter biófilo.

Aquele aspecto da revolução feminista que chama as mulheres a amarem a feminilidade, que chama os homens a resistirem aos conceitos desumanizantes da masculinidade, é uma parte essencial da nossa luta. É o processo pelo qual deixamos de nos ver como objetos para agir como sujeitos. Quando mulheres e homens compreendem que o trabalho de acabar com a dominação patriarcal é uma luta enraizada no desejo de fazer um mundo onde todas as pessoas possam viver de forma completa e livre, então sabemos que nosso trabalho é um gesto de amor. Vamos fazer uso desse amor para aumentar nossa consciência, aprofundar nossa compaixão, intensificar nossa coragem e fortalecer nosso comprometimento. 

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