Festa e guerra diante da política do branco

Por Paulo Silva Junior

O pleito municipal de 2024 registrou 242 candidaturas indígenas eleitas para as câmaras de vereadores espalhadas pelo país, número 32% maior que quatro anos antes, segundo levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2022, nove parlamentares indígenas assumiram cadeiras de deputados ou senadores. Não há dúvida que há mais gente se sentindo representada e confiando na importância da diversidade na política eleitoral — a atual ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, teve 156 mil votos como deputada por São Paulo, por exemplo. Mas, se o crescimento é notável, também carrega a pergunta: que ambiente é esse que recebe figuras com outras visões de debate político?

“Política de branco” é o penúltimo capítulo de Festa e guerra: movimentos coletivos dos povos nativos da América, livro de Beatriz Perrone-Moisés que está em pré-venda na Elefante. Percorrendo conceitos e interpretações dos termos que dão título à obra, a pesquisadora chega então ao entrave da atuação de pessoas indígenas por meio desses cargos eletivos nas cidades, estados e no âmbito federal. “Para nós, a política é outra coisa”, diz a citação que abre o texto, de Davi Kopenawa.

O primeiro indígena eleito no Brasil foi Manoel dos Santos, do povo Karipuna, vereador em Oiapoque (AP) em 1969. Quem abriu caminho como deputado federal foi Mário Juruna, em 1982. É do caso de Juruna que a autora parte para elaborar as diferentes formas nativas de entender a ideia de política. “Juruna é lembrado pelo gravador com que chamava a atenção para o hábito dos brancos de ‘mentir muito’, fazendo falsas promessas — e nisso repetia o que numerosas lideranças indígenas diziam, havia séculos, a respeito de numerosos tratados desrespeitados na América do Norte”, escreve Beatriz.

O texto cita que, por exemplo, virou comum chamar de “muita política” uma situação que se refere a ambientes de discussão, ou que são “bons de política” aqueles que se destacam no movimento indígena, sendo “bom de política” um sinônimo para “bom de briga”. É rotineiro ouvir que determinada instituição não anda por haver… “política”. 

“Entre os Kaiowá, ‘política’ aparece como coisa ruim, tekovaí, o oposto do ‘viver bem/do nosso jeito/do jeito bom’. Para os Miskitu [Nicarágua], ‘viver bem’ supõe a ausência do que chamam de politics, em inglês (sua segunda língua); o etnólogo que nos dá essa informação registra ainda que, quando alguém declara ‘não gostar da política de alguém’, isso significa ‘que não gosta do modo como tal pessoa usa ou manipula outras ou se comporta em relação a elas’. Do mesmo modo, um ex-chefe chinook [Washington, Estados Unidos], falando de formas políticas ‘tradicionais’, diz que sempre houve conflitos, mas ‘agora existe muita política tribal’ — ‘é triste, mas é verdade’, lamenta. Um líder lakota também lamenta, usando o adjetivo para o resultado da imposição de formas brancas de governo: ‘Nossos sistemas tornaram-se políticos, mais do que relacionais’. É digna de nota a oposição entre político e relacional”, segue a autora.

Uma discussão de projeto de lei no Senado brasileiro, por exemplo, está bem longe de evocar os conceitos de consenso, de pensar junto ou de alcançar uma mediação dentro da troca de ideias coletiva. E o plenário parece ainda mais distante das tradições dos povos originários quando não dá conta de se situar junto de algo fundamental para essas pessoas: a “festa” — termo que, no contexto nativo da América, tampouco pode ser entendido pelas noções ocidentais.

“Formas indígenas contemporâneas de assembleia, como oficinas e projetos, sempre ocorrem em contextos mais amplos de festas. As reuniões seguem sendo festas. Nesse plano da transformação, chamam a atenção paralelos entre descrições de reuniões de conselhos tribais criados no contexto das relações com Estados nacionais, como os Tribal Councils norte-americanos e as Aty Guasu [dos Kaiowá do Mato Grosso], e as do Conselho dos Sachem. A comparação entre novas e antigas variantes de conselho entre os índios pode certamente acrescentar muito à nossa compreensão.”

Então, enquanto pessoas brancas têm na imagem da política uma reunião de senhores de terno e gravata numa longa mesa em Brasília, com seus copos d’água, xícaras de café, pilhas de papel e apresentação de slides em um projetor, a referência para diversas etnias indígenas pode vir de contextos familiares, domésticos e informais, já que em tantas vezes a grande assembleia se coloca apenas para anunciar decisões já conversadas na comunidade. É por isso que, como segue Beatriz Perrone-Moisés em Festa e guerra, “do ponto de vista dos princípios nativos de operar coletivos, nossa política só pode aparecer como modo ruim, já que supõe a manutenção de um estado constante de oposição entre pessoas que se entendem como membros de um mesmo coletivo-país. Em lugar de cultivarmos o apaziguamento e a concordância, afirmamos que a discordância é salutar”.

Nos dados do Tribunal Superior Eleitoral, 1,6 milhão de brasileiros votaram numa pessoa indígena para os cargos de vereador ou prefeito na última eleição. E se esse tipo de política para essas pessoas eleitas aparecer, no fundo, como algo simplesmente ruim, mal-feito, sem sentido? Passear pelas ideias deste livro pode ajudar para que, além do fundamental movimento de representação nos cargos, eleitores possam imaginar como as formas originárias de tocar a vida podem de fato promover outras transformações na sociedade. Desconstruir o monopólio da forma de atuação da pessoa pública, essa consolidada pelos mesmos homens de sempre, é voltar aos significados disso tudo. Renomear a política, a festa e a guerra, na complexidade do que é chamar as coisas.

Foto: Acampamento Terra Livre 2024, em Brasília. Crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado

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