Por Keeanga-Yamahtta Taylor
Publicado em New Yorker
A extrema direita estadunidense está investindo em uma tática que conhecemos bem por aqui: a guerra cultural. Lembram das bravatas do “escola sem partido”? Pois é algo nessa linha que está acontecendo na Flórida, governada por Ron DeSantis. Com pretensão de se candidatar à Presidência no ano que vem, ele começou a fazer acenos ao eleitorado de Donald Trump e conseguiu, por enquanto, banir do currículo especial, que prepara os alunos do ensino médio para a universidade, os temas de teoria racial crítica, estudos queer negros e pensamento literário feminista negro, entre outros.
Duas autoras publicadas pela Elefante, fundamentais em nossa perspectiva editorial, tiveram seus livros vetados no ensino médio da Flórida: bell hooks e Keeanga-Yamahtta Taylor. A autora de #VidasNegrasImportam e libertação negra abordou o tema em sua coluna na revista New Yorker, onde ela entrevista Robin D. G. Kelley, professor de história da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), que também foi eliminado do currículo escolar. Reproduzimos abaixo a coluna na íntegra.
Na quarta-feira, 1º de fevereiro, data que inicia o Mês da História Negra nos Estados Unidos, o College Board, organização educacional sem fins lucrativos responsável pelo exame padrão de admissão nas universidades, divulgou seu tão esperado currículo para uma nova turma de Colocação Avançada em estudos afro-americanos — currículos e exames de nível universitário voltados para estudantes do Ensino Médio no país. Duas semanas antes, o departamento de educação da Flórida havia rejeitado o curso alegando que “não tem valor educacional e é contrário à lei da Flórida”.
Aproximadamente uma semana depois, o comissário estadual de educação, Manny Diaz Jr., divulgou um documento listando suas reclamações, baseado em uma versão piloto do curso. Ele cita o fato de que havia seções sobre interseccionalidade e ativismo, estudos queer negros, “pensamento literário feminista negro”, reparações e “estudo negro e a luta negra no século XXI”. O Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], que no verão de 2020 promoveu as maiores manifestações da história estadunidense, com a participação de mais de vinte milhões de pessoas, foi descartado como tema de estudo.
Quando o College Board divulgou o currículo revisado, todas as seções citadas pelo estado da Flórida haviam sido removidas. Representantes da organização insistiram que já estavam planejando revisar a versão piloto e que o ataque da Flórida não tinha nada a ver com as recentes mudanças. É certamente crível que a versão preliminar das aulas teria que ser revisada, mas não dá para engolir o argumento de que as reclamações da direita não tenham influenciado o resultado final.
O chefe do programa de colocação avançada, Trevor Packer, disse à revista Time, no último verão, que o Black Lives Matter havia inspirado um esforço renovado para iniciar esses estudos. “Os eventos em torno de George Floyd e a maior conscientização e atenção dada às questões de desigualdade, injustiça e brutalidade dirigidas aos afro-estadunidenses me fizeram pensar: ‘Será que as faculdades seriam mais receptivas a um curso nesta disciplina do que eram há dez anos?’.”
É difícil conciliar aquela inspiração com a decisão de extirpar quase todas as menções a Black Lives Matter, interseccionalidade, brutalidade policial ou quaisquer outras questões que moldam as experiências das pessoas negras nos Estados Unidos. De fato, quase não há menção alguma sobre as rebeliões negras dos anos 1960, que foram o pano de fundo das demandas dos estudantes negros para que os estudos negros fossem incluídos nos currículos das faculdades e universidades.
Essas omissões minam a legitimidade do curso de Colocação Avançada e do próprio College Board. Elas também diminuem o poder dos estudos negros para dar sentido ao nosso mundo contemporâneo. Naquele mesmo dia, quarta-feira à noite, conversei com Robin D. G. Kelley, professor de história da Ucla [Universidade da Califórnia em Los Angeles] e um dos autores cuja obra foi retirada do curso revisado. (Meu trabalho foi listado como leitura secundária no currículo piloto; também foi removido.) Em nossa conversa, que foi editada para adequar tamanho e clareza, discutimos a história dos estudos afro-estadunidenses, sua conexão com a luta política e as consequências das ações do College Board.
O que são estudos negros? Por que não apenas história negra?
Esse curso não é nem de longe um curso sobre estudos afro-estadunidenses. O College Board diz que estudos afro-estadunidenses são uma abordagem interdisciplinar, com os rigores da investigação acadêmica, para analisar a história, a cultura e as contribuições de pessoas de ascendência africana nos Estados Unidos e em toda a diáspora africana. Mas esta não é a definição de estudos afro-estadunidenses, estudos africanos, estudos negros no nível universitário. A maneira como ensinamos é realmente sobre examinar vidas negras: as estruturas que produzem mortes prematuras, que nos fazem vulneráveis, as ideologias que tanto inventam a negritude quanto tornam os negros menos que humanos; e, talvez o mais importante, a luta para garantir um futuro diferente. Portanto, muito disso é sobre questionar categorias raciais, entendendo a persistência da desigualdade, como isso é moldado pelos próprios fundamentos do pensamento ocidental, ou seja, não é sobre fazer pessoas negras se sentirem melhor. Não é sobre suas realizações. Tenho certeza de que isso entra. Mas, como um esforço acadêmico, tenta entender como pessoas negras passam a existir no mundo moderno — como aquele processo de sequestro, escravização, extração de trabalho, extração de ideias, foi fundante para o mundo moderno. E, finalmente, a maneira que pessoas africanas realmente tentaram refazer e repensar este mundo, pela arte, pelas ideias, pelo estudo em ação. Isso é o que eu entendo que seja e isso não está realmente neste currículo.
O que você acha que aconteceu com o College Board e com este curso?
Existem dois níveis. Um é sobre Ron DeSantis [governador da Flórida] possivelmente concorrendo à Presidência. Eu acho que essa é a coisa mais importante, porque, não importa o que pensamos sobre DeSantis e suas políticas, sabemos que ele foi para a Universidade Yale e se formou em história e ciência política como uma média 3.7 G.P.A [média de notas]. É por isso que fico frustrado quando as pessoas dizem que ele precisa assistir a uma aula. Ele assistiu às aulas. Ele sabe bem do que está falando. Ele sabe que as guerras culturais realmente ganham votos. Ele está tentando obter o eleitorado de Trump. Então eu acho que isso é sobre Ron DeSantis querendo correr para presidente. Mas eu também acho que o foco na Flórida esconde uma história maior.
Estamos tentando descobrir uma maneira de fazer um futuro melhor, esse é o ponto. E se isso é subversivo, então diga, mas definitivamente não é doutrinação, porque doutrinação é um estado que proíbe livros.
Como você sabe, isso remonta aos anos Trump — bem antes de Trump, na verdade, mas vamos falar apenas sobre os anos Trump: o ataque ao Projeto 1619 [projeto do jornal The New York Times sobre o papel dos negros escravizados na fundação dos Estados Unidos; o ano de 1619 marca o início da escravidão nas colônias norte-americanas], a estratégia de Chris Rufo [conservador estadunidense, membro sênior do Manhattan Institute] de transformar a teoria racial crítica em um epítome, negando-lhe qualquer significado. E criando uma palavra da moda. Na verdade, essa é uma estratégia que nada tem a ver com o campo dos estudos afro-estadunidenses; tem tudo a ver com difamar um campo, atacando todo o conceito de justiça e equidade racial. Então, para mim, se DeSantis nunca tivesse banido a aula, ainda estaríamos nessa situação.
Embora seja verdade que um número de estados aceitou o programa piloto, alguns desses mesmos estados passaram ou estão prestes a passar leis que estão banindo ou limitando o que eles chamam de teoria racial crítica. Portanto, há um ataque geral ao conhecimento, mas especificamente ao conhecimento que questiona raça, sexo, gênero e até mesmo classe. É uma luta constante para reverter qualquer coisa que seja percebida como diminuição do poder branco. Eles querem convencer pessoas brancas trabalhadoras — as mesmas pessoas brancas trabalhadoras que têm muito pouco acesso a bons planos de saúde e habitação, cujas vidas são realmente muito precárias, à medida que passam de empregos sindicais para empregos de meio período, se desdobram para pagar as contas — que, de alguma forma, se eles conseguissem controlar a narrativa dentro das salas de aula, suas vidas seriam melhores. Na verdade, o racismo prejudica todas as nossas perspectivas e futuros.
Eu não acho que seja por acaso que os alvos são você, Angela Davis, eu, bell hooks. Dizer que não somos radicais seria mentira. O que radical realmente significa? O significado disso, o que os estudos negros abordam, é tentar entender como o sistema funciona, e reconhecer que a maneira como o sistema funciona agora beneficia alguns em detrimento de muitos. É fácil permitir que alguém entre, em nome dos estudos negros, e diga: “Vamos falar sobre a África antiga, e as grandes conquistas do Kush do antigo Egito”. Isso não é uma ameaça — não tanto quanto a ideia da teoria racial crítica dizendo que, não importa quais políticas e procedimentos e legislação são implementadas, a estrutura do racismo, embutida em um sistema capitalista, embutida em um sistema do patriarcado, continua a criar riqueza para alguns e torna precário o resto de nossas vidas. Precário em termos de dinheiro, em termos de violência policial, em termos de catástrofe ambiental, precário de muitas e muitas maneiras. Eu acho que as pessoas podem concordar comigo que é por isso que fazemos essa bolsa de estudos: porque estamos tentando descobrir uma maneira de fazer um futuro melhor. Você sabe, esse é o ponto. E se isso é subversivo, então diga, mas definitivamente não é doutrinação, porque doutrinação é um estado que proíbe livros.
Eu acho que uma das maneiras que essa discussão sobre estudos afro-estadunidenses tem sido distorcida é quando a direita afirma que, se você é radical e de esquerda, isso te desqualifica como professor e como autor. Em um artigo publicado pela National Review sobre esse curso, o autor disse que você seria desqualificado a priori, porque seu primeiro livro é sobre o Partido Comunista no Alabama. Se você tem ideias radicais, ou políticas radicais, eles afirmam, você está mais interessado em doutrinação do que no ensino. Então eu me pergunto como você responderia a isso – se os pais estão preocupados pelo fato de que você é socialista, ou um ativista, ou abraça, você sabe, causas em nome das pessoas, você não pode ensinar objetivamente.
Certo, claro que isso é ridículo. Temos conservadores declarados – às vezes apenas supremacistas brancos confessos – que estão ensinando em todos os níveis. Stanley Kurtz, que escreveu aquele artigo, era um professor, ele obteve Ph.D. E ele está escrevendo para uma publicação partidária. Mas as suas credenciais não estão em questão. Na verdade, ele não apenas está fazendo isso, mas ele está fazendo algo que nenhum de nós está fazendo: ele está escrevendo uma legislação – literalmente escrevendo legislação para os estados proibirem a teoria racial crítica. [Em um e-mail, Kurtz reconheceu que uma lei do Texas foi parcialmente baseada na legislação modelo que ele escreveu.]
Nosso trabalho, como educadores, é abrir todos os estudantes para o mundo – que é a raiz da universidade, universitas. Nós podemos fazer isso e continuar tendo uma perspectiva política, porque somos pessoas reais, certo? O que eu acho que desqualificaria qualquer professor é dizer: “Sabe de uma coisa, não vamos tocar nisso. Está fora dos limites”. A menos que seja alguma invenção, uma informação inútil. Geralmente, nós ensinamos de um modo que abre o debate e a discussão. Encorajamos a divergência, entre nós e nossos alunos ou entre estudantes. Não revelamos necessariamente em nossas aulas quais são nossas apostas políticas. Escolhemos leituras que vão em todos os sentidos. E a prova disso está nos currículos, está nas próprias avaliações de ensino, está nos colegas que decidem que somos dignos de ser contratados.
Eu sempre digo aos meus alunos: “Eu não preciso que você pense como eu, eu preciso que você pense por si próprio. E eu estou aqui para ajudar você a pensar criticamente sobre tudo, e a fazer milhões de perguntas e tentar descobrir como respondê-las”. É a direita que está realmente dizendo: “Não leia este livro, não ouça esta pessoa, não tenha essa conversa.” Não sei se isso é irônico – é apenas hipocrisia. Na alegada preocupação com a esquerda ocupando os campi, o que temos na verdade é uma investida da direita para controlar o que lemos, com quem falamos e sobre o que falamos.
É engraçado, porque eles estavam tentando atacar você quando você twittou que a polícia não está realmente nos ajudando e que temos que pensar sobre abolição – e, no entanto, ninguém é responsabilizado por argumentar que, na verdade, precisamos de mais policiais e precisamos gastar mais dinheiro. Ambos são posicionamentos políticos. São posições que poderiam ser defendidas, racionalmente, com evidências.
Se não pudermos fornecer uma educação justa, objetiva e útil nas escolas públicas, então os movimentos terão que criar instituições e estruturas alternativas.
É tudo política; é apenas com a política de quem você concorda? Eles querem ensinar a Comissão 1776 [comissão liderada por Thomas Jefferson que escreveu a Declaração de Independência dos EUA], e acham que é ok, mesmo que esse também seja um ponto de vista político do mundo. É olhar a história americana através de um tipo de lente particular, e tudo bem. Mas, se você olha através de uma lente diferente, através de um conjunto diferente de experiências, então isso é algum tipo de doutrinação, propaganda, algo que deveria ser dispensado.
E ainda, apesar de todas essas contradições, eles têm um ímpeto tremendo. O Projeto 1619 foi banido em muitas localidades. Todo dia tem um novo estado que está encontrando alguma maneira de banir a teoria racial crítica. O que acontece depois?
Eu trabalho com um número de organizações, mas uma em particular, chamada Communiversity, é um projeto de trabalhadores negros por justiça na Carolina do Norte. E o que temos falado é sobre o que eles estão falando em Detroit, que está voltando para a ideia das Escolas da Liberdade. Os Estados Unidos podem se parecer como o Mississippi em 1960. Então, se não pudermos fornecer uma educação justa, objetiva e útil nas escolas públicas, então os movimentos terão que criar instituições e estruturas alternativas.
Por outro lado, vale a pena lutar no nível legislativo, no nível do conselho escolar. E o fato é que as bases para isso foram estabelecidas há muito tempo. Você se lembra, voltando para os anos noventa, todo movimento para eliminar conselhos escolares e colocar as escolas nas mãos dos prefeitos? E não estou falando sobre o Sul. Estou falando sobre Nova Iorque, Chicago, lugares como esses dizendo que, de alguma forma, os conselhos escolares estão corrompidos. Por que? Porque são populares ou têm algum tipo de relacionamento com a comunidade.
Então, o fato é que estamos caminhando nessa direção, onde você tem a entrada do governo na educação pública. A Flórida é um bom exemplo, onde o ex-governador Rick Scott estava promovendo incentivos especiais para as escolas desenvolverem programas de exatas e nenhum para aquelas que investissem em humanidades no nível da escola pública. Agora, isso pode não soar como um ataque à teoria racial crítica, mas é certamente um ataque ao pensamento crítico. O que eles querem é reduzir as escolas públicas a escolas vocacionais. Enquanto isso, se você é rico e vai para a escola particular, você pode fazer o que quiser. Você pode ler o melhor da literatura, você pode ler o melhor da crítica de arte, você pode ser livre – e esse é o seu passaporte para Yale, Princeton, Harvard, Stanford, e para fazer o que diabos você quiser fazer. Então isso está produzindo esse tipo de desigualdade. A arquitetura para fazer isso já está lá.
Tem uma última coisa que eu quero pedir para você refletir, sobre a história afro-americana. Pessoas negras eram trazidas para este país para serem escravas. E fomos escravizados por centenas de anos. E então, quando a escravidão terminou, fomos legalmente subjugados por mais uma centena de anos. Então é lógico que todas as escritas negras estejam completamente ligadas a questões de luta, resistência e rebelião. Então essas são as próprias questões, tópicos e histórias que DeSantis e a direita estão tentando retirar do ensino de história negra. Eu queria saber se você poderia falar um pouco sobre o desenvolvimento dos estudos negros, uma disciplina que emerge dessa longa batalha com a qual as pessoas negras estiveram envolvidas, devido às condições sob as quais fomos trazidos para este país e as condições que nos foram impingidas para tentar resistir.
Eu apenas ampliaria tudo o que você disse: o sujeito dos estudos afro-americanos, inclusive antes que fossem chamados desta forma, não é apenas a condição das pessoas negras, mas a condição do país. E não apenas narrar aquela opressão e entendê-la, e não apenas tentar pensar em maneiras de superá-la – para transcendê-la, inventar estratégias para tentar viver – mas também entender o que está errado com este país, com este sistema.
Estudos negros devem ser uma ruptura epistemológica, e é por isso que são perigosos – porque realmente querem tentar descobrir uma maneira de tornar este país não racista.
Não estamos apenas questionando nossas vidas, estamos questionando a própria produção de conhecimento. E é isso que me frustra, e continuo lembrando às pessoas: quando olho para o que está sendo banido, é literatura antirracista, não literatura racista. Nunca vi serem banidos os livros “Notas sobre o estado da Virgínia”, de Thomas Jefferson, ou John C. Calhoun, ou “A Política econômica da escravidão” de Edmund Ruffins, ou Samuel Cartwright, George Fitzhugh, Louis Agassiz. Eles escreveram racismo científico que foi desacreditado. E, no entanto, esses livros não estão sendo banidos. O que está sendo banido é Toni Morrison. E não estou dizendo que esses livros racistas precisam ser banidos. Precisamos ler isso, precisamos saber disso. Mas o fato de não serem os livros que estão sendo banidos – o que isso nos diz?
Muito desse trabalho, incluindo W.E.B. Du Bois, o que eles estavam tentando fazer era escrever textos que fossem compreensíveis e, ao mesmo tempo, reagissem contra todo um edifício de extração, opressão e desapropriação. E você pensaria que qualquer um que realmente acredite no credo americano, que acredite no que diz a Declaração de Independência, vai defender qualquer coisa que tente tornar a nação melhor – que tente reconhecer que, você sabe, todas as pessoas são criadas igualmente.
Mas é sempre uma batalha difícil. Porque poderíamos falar sobre a brutalidade física real sobre a qual este país é construído. Mas também é construído sobre a bolsa de estudos ou as mitologias que são escritas em textos e ensinadas nas escolas em todos os níveis, que continuam reproduzindo a mesma estrutura de conhecimento. Estudos negros devem ser uma ruptura epistemológica, e é por isso que são perigosos – porque realmente querem tentar descobrir uma maneira de tornar este país não racista.