Movimento social e emancipação: tensões dentro do império

Pesquisadores e ativistas políticos, Markus Wissen e Ulrich Brand, escrevem do coração do capitalismo europeu. A partir daí, eles disponibilizam uma estrutura conceitual que nos permite localizar tendências que a pandemia acelerou e revelou. Em Modo de vida imperial eles investigam as formas pelas quais as normas de produção e consumo forjadas no Norte global são sustentada às custas da violência, destruição ecológica e sofrimento humano, especialmente no Sul global. Como introdução a este livro, estamos interessados ​​em colocar essas ideias em prática e em discutir essas ideias, e para isso convidamos Gabriela Massuh, Bruno Fornillo e Camila Moreno para conversar com Brand.

Publicado na Tinta Limón

 

[Continuação da conversa entre Gabriela Massuh [1], Bruno Fornillo [2], Camila Moreno [3] e Ulrich Brand sobre o livro Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global. Leia a primeira parte: Modo de vida imperial: as ressonâncias de um conceito. Você também pode ouvir a conversa na íntegra, em espanhol.

 

Movimento social e emancipação: tensões dentro do império

Ulrich: Na segunda metade do livro que escrevemos com Markus, analisamos a história do modo de vida imperial e, em uma breve parte, as resistências e alternativas ao modelo de vida hegemônico que se abriu na Europa ocidental nos finais de 1960 e início dos anos 70. Naquela época havia uma crise econômica, greves “selvagens” (não controladas pelos sindicatos), movimentos sociais, juvenis, feministas, ecológicos e de solidariedade internacional. Nesse contexto, desenvolveu-se uma crítica radical ao regime disciplinar do fordismo. E sabemos por Toni Negri, mas também por Luc Boltanski e Ève Chiapello, que esse movimento foi composto principalmente pelo neoliberalismo. Nesse sentido, eu diria que hoje não vemos uma resistência significativa contra o modo de vida imperial no Norte global. Claro que há resistência, de #BlackLivesMatter a movimentos de refugiados na Europa, ou contra a exploração de carvão para produzir eletricidade, etc. Eles existem, mas não são tão amplos ou poderosos.

Isso obviamente nos força a repensar o que significa emancipação hoje. Nos anos 70, a emancipação era pensada como uma emancipação social, muitas vezes sob uma ideia de crescimento econômico. A premissa era “todos têm que viver como se vive nas sociedades industrializadas do Ocidente europeu”, sem dar muita atenção aos custos que a natureza paga por esse crescimento. Mas, nas condições de uma crise climática, uma crise ecológica, uma crise múltipla e civilizacional como a atual, não é mais possível propor a emancipação dessa forma. Há um desafio fundamental para o pensamento crítico, que é repensar a emancipação em condições de crise múltipla, que tem um nível de “escassez”, em termos ecológicos, o que é realmente um problema. Faço parte do movimento de “decrescimento” e até publiquei um livro com Alberto Acosta sobre o assunto. [5] Mas decrescimento não significa “menos para as pessoas”, significa que precisamos de outra forma de vida. Um modo de vida solidário que pode se livrar do imperativo da acumulação capitalista.

Em outras palavras, em condições de um modo de vida imperial, em condições de crise múltipla – que inclui uma crise climática e um desastre ambiental – a ideia de emancipação teria que ser repensada para ir além da figura de um “proletariado liberado”. Ou seja, ser capaz de pensar nas condições de uma vida digna não à custa da natureza, não à custa da indignidade de outras vidas. Por isso, enfatizo essa ideia de mudança das condições sociais de reprodução da vida. Mas, é claro, mudar as condições significa luta, significa conflito. Talvez não seja o proletariado e suas organizações de massa – os sindicatos ou partidos revolucionários –, mas sim os múltiplos conflitos sobre o transporte público, sobre a permanência (que é a luta contra a expansão do transporte aéreo), contra a agricultura industrial, contra a indústria automotiva. Esses múltiplos conflitos podem ser articulados de alguma forma. No horizonte está a discussão sobre o que seriam as condições de vida solidária. Um modo de vida solidário que necessita de sujeitos, mas que já não tem um sujeito central, mas sim uma multiplicidade de conflitos emancipatórios.

“’Decrescimento’ não significa “menos para o povo”, mas significa que precisamos de outra forma de vida. Um modo de vida solidário que pode se livrar do imperativo da acumulação capitalista”. (Brand)

Nesse contexto, grande parte dos movimentos sociais atuais se limitam a lutar pelos direitos sociais em nível nacional e, com todo o valor que tem nesse nível, não têm uma perspectiva internacionalista. No mesmo sentido, no Norte global, hoje o Green New Deal é uma proposta de esquerda, mas tem poucos momentos internacionalistas. Se pensa no nível do Estado-nação, se pensa sob as condições do modo de vida imperial. E é por isso que temos que reformulá-lo e repensar o que significa uma ideia do que é o internacional que não esteja implicitamente ligada ao imperialismo, ao mercado global e ao extrativismo, mas também desafie os hábitos e o cotidiano, tanto no Sul como no Norte global.

É claro que os movimentos sociais emancipatórios e as iniciativas de baixo e de auto-organização continuam sendo muito importantes. Mas também devemos ver como eles se traduzem em mais iniciativas e conflitos institucionais. Por exemplo, existe uma iniciativa de lei na Europa para que uma empresa que importa algo seja responsável pelas condições sociais e ecológicas do local do qual importou aquilo. Esse poderia ser um modo de contrabalançar o modo de vida imperial, se você quiser pensar assim.

Gabriela: Gostaria de acrescentar que existe um movimento internacionalista que tem grande probabilidade de se expandir e que é alimentado por uma ideologia ecossocial muito importante, que são os movimentos indígenas, as lutas indígenas pelo Bem Viver. Ele tem muitas possibilidades de se expandir transversalmente por todo o continente americano, porque a usurpação de territórios – seja para soja, seja para criação de carne, seja para mineração – é transversal da América do Norte à América do Sul. E algo semelhante acontece na África e na Índia. Existe aí a possibilidade de um novo internacionalismo, mas que tem menos acesso à política – se comparado ao Green New Deal e aos movimentos do Norte global que Uli mencionou – porque é uma classe social sem prestígio nem poder.

Bruno: Uma coisa que acho importante destacar, e que está presente no livro, é que os impérios não podem mais exteriorizar suas próprias tensões. Em outras palavras, devido às condições de aceleração da produção, competição imperial e escassez de recursos, as elites não podem mais deslocar as tensões que se geram em seus próprios territórios, dentro dos modos de vida imperiais. Parece-me que pode ser feito um contraponto em relação ao que Eric Hobsbawm chama de “era de ouro” do capitalismo. Foi o momento da massificação do pós-guerra, do Estado de Bem-Estar Social, um momento em que o modo de vida imperial é “universalizado” e o Norte global tem a capacidade de “exteriorizar” as suas tensões e de carregar o grande consumo e essa grande produtividade para grande parte do Sul global. Mas o livro indica muito bem que, nas condições atuais, essas tensões não deixarão de ser vividas dentro do próprio império. E, claro, eles também são vividos no Sul global.

Essas tensões e resistências no Norte global podem ser ilustradas com o caso de Detroit, que mostra o que se vivencia quando uma das mais importantes cidades industriais, ligada à indústria automotiva, entra em declínio definitivo nos Estados Unidos. Além disso, tensões e resistências que não param de viver. Por que? Porque a China decidiu entrar na maior indústria do mundo, que é a automotiva, por meio da eletromobilidade. E hoje produz 46% dos carros elétricos, tem mais inovações tecnológicas do que a Europa e os Estados Unidos e busca dominar esse mercado de forma decisiva. Essa situação, naturalmente, traz tensões muito fortes na própria Europa, que até agora dominou a indústria automotiva – essa indústria, por exemplo, na Alemanha, representa 15% da força de trabalho. De fato, em uma resposta tardia que busca alcançar a indústria de eletromobilidade, a Volkswagen anunciou agora que está montando uma fábrica de baterias de lítio na própria Alemanha. Acho que é um exemplo bastante gráfico da forma como essas tensões interimperiais estão sendo vividas devido à competição por padrões industriais de ponta.

Camila: Eu tenho uma visão um pouco diferente dos movimentos que vêm prontos, com logotipos, slogans, etc. Em particular, o que me preocupa nesses movimentos, ou melhor, marcas globais, é sua tendência de fazer alianças com atores empresariais, com o mundo corporativo (como as corporações do sistema B), para se apresentarem no Fórum de Davos (WEF), para ecoar toda essa nova onda de investimentos de impacto, governança ambiental e social (ESG). Nesse sentido, estou investigando a financeirização das identidades e como, ao invés de aumentar as lutas e demandas por mudanças estruturais no sistema, os movimentos incluem os valores das elites em suas agendas. A certa altura, isso é um assunto tabu, é proibido fazer críticas, como se esses movimentos estivessem acima do bem e do mal, como se fossem mais puros justamente porque têm causas globais – ou porque sua grande causa, talvez, seja a globalização em si. A cultura hoje é muito complexa devido à forma como as redes sociais são geridas para silenciar dissidências ou a provocação a pensar diferente. Mas me parece uma responsabilidade intelectual básica enfrentar esse tipo de coisa.

Para falar sobre o que está acontecendo no Brasil com o governo genocida de Bolsonaro: quando se tenciona muito a direita – que é uma direita alucinada, como é hoje no Brasil com o Bolsonaro – os extremos também se movem. Então, vemos povos indígenas na Amazônia fazendo alianças com empresas, bancos privados e grandes empresas de tecnologia. Sim, você tem que buscar alternativas, mas há novamente um curto-circuito com o que está acontecendo na compreensão dos processos. Por exemplo, projetos em bairros populares das favelas do Rio de Janeiro que, por meio de aplicativos para celulares, permitem a abertura ao mercado financeiro, para que empresas e pessoas do Norte possam “investir” no desenvolvimento das comunidades. Parece-me que este campo é areia movediça, como se tivessem esquecido o que é o mercado financeiro e a que interesses serve. E isso ocorre no marco do que disse antes: é um tempo em que os Estados estão muito frágeis, sob décadas de globalização e erosão das culturas e identidades nacionais e, em muitos casos, até mesmo em processo de dissolução de sua soberania e incorporação em novos impérios. Por isso, neste contexto, a luta popular nacional continua a ser fundamental.

Gerhard Dilger: Obviamente, há muitas coisas a comentar. Em princípio, quero dizer que a Fundação Rosa Luxemburgo gostou de poder contribuir para esta conversa e para esta edição em espanhol de Modo de vida imperial, o segundo livro de Ulrich Brand que promovemos juntamente com a Tinta Limón (a o anterior foi Pós-extrativismo e decrescimento, Uli escreveu junto com Alberto Acosta e referiu durante a conversa). Modo de vida imperial é um livro pensado a partir do Norte global, mas, como diz Uli, de uma perspectiva internacionalista. A grande importância desses livros é que facilitam o diálogo Norte-Sul e Sul-Norte, sobre o qual muito se fala, mas pouco se faz.

Uma coisa que achei interessante nessa conversa é a ideia do Bruno de que o desafio dos movimentos sociais, aqui e ali, é ter um impacto político. Quer dizer, fale com as pessoas. Fale com as pessoas na língua que elas entendem. É um pouco o que a esquerda alemã não está conseguindo. Temos uma crise do sistema político múltiplo, todos sabemos. E Die Linke, a esquerda na Alemanha, está com os 8 ou 10 por cento de sempre. Ou seja, o que falta para que a força dos movimentos se traduza em força política? Acho que tem a ver muitas vezes com a nossa linguagem, nossa falta de conexão com o que as pessoas na rua entendem, pensam e sentem.

Por fim, acho muito importante enfatizar o modo de vida solidário a que aspiram os autores. Talvez a pandemia que vivemos seja uma janela de oportunidade, nesse sentido, de múltiplas transformações com múltiplos atores. E a um ritmo mais rápido do que, talvez, imaginamos até agora. Porque a eclosão da pandemia evidenciou a crise global e seu poder disruptivo de muitas lógicas que havíamos naturalizado. Não sei se é para ser muito otimista, mas em algum momento acho que podemos avançar nesse caminho de uma vida boa para todos. Acho que agora, nos próximos anos, algo vai acontecer: esse é o meu otimismo de vontade.

Ulrich: Bem, não entramos muito no debate sobre alternativas, mas gostaria de fazer um breve comentário sobre a questão da renda universal. Acho que é uma boa proposta porque nos permite repensar a divisão social do trabalho: o que significa trabalho e como é financiado? Porque existe uma renda universal muito neoliberal. Por exemplo, o projeto de renda básica universal que foi tentado, e até certo ponto falhou, na Finlândia, envolveu o desmantelamento do Estado de Bem-estar Social. Foi dito: “Ok, você tem sua cota, você tem seu dinheiro”, mas à custa de desmantelar o Estado social que lhe garante que, diante de uma situação de crise em sua vida, há alguém a quem recorrer, algo que ainda em muitos países da Europa continua a funcionar.

A outra questão que não deve ser esquecida – e que é uma luta forte na Europa – é discutir o que significa trabalho assalariado. Dentro dos sindicatos existe um conceito denominado “bom trabalho”: em que condições você trabalha, com que renda, com que nível de segurança? Muitos dos que promovem a ideia de renda universal tendem a focar apenas nessa ideia, como se fosse o princípio fundamental a partir do qual a sociedade pode ser mudada. Mas eles se esquecem do que o Estado de bem-estar social significa e se esquecem do mundo do trabalho assalariado. Claro, isso deve estar ligado ao trabalho não assalariado, ao trabalho de cuidado, com a divisão social patriarcal e racista do trabalho.

Por fim, Bruno mencionou Walter Benjamin. Ele usou metáforas relacionadas à navegação para pensar sobre o campo epistêmico-conceitual. E disse que pensar e investigar, ao produzir conceitos, é dirigir bem a vela para poder captar os ventos da história. O decisivo, disse ele, não é tanto ter velas, mas saber colocá-las. Nesse mesmo sentido, nosso desejo é propor o conceito de modo de vida imperial como uma contribuição para melhor compreender o mundo e seus problemas, bem como as dinâmicas sociais e alternativas de emancipação. Esperamos, assim, que o livro que aqui apresentamos na sua edição em espanhol ajude a orientar as velas e nos permita navegar juntos.

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[1] Gabriela Massuh nasceu em Tucumán, estudou Letras na Universidade de Buenos Aires e fez doutorado em Filologia na Universidade de Erlangen-Nürnberg. É escritora, editora, tradutora, professora e ativa promotora cultural. Por mais de duas décadas dirigiu o departamento de cultura do Instituto Goethe de Buenos Aires e fundou a editora Mardulce. Entre seus livros publicados está o ensaio El robo de Buenos Aires, a trama de corrupção, ineficiência e negócios que a cidade tirou de seus habitantes (2014) e os romances La omisión (2012), Desmonte (2015), La intemperie (2018) e Degüello (2019).
[2] Bruno Fornillo é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e em Geopolítica pela Universidade de Paris 8; Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina e é membro do Instituto de Estudos da América Latina e do Caribe da Faculdade de Ciências Sociais da UBA. Ele publicou Sudamérica Futuro, China global, transição energética e pós-desenvolvimento (Clacso-El Colectivo, 2016) e coordenou a publicação de Lítio na América do Sul. Geopolítica, energia e territórios (Clacso-IEALC-El Colectivo, 2019).
[3] Camila Moreno estudou filosofia e direito; é doutora em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, está fazendo pesquisa de pós-doutorado (2019-2024) na Humboldt University, em Berlim. É autora de Brazil made in China (Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2015) e A métrica do carbono (Fundação Heinrich Böll, México, 2016). Ela acompanha as negociações internacionais sobre o clima desde 2008.
[4] Ulrich Brand & Markus Wissen, Modo de vida imperial: sobre a exploração do ser humano e a natureza do capitalismo global, São Paulo, Editora Elefante, 2021.
[5] Ulrich Brand e Alberto Acosta, Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista, São Paulo, Editora Elefante, 2018.

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