Narrativas do colapso em disputa — leia um trecho de ‘Transição ecossocial justa’
A Elefante está lançando Transição ecossocial justa: uma perspectiva do Sul Global. A autoria é de Maristella Svampa, que já tem outras publicações aqui na Elefante e inclusive escreve um dos textos de Colonialismo verde, e Enrique Viale. A página do livro em nosso site tem a descrição, o sumário e os detalhes sobre a dupla de autores. Segue abaixo a primeira parte do capítulo 3, chamado Bem Viver e Direitos da Natureza:
Nas ontologias relacionais, humanos e não humanos (o orgânico, o não orgânico e o sobrenatural ou espiritual) formam parte integral desses mundos em suas múltiplas inter-relações como seres sensíveis. Por essa razão, não são apenas os humanos (em especial os cientistas) que representam o não humano; uma política relacional atende a múltiplas vozes e dinâmicas que surgem da trama do humano e do não humano, sem reduzi-las às regras do humano.
— Arturo Escobar, “Territórios de diferença: a ontologia política dos ‘direitos ao território’” (2015 [2016])
Narrativas do colapso em disputa
O que é o colapso? Se conversássemos com pessoas do Leste Europeu, elas provavelmente diriam que conhecem o colapso, evocando a queda da União Soviética no final da década de 1980. O mundo social, político e cultural do comunismo vinha abaixo sem que estives-sem visíveis as bases da nova ordem capitalista neoliberal que emergia. No final de 2001, a Argentina vivenciou o colapso ao atravessar a pior crise econômica, política e social de sua história: em dez dias, cinco homens diferentesocuparam a cadeira presidencial. No compasso do neolibe-ralismo extremo, quase não havia moeda, os bancos tinham expropriado as poupanças privadas e o desemprego alcançava índices altíssimos. A Venezuela viveu o colapso ao longo de vários anos, depois da morte de Hugo Chávez e da passagem do governo para Nicolás Maduro. Não havia alimentos, os cortes de energia eram frequentes (em um país produtor de petróleo), a hiperinflação e o desabastecimento grassavam, em um cenário que beirava a guerra civil. A crise e o enfrentamento entre governo e oposição culminou no exílio de milhões de venezuelanos.
No entanto, o colapso do qual iremos falar aqui é de ordem sistêmica e planetária. Além do aquecimento global eda aceleração dos eventos climáticos extremos, com impactos visíveis e invisíveis, não é difícil imaginar o colapso ecológico associado à crise energética, em função do efeito cascata que acarretaria. A crise seria de tamanha gravidade que, muito possivelmente, poucos conseguiriam escapar da catástrofe, ainda que ela não deva ser concebida como algo imediato ou repentino, que vá acontecer de um dia para o outro. Essa catástrofe progressiva e gradual parece já estar acontecendo. Por isso, mais do que nunca, precisamos tomar decisões urgentes.
É possível identificar ao menos três respostas diferentes para o colapso: (i) a narrativa catastrofista ou distópica, (ii) a capitalista-tecnocrática e (iii) a relacional contra-hegemônica. Não há dúvidas de que não são as únicas, mas resumem bem o espírito da época. Enquanto as duas primeiras são dominantes, a terceira é dissidente.
A visão catastrofista coloca a distopia como nosso destino: o “pior dos mundos”, horizonte unívoco e inevitável. A combinação de dados científicos com o cinismo das elites globais, a voracidade dos super-ricos e a resposta ecocida dos países do Norte Global (que prioriza a segurança energética a qualquer custo) acabaram por gerar o sentimento avassalador de que o fim está próximo. A catástrofe só pode nos conduzir para mais capitalismo do caos, gerando processos vertiginosos de desglobalização autoritária, em um contexto de guerra, escassez e precarização das condições de vida diante da aceleração da crise climática. Essa resposta produz não apenas temor mas tam-bém passividade. É como se não houvesse possibilidade de intervir coletivamente e modificar o presente, restando apenas aguardar, resignados, o fim do mundo.
Não obstante, é necessário lembrar que o colapso é parte do Antropoceno. Uma coisa é afirmar a realidade do colapso em seus diferentes níveis, um caminho que pode levar algum tempo, dependendo das conjunturas (Fernández Durán, 2011). Outra é afirmar a distopia como único horizonte possível. Quem diz “colapso” também diz “transição”, já que o colapso pressupõe mudanças importantes no regime socioecológico. A diferença, porém, é que essas mudanças não são controladas. Assim, se é certo que o colapso produz medo e incerteza, o pior que pode acontecer é incorrermos na paralisia da imaginação e da ação política. É preciso reconhecer que o colapso é parte da nossa realidade, mas sem associá-lo à distopia. O colapso não implica o destroçamento de uma sociedade de um dia para o outro; acarreta mudança sem sentido negativo, mas também o reconhecimento de que estamos no limite, embora ainda em tempo de gerar mudanças importantes que produzam uma transformação do regime socioecológico.
Existe, ademais, uma narrativa capitalista tecnocrática, que aposta em sair da crise por meio de soluções técnicas, sem promover mudanças estruturais. É uma aposta em salvar o capitalismo pelas mãos da modernização ecológica, sem questionar o crescimento econômico, tampouco a própria tecnologia. Na atualidade, as propostas negociadas em fóruns internacionais — como a COP— têm como base a “economia verde” e são quase totalmente voltadas ao comércio de carbono. Além de não conter a crise climática, essas práticas representam séria ameaça para os camponeses e indígenas de todo o planeta. Trata-se de um modelo de modernização ecológica que aprofunda a mercantilização em nome de uma “economia limpa”.
A crise de 2008 foi um trampolim para os novos negócios: os países centrais começaram a estimular o modelo denominado “economia verde com inclusão”, que replica a formatação financeira do mercado de carbono para outros elementos da Natureza — como o ar e a água — e também para seus processos e funções (concebidos como “serviços ecossistêmicos”). No entanto, essa visão não questiona o crescimento indefinido da economia nem seus impactos socioambientais e sua relação com o modelo capitalista. A premissa geral sustenta que os mercados trabalharam tradicionalmente com “falhas de informação”, sem incorporar o custo das externalidades e com políticas públicas inadequadas, como os “subsídios perversos” para o meio ambiente. Nesse sentido, a economia verde exacerba o modelo de mercantilização da Natureza, pois considera que as funções dos ecossistemas podem ser tratadas como mercadorias e, portanto, deve-se cobrar por seus “serviços”. Os comuns são valorados em função da sua dimensão econômica.
O raciocínio implícito é que a proteção dos ecossistemas e da biodiversidade funciona melhor se a sua utilização custar dinheiro, ou seja, se os serviços do meio ambiente integrarem o sistema de preços. Assim, longe de questionar a relação entre desenvolvimento e crescimento econômico, essas políticas promovem incentivos de mercado para reorientar o capital na direção dos investimentos “verdes”, entre os quais estão alguns novos mecanismos de financiamento, como o programa para a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD+), cujo objetivo é “a redução das emissões provenientes do desmatamento e da degradação florestal, além da conservação, do manejo sustentável e do aumento dos estoques de carbono dos países em desenvolvimento”. A REDD+ faz parte das falsas soluções de mercado que permitem às nações e empresas poluidoras continuarem descumprindo os compromissos de redução de emissões de gases de efeito estufa, nquanto incentivam a privatização de territórios indígenas e camponeses no mundo inteiro. Esses mecanismos se converteram em uma espécie de “colonialismo florestal” e poderiam provocar “sitiamento das florestas” e “conflitos por recursos”, “marginalizar os sem-terra”, “erodira posse coletiva da terra”, “privar comunidades de suas aspirações legítimas de desenvolver suas terras” e “ameaçar os valores culturais de preservar sem objetivar lucros”, como alerta a Indigenous Environmental Network (IEN). Em resumo, o propósito é converter elementos e processos da Natureza em objetos de compra e venda, dando início a um período de privatização dos recursos e serviços ambientais que começa com as florestas e logo se expande para a água e para a biodiversidade. Será necessário, mais uma vez, impor modificações substanciais aos ordenamentos jurídicos nacionais para acompanhar a transição para uma economia verde no contexto do chamado “desenvolvimento sustentável”. Por exemplo, muitos comuns deverão ter seu status jurídico modificado para que se submetam à propriedade privada e, assim, ingressem nos mercados e se tornem novas fontes de financiamento. Os processos dos ecossistemas são mercantilizados como “serviços ambientais” e geram novos direitos patrimoniais, instrumentalizados em títulos de crédito ou de propriedade, para os quais será preciso criar novos mercados. Em suma, sob a denominação enganosa de “economia verde”, observamos um aprofundamento da mercantilização da Natureza, que trará consigo um agravamento brutal dos danos e das desigualdades produzidas pelo capitalismo. A apropriação de territórios de comunidades locais e indígenas por empresas transnacionais crescerá e potencializará os efeitos adversos do neoextrativismo. Não por acaso, diversas organizações e movimentos sociais rechaçaram a estratégia da “economia verde” — a qual rebatizaram de“capitalismo verde” — por considerarem que, longe de representar uma mudança positiva, ela intensifica a mercantilização da Natureza.
Por outro lado, diante da credibilidade cada vez mais escassa dos acordos globais que pretendem controlar as emissões de CO2, o capitalismo prepara um plano B para reciclar seu projeto de modernidade: a geoengenharia, alicerçada no princípio de que é possível superar os riscos do aquecimento global empreendendo uma intervenção deliberada e em escala planetária no clima. Essa via gera expectativas entre aqueles que procuram manter os padrões atuais de desenvolvimento — o sistema de produção, circulação e consumo de mercadorias — sem reduzir as emissões de CO2. Alguns dos seus fomentadores estão ligados à indústria dos combustíveis fósseis, além de endossarem a visão dominante acerca do progresso e do conhecimento científico. O grande problema é que a hipótese da geoengenharia começou a sair do âmbito da ficção científica para entrar na agenda pró-establishment como um projeto de continuidade do capitalismo e de seus padrões de vida para as elites mundiais.
Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil












