A maior parte do eleitorado dos Estados Unidos apoia o Vidas Negras Importam, indicam pesquisas de opinião no país. Em contrapartida, poucos são favoráveis a uma das pautas mais contundentes do movimento: o corte no orçamento da polícia, expressa pela hashtag #DefundPolice [DesfinancieAPolícia].
O que explica essa aparente contradição do pensamento do eleitorado estadunidense? Ao desvelar o modus operandi da ideologia do “sonho americano” — o mito de uma sociedade sem racismo e sem luta de classes, onde qualquer um pode progredir pelo trabalho —, o próximo lançamento da Editora Elefante, #VidasNegrasImportam e libertação negra, de Keeanga-Yamahtta Taylor, nos ajuda a compreender a resposta a essa questão.
Ao longo de sete capítulos, a autora demonstra como o discurso em vigor depois que a segregação racial foi finalmente abolida no país, nos anos 1960, forjou a imagem de uma sociedade pós-racial, cujas oportunidades e benesses seriam igualmente distribuídas entre negros e brancos. De modo que todo e qualquer fracasso seria única e exclusivamente responsabilidade do indivíduo — independente de sua cor, é claro.
Nesse sentido, nos idos dos anos 1970, o presidente Richard Nixon podia, sem risco de levar a pecha de racista, declarar que a maior tragédia das grandes cidades era “causada por pessoas problemáticas” — em outras palavras, negros pobres com pouco ou nenhum acesso a emprego, moradia, escola e saúde decentes. A manobra se demonstrava frutífera, pois legitimava o corte em investimentos sociais, que passavam assim a ser interpretados como desperdício do dinheiro do contribuinte.
Quase quarenta anos depois, Barack Obama assumiria o poder como primeiro presidente negro do país, apenas para confirmar em seus discursos a imagem negativa da população negra, conforme demonstra Taylor. Afinal, era mais conveniente relacionar os altos índices de criminalidade ao “descaso de pais negros que não leem para seus filhos” do que problematizar a redução de gastos públicos com educação.
Ainda assim, estudada a cartilha das injustiças do período segregacionista, eleitores estadunidenses que simpatizam com o Vidas Negras Importam acreditam sinceramente na igualdade de direitos entre negros e brancos. Não obstante, estão ao mesmo tempo profundamente embebidos na ideologia de que a marginalização da população negra decorre de sua própria incapacidade de galgar o “sonho americano” — que, para os negros, de acordo com Malcolm X, é o “pesadelo americano”.
“O policiamento é o último serviço do setor público que nosso governo financia fortemente”, denuncia Taylor. Somente a cidade de Chicago gastou mais de oitocentos milhões de dólares nos últimos dezesseis anos para liquidar ações judiciais referentes à violência policial. Com consequências trágicas, não se projeta uma sociedade em que a população negra pobre tenha acesso à moradia, alimentação, sistema de saúde e educação de qualidade, que lhe possibilite um futuro não marginalizado.
Grupos privilegiados e camadas menos vulneráveis da população, assolados pelo medo, exigem medidas com efeitos perceptíveis e imediatos. Não à toa, o presidente Donald Trump, candidato à reeleição pelo Partido Republicano, tem apelado ao lema “lei e ordem”, acenando aos anseios punitivistas do eleitorado. Mas que, como uma faca de dois gumes, fundamenta a violência contra ativistas — perpetrada inclusive por civis, como os membros do grupo Proud Boys [Garotos orgulhosos].
O que os membros do Partido Democrata perceberam agora é que, para o cidadão comum, não há contradição entre ser favorável à causa da vida da população negra e contrário à estratégia de sua efetivação proposta pelo Vidas Negras Importam. E Taylor é incisiva na análise desse processo: enquanto o movimento busca ampliar o debate sobre as causas da violência estatal, “grande parte da discussão institucional sobre a reforma da polícia continua centrada no indivíduo policial: laranjas podres, predisposição implícita, melhor treinamento”.
#VidasNegrasImportam e libertação negra propõe o desafio urgente de repensarmos a legitimidade de uma sociedade que precisa da polícia para administrar a repartição terrivelmente desigual de bens essenciais à vida de seus membros.
Enquanto isso, o candidato democrata Joe Biden pode tranquilamente anunciar que “vidas negras importam” enquanto condena o corte do financiamento à polícia, arriscando, no máximo, o boicote às urnas da parcela mais radical do eleitorado negro — parcela que, definitivamente, não faria pender a balança para o lado contrário votando em Donald Trump.