Os ataques a Paulo Freire e a urgência de esperançar

Na semana passada veio a público a decisão do governo de São Paulo, sob o comando de Tarcísio de Freitas, de alterar o nome de uma futura estação da linha verde do metrô da capital paulista: no lugar de Paulo Freire, que estava previsto no projeto — a estação será construída na rua que leva o nome do educador — o governo optou por batizá-la de Fernão Dias, em homenagem ao famigerado bandeirante.

Não é de hoje que o nome de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, funciona como uma linha divisória entre a civilização e a barbárie em nosso país. Ao tomar essa decisão, o governador expressa de que lado está — o que, obviamente, não nos surpreende.

Paulo Freire é um nome a ser lembrado, celebrado e defendido diariamente. Em tempos de barbárie, nos cabe “esperançar”, como propõe o livro que reflete sobre sua vida e obra e que será lançado no próximo sábado, 25 de março: Paulo Freire e a educação popular: esperançar em tempos de barbárie. O evento ocorrerá na Taperá Taperá, em São Paulo, com a presença das organizadoras Joana Salém Vasconcelos, Maíra Tavares Mendes e Daniela Mussi, que integram a Rede Emancipa de Educação Popular. 

“Quando Paulo Freire transforma a palavra esperança no verbo esperançar, ele dá uma dimensão da luta política que está contida em seu projeto educacional, que é estar em constante movimento, se alimentar de uma realidade crítica para seguir na luta e ampliar, inclusive, as metodologias e as possibilidades de luta social e política”, diz Joana Salém Vasconcelos, coordenadora da Universidade Emancipa, em entrevista à Elefante.

O livro é baseado no curso 100 Anos de Paulo Freire: Esperançar em Tempos de Barbárie, realizado entre agosto e outubro de 2021 pela Universidade Emancipa (movimento social que compõe a Rede Emancipa), em parceria de extensão com a Universidade Federal do ABC. Os 65 autores são pesquisadores, ativistas e educadores populares com participação ativa na construção e realização desse evento. 

Professora de história contemporânea na Faculdade Cásper Líbero e coordenadora editorial da revista Latin American Perspectives, nos Estados Unidos, Joana considera que a educação popular defendida por Paulo Freire é uma estratégia para combater o bolsonarismo (ainda muito presente na sociedade brasileira) e ressalta que a publicação do livro faz parte de um processo de engrandecimento do educador, cuja obra se popularizou em meio aos ataques do ex-presidente e de seus seguidores. 

“Nesse último período, quanto mais o bolsonarismo batia no Paulo Freire, houve um efeito colateral. Porque mais gente queria saber, afinal: por que esse Paulo Freire é importante? O que disse Paulo Freire? Teve recorde de vendas do livro Pedagogia do oprimido. Quanto mais bateram, mais ele cresceu, se tornou atual e necessário. O nosso livro é parte desse processo, desse engrandecimento da consciência brasileira sobre a importância do Paulo Freire.”

 

Leia a entrevista completa:

 

Elefante: Qual a importância desse lançamento, que reflete o  acúmulo das discussões realizadas por ocasião do centenário de Paulo Freire?

 

Joana Salém Vasconcelos: A educação no Brasil é um dos pontos mais sensíveis da exclusão social e também da desigualdade e Paulo Freire é o principal nome da nossa história, do pensamento educacional e da luta política, que apresentou uma proposta filosófica e também uma metodologia para enfrentar a exclusão educacional e as desigualdades na educação, tanto na educação formal quanto fora das escolas. Esse livro representa um esforço coletivo de identificar o projeto do Paulo Freire para o que ele chamou de educação popular. A partir da trajetória da vida dele, mas também a partir de como a educação popular freiriana é praticada no Brasil atualmente. É um livro que retoma e analisa, com documentos inéditos e pesquisa original, a trajetória da vida do Paulo Freire, e também traz relatos de experiências de educação popular em diferentes territórios do Brasil. Inicialmente houve uma proposta de que o curso se transformasse em livro, que os educadores e professores escrevessem sobre o tema das suas aulas. O livro acabou crescendo em relação ao curso, porque a própria Rede Emancipa é um movimento muito diverso que existe no Brasil inteiro, com muitos relatos de experiências variadas de educação popular atualmente. Então, qual é o papel da educação popular freiriana hoje no Brasil? O livro discute algumas das possibilidades da educação popular na atualidade como uma estratégia de luta política pela democratização do acesso ao conhecimento, mas também pela valorização dos saberes populares como saberes válidos, que devem ser parte da nossa cultura, devem ser considerados como de valor inestimável pro nosso patrimônio cultural. O livro aborda tudo isso: o legado do Paulo Freire, a sua história, sua trajetória e também as práticas freirianas que existem hoje no Brasil, a partir desse recorte que é a educação popular. 

 

Essa semana o nome do educador foi mais uma vez alvo de um ataque bolsonarista, desta vez por parte do governador de São Paulo. Paulo Freire se tornou um divisor de águas no nosso país entre a civilização e a barbárie e o livro propõe, já no título, o “esperançar em tempos de barbárie”. O que representa esse “esperançar”? 

 

O período do bolsonarismo foi um período muito sombrio da nossa história, que ainda não está superado, porque o bolsonarismo é um fenômeno social, não só político. Não basta ganhar as eleições para que o bolsonarismo se recolha, inclusive porque o bolsonarismo está super vivo e cheio de poder no Congresso. Então, a educação popular é uma estratégia de combate ao bolsonarismo também. Nesse último período, quanto mais o bolsonarismo batia no Paulo Freire, teve um efeito colateral, porque mais gente queria saber, afinal, por que esse Paulo Freire é importante? O que disse Paulo Freire? Teve recorde de vendas do livro Pedagogia do Oprimido. Quanto mais bateram, mais ele cresceu, se tornou atual e necessário. O nosso livro é parte desse processo, desse engrandecimento da consciência brasileira sobre a importância do Paulo Freire. É um autor que nos permite ler o Brasil, entender melhor o Brasil e atuar.  Ele era justamente um crítico do fatalismo, acreditava que era preciso ter um pensamento crítico, mas que a crítica da realidade nunca podia se transformar em imobilismo ou em paralisia perante a dificuldade ou em desespero, que vem de desesperança, porque isso gera um comportamento fatalista. Quando ele transforma a palavra esperança no verbo esperançar, isso é um neologismo dele, ele dá uma dimensão da luta política que está contida no projeto educacional que ele defende, na visão pedagógica dele, que é estar em constante movimento, se alimentar de uma realidade crítica para seguir na luta e ampliar, inclusive, as metodologias e as possibilidades de luta social política. Paulo Freire apresenta uma formulação para a militância, que é como e onde militar, ele oferece alternativa para as pessoas que estão incomodadas com a situação. Durante o bolsonarismo, por exemplo, isso vira um estado de angústia.

Ainda há muito chão pela frente para a gente derrotar esse fenômeno do autoritarismo, da misoginia, da lgbtfobia, do racismo e por aí vai. Então o Paulo Freire, o seu legado, oferece uma possibilidade de ação prática para as pessoas que querem atuar no mundo e não ficar assistindo a situação do Brasil se desmontar. Se teve outro efeito colateral do bolsonarismo, é que muito mais gente se politizou de maneira intensa e resolveu colocar a mão na massa de alguma forma: atuar comunitariamente, participar da esfera pública e se organizar em movimento social, em coletivo, se associar em sindicato. E isso não pode se perder. Isso não pode se perder agora. Acho que o Paulo Freire oferece muitas alternativas de reflexão e ação, e de esperançar em tempos de barbárie, por isso nosso título tem essa síntese.  

 

O livro é organizado coletivamente por integrantes da Rede Emancipa e traz textos de 65 autores diferentes, como se deu essa costura?

 

A gente teve 23 mil pessoas inscritas nesse curso, somadas à visualização de todas as aulas, são quase 200 mil visualizações. Então foi um curso realmente massivo, e além das oito aulas principais, a gente fez muitas atividades complementares, cerca de 40 atividades complementares que foram eventos descentralizados, todos online, tocados por diferentes proponentes, tanto conversas abertas da universidade Emancipa, que é um projeto dentro da rede Emancipa, quanto proponentes de atividades externas, pessoas que se inscreveram para propor oficina, propor rodas de conversa. Foi uma diversidade gigante de debates no entorno dessas oito aulas principais. O nosso convite foi inicialmente pros professores das oito aulas principais e depois a gente percebeu que o livro poderia ser ainda mais rico se a gente incluísse também os proponentes de atividades complementares e até os participantes e convidados dessas atividades e a gente também convidou essas pessoas. 

 

O livro traz experiências da Rede Emancipa de diferentes regiões do país, de que forma essa atuação atualiza o pensamento freireano?

 

O que o Paulo Freire mais sugeria era que a realidade social guiasse os processos pedagógicos educacionais. Então, cada realidade territorial local, social, econômica e política permite uma atuação específica no campo da educação popular, sem com isso perder de vista o projeto mais estratégico de uma construção de um país menos desigual ou de um país igualitário, com o que a população ou o povo brasileiro tenha não só acesso ao conhecimento, mas tenha o seu próprio conhecimento valorizado e seja reconhecido como sujeito da sua própria história. Porque o grande lance do pensamento do Paulo Freire era identificar como que o capitalismo objetifica as pessoas, transforma as pessoas em funcionários, para funcionar no sistema, e como que é importante, no processo educacional, subjetificar as pessoas ou reconhecer os sujeitos históricos populares. Esse reconhecimento dos sujeitos é um processo muito profundo que é muito transformador e que dá origem ao empoderamento. Então a gente está o tempo inteiro falando sobre redes populares em luta, cultura popular, empoderamento e poder popular. 

A educação popular, para nós da Rede Emancipa, é uma estratégia de luta no sentido de que é uma forma de luta que nos leva a outra sociedade, a outro modelo de sociedade. Porque as hierarquias que são geradas pelo capitalismo brasileiro são hierarquias de extremo autoritarismo. E a educação é um lócus dessas hierarquias de poder. Não por acaso, a Lei de Cotas, pela qual a Rede Emancipa lutou, tanto a social como a racial, gerou tantas transformações, tantos efeitos propositivos e positivos na nossa sociedade, porque desestabilizou hierarquias e isso é profundamente freireano, desestabilizar hierarquias convencionais tradicionais de longa duração do nosso capitalismo. Tanto as hierarquias de classe como as hierarquias de raça, de gênero, etc. Então, eu acredito que a educação popular é uma estratégia importante e que nós não podemos nos ludibriar com a derrota eleitoral do bolsonarismo. A educação popular segue sendo uma atividade fundamental, constante, que precisa ser ampliada, porque ela está muito aquém do necessário e precisa ser uma ferramenta permanente de luta dos povos e de luta do povo brasileiro para combater nas bases sociais esses fenômenos do autoritarismo e da misoginia, da violência masculina, da lgbtfobia, do racismo e da violência de classe. Tudo isso são fenômenos permanentes da nossa sociedade e nosso livro é uma colaboração no sentido de pensar a educação popular e oferecer educação popular como alternativa de luta.

 

O livro também traz contribuições de fora do Brasil, por exemplo do  Chile, onde a educação tem sido uma bandeira defendida nas ruas, movimento que levou ao debate sobre uma nova Constituinte no país.

 

O livro tem autores do Chile, autores do México, autores dos Estados Unidos. Tem dois brasileiros que escreveram a partir do trabalho que realizam na Inglaterra. O Paulo Freire convoca a América Latina, tem uma trajetória e uma identidade latino americana muito profunda. E a América Latina, a comunidade de educadores, de lutadores sociais se referencia no Paulo Freire. Por isso, recompor a história, estudar essa história, analisar as origens do livro Pedagogia do Oprimido, é um esforço dos movimentos sociais latino americanos. Por isso a gente tem alguns capítulos que estão fora do país, de aliados que participaram do nosso processo do centenário.

A principal contribuição chilena é do Jacques Chonchol, que foi um grande amigo do Paulo Freire e participou do nosso curso. Além de um grande amigo, ele é responsável por ter colocado o Paulo Freire para trabalhar num determinado órgão da reforma agrária chilena. Além disso, quando o Paulo Freire sai do Chile e vai para os Estados Unidos, logo em seguida, quando o Allende é eleito, o Jacques se transforma em ministro da Agricultura do Chile. Tem uma série de propostas que o Paulo Freire plantou no Chile, que foram sendo realizadas de maneira muito descentralizada, coletiva. Tem vários movimentos de educação, fora os estudantes secundaristas, que estão sempre lutando contra a educação neoliberal, que é o ápice do individualismo na educação, ou da educação empresarial. Além desse movimento, tem também um movimento de educação popular que se referencia de alguma forma no Paulo Freire. Mas a contribuição chilena mais importante no livro é a do Jacques, propriamente dita, que recompõe um pouco a história e a relação do Paulo Freire no Chile naquele período do exílio.

 

No mundo todo, quem estuda o tema da educação trava contato com a obra do Paulo Freire, inclusive a bell hooks, autora estadunidense publicada pela Elefante, tem diálogos com ele no tema da educação…

 

Sim, completamente. Inclusive a gente teve uma oficina nosso curso que era sobre Paulo Freire no mundo anglófono. A recepção das ideias do Freire em alguns países de língua inglesa. Também tivemos oficinas com companheiros mexicanos que fizeram todo um trabalho de educação popular e de reflexão freiriana no contexto deles, da pedagogia mexicana. Foi um processo bem internacional e poderia ter sido muito mais. A gente só conseguiu fazer esse processo porque nós somos do movimento social, então a gente mobiliza as pessoas a partir da convicção militante. Se tivesse tido apoio financeiro, com certeza a gente teria internacionalizado mais ainda o curso, porque o horizonte freireano realmente é mundial. Não à toa Paulo Freire continua sendo o autor brasileiro mais traduzido, mais presente nos currículos de ensino superior do mundo. É o primeiro autor brasileiro que aparece nos rankings de autores com A Pedagogia do Oprimido principalmente, e a gente tem mais é que se orgulhar disso, e também estudar isso, entender os motivos e aproveitar esse legado como um patrimônio nosso para a gente fazer as lutas do nosso tempo.  

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