Por Mariléa de Almeida
Publicado em Medium
“Cristina, o Uber tá chegando”, avisa Marta, sem desgrudar os olhos da televisão. Na sequência, emenda: “Os pretos dos Estados Unidos são demais!” Sem tecer comentário sobre as imagens da tv, Cristina, dirigindo-se à porta de saída, informa: “Coloquei as marmitas do final de semana no congelador. Até segunda, Dona Marta.” No elevador, Cristina sente um aperto no peito. O joelho que sufoca o pescoço até a morte. O policial branco com as mãos no bolso. O rapaz negro no chão sem poder respirar. “Tem que colocar fogo em tudo mesmo!”, Cristina diz para si mesma.
O Uber chega. A viagem é longa e silenciosa. A cabeça de Cristina não descansa. Medo e raiva se alternam como companheiros de viagem. O temor vem pela lembrança do filho Joaquim, naquele momento, deve estar fazendo entrega para o iFood pela cidade. O coração de Cristina acelera. Moto sem manutenção. Avanço da pandemia.
No sinal vermelho, a raiva compartilha o percurso. Bastou Cristina se lembrar do entusiasmo de Marta com os pretos dos Estados Unidos. “Ela elogia porque o ódio deles está longe dela.”, pensa em voz alta. Daí, Cristina rememora que Marta não demonstrou nenhuma paciência para ouvir o reclamo de Pedro, o porteiro, enquanto o moço relatava a abordagem policial que havia recebido quando se deslocava para o trabalho.
Na ocasião, Marta estava ansiosa para perguntar se o pacote da Amazon chegara na portaria do prédio. Cristina recorda com nitidez que Marta permaneceu silenciosa quando Marlene, a manicure, alterou o tom da voz para contar sobre o dia em que foi perseguida pelo segurança dentro do supermercado. Naquele dia, quando chegou a casa, Marta confessou a Cristina que estava com medo que a manicure, movida pela emoção, tirasse bife de sua cutícula.
Cristina recupera, com riqueza de detalhes, quando Marta não conseguiu dissimular condescendência com Vanusa, a moça do caixa do supermercado, que, revoltada, gritou contra a humilhação que estava sofrendo de um cliente. Naquele momento, Marta, atrasada para aula de Pilates, só queria passar rapidinho pelo caixa.
Na lombada, o carro freia, e Cristina sussurra: “Os pretos daqui estão com muita raiva”. Ela mesma tem um ódio que não cessa. De todas a aversões, a que mais odeia é ser tratada como um bicho de estimação. “Não vivo sem a Tina”; “Tina faz a melhor quiche da cidade”; “Tina me conhece mais que meu analista”. Nessas ocasiões, Cristina tem vontade de gritar: Meu nome é Cristina Pereira da Silva, e seu corpo se transforma em pólvora, prestes a explodir. Um tipo de revolta aquecida pelo fogo da sobrevivência.
O Uber se aproxima de sua casa. Os pensamentos de Cristina não desaceleram. Ela se pergunta como Marta agiria se Joaquim fosse assassinado pela polícia ou morresse durante a entrega de comida. Cristina, que conhece a patroa melhor que Freud, visualiza: ao receber a notícia, Marta franze a testa, gesto que costuma fazer quando recebe notícia ruim, diz uma palavra de consolo e oferece ajuda financeira com os preparativos do velório. Em poucos dias, após a morte de Joaquim, Marta segue com sua vida facilitada pelos aplicativos.
O carro chega à porta da casa de Cristina. Antes de sair, ela ajeita as sacolas e diz para o motorista: “Espera um pouquinho que a raiva vai descer comigo.”
Mariléa de Almeida é professora e pesquisadora, doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre a realidade e a ficção, pretende refletir sobre afeto e política no cotidiano.