Pappe: ‘Temo que a política [de genocídio] chegue à Cisjordânia’

Em passagem pelo Brasil para participar de eventos em Paraty e São Paulo, Ilan Pappe, de Brevíssima história do conflito Israel-Palestina e A maior prisão do mundo, realizou uma série de conversas com jornalistas — além de ser alvo do lobby sionista que tentou impedir ou cancelar suas falas públicas. Dentre as entrevistas nos dias de Flip, ele conversou com Danilo Thomaz, que publicou reportagem no site português Shifter. Segue o texto abaixo. [Aqui, uma seção com esses conteúdos sobre Pappe em nosso site.]


Por Danilo Thomaz
Publicado em Shifter

O historiador Ilan Pappé (Haifa, 1954) nasceu e cresceu como qualquer outro garoto de Israel. Filho de um casal de judeus alemães que imigraram para a Palestina na Segunda Guerra e tiveram certa dificuldade em integrar-se naquela realidade, inclusive em aprender o hebreu, Pappé conta ter crescido “numa sociedade muito doutrinária” e “fechada a outros pontos de vista”. Na juventude, como qualquer cidadão israelita, serviu nas Forças de Defesa de Israel (Israeli Defense Forces, IDF, na sigla em inglês) e o seu destino não seria distinto da maior parte dos cidadãos do seu país de origem, não fosse o seu interesse por história.

“Desde criança eu tinha muito interesse em história. Era o único assunto que me interessava”, conta o historiador, em entrevista concedida ao Shifter na Pousada Literária de Paraty. A cidade histórica, localizada na área da Costa Verde do estado do Rio de Janeiro, recebeu, entre 30 de julho e 3 de agosto, a 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Pappé, autor de livros fundamentais sobre a questão Israel-Palestina como A limpeza étnica na Palestina, editado em Portugal pela KKYM, foi um dos principais convidados da atual edição.

O que ele não esperava era encontrar, nos arquivos israelitas, uma versão diferente da narrativa oficial do Estado de Israel — que é baseada na ideia de que o Estado judeu foi criado como uma forma de justiça histórica para a população expulsa daquele território há mais de 2 mil anos e que esse Estado precisa de se defender de nações e povos inimigos que querem assassinar sua população, repetindo a tragédia do Holocausto judeu na Europa.

“Pesquisando nos arquivos de Israel, deparei-me com mais e mais contradições a essa narrativa”, explica-nos. “Ouvia falar em democracia, direitos humanos, direitos civis, mas estavam restritos à população israelense.”

O ponto de viragem deu-se quando se mudou para a Inglaterra para fazer o seu doutoramento. “De fora, você vê as coisas sob outra perspectiva.” Estrangeiro numa sociedade bastante racista, onde “até os irlandeses são vítimas de racismo”, pôde, pela primeira vez, estar frente a frente com palestinos. “Em Israel, você dificilmente convive com palestinos. Ali os vi de igual para igual.” Nessa altura, a sua visão sobre Israel era bastante distinta da história oficial aprendida na escola. E para se forçar a enxergar de um jeito diferente, Pappé escolheu inclusive “um orientador árabe” para seu doutoramento.

O resultado dessa mudança de visão está numa série de livros que trazem outra perspectiva histórica para o Estado de Israel e o sionismo. Entre eles,  além do já mencionado A limpeza étnica na Palestina, estão Dez mitos sobre IsraelBrevíssima história do conflito Israel-Palestina e A maior prisão do mundo: uma história dos territórios ocupados por Israel na Palestina [esses dois últimos, lançados aqui pela Elefante]. Mas esse confronto à narrativa oficial de seu Estado custou-lhe caro.

“Não fui expulso de Israel, mas fui expulso da academia”, conta o historiador, que deixou o país nos anos 2000 e hoje é professor de história na Universidade de Exeter, no Reino Unido.

A limpeza étnica na Palestina

Nos seus livros, Pappé situa o movimento sionista como uma ideologia nascida na Europa, e que conta com duas vertentes. A primeira, de origem cristã-calvinista, defendia a ideia de um Estado judeu na Palestina. Como forma de resolver a questão do antissemitismo na Europa e na Rússia, numa época em que o preconceito e a perseguição aos judeus era forte no Velho Mundo, e também para acelerar a história conforme a narrativa cristã. Ou seja, defendendo que o regresso dos judeus para a Palestina aceleraria o tempo histórico, conforme o cristianismo, trazendo de volta o Messias.

Já o sionismo judeu tem origem no século XIX, como parte do movimento de ascensão dos Estados nacionais na Europa e no continente americano. Terá sido entre antigas colónias que se tornavam independentes, como o Brasil, e principados e pequenas repúblicas que se reestruturaram em grandes Estados, como a Alemanha e a Itália, que nasceu a ideia de um Estado judeu. O marco fundamental, do ponto de vista histórico-teórico, é o texto “O Estado Judeu”, de Theodore Herlz.

Movidos por essa ideia, os primeiros judeus de origem europeia-asquenazi começaram a imigrar para o território palestino em 1882. Com apoio do Império Britânico, os sionistas deram início à sua expansão por aquele território — que até a Primeira Guerra Mundial pertencia ao Império Turco-Otomano. O apoio ao sionismo era também visto pelos britânicos como uma forma de fazerem valer seus interesses geopolíticos e económicos na região.

Na década de 1930, por altura dos conflitos que levariam à Segunda Guerra Mundial, a situação dos palestinos já era bastante desvantajosa. O sionismo já contava com lobby internacional, estrutura militar e recursos financeiros frente aos quais era quase impossível aos palestinos travar uma luta entre forças equivalentes.

O conflito não impediu, porém, que a maioria palestina recebesse judeus expulsos da Europa como refugiados. “Esses judeus não eram sionistas. Eles não tinham para onde ir”, afirma Pappé, que inclui os seus pais neste grupo.

Em 1948, após a Segunda Guerra, houve a grande reversão da história na região, com a criação do Estado de Israel na Conferência das Nações Unidas que teve o Brasil como país responsável pela abertura. “Três coisas foram criadas naquele ano: Israel, o apartheid sul-africano e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E isso não é coincidência.”

A diferença entre o sionismo e o apartheid da África do Sul, afirma Pappé, é que “os palestinos que vivem em Israel vivem melhor do que as populações negras que viviam na África do Sul. Mas os palestinos que vivem na Faixa de Gaza e na Cisjordânia vivem pior”.

Naquele ano, David Ben-Gurion tornou-se primeiro-ministro do país recém-criado. Em 15 de maio de 1948, um dia após a criação oficial de Israel, houve também a primeira grande expulsão em massa de palestinos dos territórios que, hoje, compõem a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, além de Jerusalém. O evento é conhecido pelos palestinos como Nakba (Catástrofe). Ben-Gurion pertencia ao Partido Trabalhista, o que neste caso não quer dizer muita coisa: “No fundamental, a esquerda e a direita nacionalista são iguais. A diferença é que a esquerda aceita que os palestinos vivam em parte do território, como em Gaza. A direita nacionalista não.”

Pappé define os eventos que tiveram início em 1948 como uma “limpeza étnica” dos territórios da Palestina por Israel. A diferença, explica, entre uma limpeza étnica e o genocídio está no facto de que a primeira não demanda necessariamente “um extermínio em massa das pessoas”. “Pode ser feita com o deslocamento forçado das pessoas”. O extermínio em massa, que caracteriza um genocídio, é o estágio seguinte, “quando a expulsão já não funciona” — e aquilo a que assistimos hoje. Para Pappé, o que acontece atualmente na Faixa de Gaza é um genocídio e ainda pode piorar. “Tenho medo que os países considerem que a guerra acabou e essa política comece a ser adotada na Cisjordânia”, afirma. Outro risco que aponta, é que, diante da pressão internacional, o atual genocídio em Gaza seja interrompido e “Israel continue a limpeza étnica, num grau menor” e que os países deem pouca atenção a isso por comparação.

Há vários dados  que sustentam esta preocupação. De acordo com um estudo publicado na base de dados Universidade Harvard, o número estimado de palestinos mortos e desaparecidos desde 7 de outubro de 2023 é de 377 mil pessoas. Esse número equivale a cerca de 18,5% da população palestina na Faixa de Gaza. Um dado recente do Ministério da Saúde de Gaza aponta 60 mil mortos, 147 deles em decorrência da fome. E um estudo publicado na revista inglesa The Lancet apontava, em janeiro, mais de 64 mil mortos. 59% das vítimas eram mulheres, idosos e crianças.

Vácuo de lideranças

O apoio à causa palestina vem crescendo em todo o mundo, como se tem observado pela quantidade de protestos em todos os países. Há, no entanto, um visível descolamento entre a opinião pública dos países e as suas respectivas lideranças políticas. Não apenas no ocidente. Embora setores de esquerda em países como o Brasil defendam a ideia de um admirável mundo novo liderado pelo chamado Sul Global, o que vemos na prática, em relação à China, Rússia e Brasil diante do que acontece na Palestina não augura uma mudança.

“A China só está preocupada com a economia. Os chineses preferem a paz porque a paz é boa para a economia, o que é positivo, mas não há uma mudança política”, afirma.

Outro ponto que preocupa o historiador é em relação à falta de liderança política dos palestinos. A Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, pela sua associação com o sionismo, perdeu parte de sua liderança. O Hamas, por sua vez, embora permaneça como uma liderança em Gaza, não conta com o mesmo apoio e a popularidade de antes, conforme depoimentos de palestinos que vivem em Gaza. Além disso, o partido teve parte de suas lideranças políticas assassinadas por Israel. Entre eles, Ismail Haniyeh e Yahya Sinwar, comandante do Hamas e mentor do atentado que fez cerca de 1.200 mortos em outubro de 2023.

“Os palestinos têm dificuldade de se organizar politicamente, eles consideram as organizações políticas corruptas e burocráticas. Mas é preciso organizar. Não basta escrever livros e fazer palestras”, afirma.

Ao contrário de figuras como o escritor Amós Oz, que também já esteve na Flip e defendia uma solução de dois Estados, Pappé é partidário da criação de um Estado multiétnico, denominado Palestina, no qual convivam palestinos, árabes, judeus de diferentes origens e cristãos. Como, aliás, acontecia antes do Estado de Israel. O historiador também discorda da visão de Oz, para quem o conflito era decorrente do fanatismo de grupos palestinos e israelenses.

“O seu grupo político [de Amós Oz, ligado à esquerda israelense] participou da limpeza étnica. Os fanáticos não são a causa, mas a consequência desse conflito. Uma solução de dois Estados não é uma solução. É um mantra”, afirma o historiador, que considerou desapontador o documento final da Cúpula dos Brics, que defendeu essa mesma saída. E que Pappe foi peremptório a rotular: “Nós estamos falando de colonialismo no século XXI.”

Para si, a solução de dois Estados tampouco resolve um problema que está na origem de todos os males da região: a ideia de que um Estado étnico, depende de uma limpeza étnica, e de um genocídio, para continuar a existir e se expandir.

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