Para reencantar a política

Por Julián Fuks
Orelha de Políticas do encanto

 

Não podemos aceitar o inaceitável, tolerar o intolerável, mas nosso tempo nos convoca a tentar compreender o incompreensível. Políticas do encanto, de Paolo Demuru, é uma imensa contribuição a esse esforço, trazendo à tona aquilo que subjaz ao horror cotidiano, revelando as entranhas do obscurantismo. Valendo-se de uma análise discursiva sempre arguta, atenta às sinuosidades da construção de sentidos, investiga com precisão os mecanismos comunicativos da extrema direita — não para desprezá-la, a partir de uma posição superior, com toda presunção, mas para compreendê-la com humildade até o limite.

Em todos os aspectos, trata-se de uma obra corajosa e inteligente, que devassa numa centena de páginas um fenômeno vasto, transnacional, mas que também observa os meandros da história de um país, deste Brasil convulsivo em que nos coube viver na última década. Desde o princípio, Demuru sabe e revela que não está se deparando com um fenômeno simples, que o objeto de sua atenção encarna o próprio paradoxo de nossa época. Há na nova sublevação da extrema direita um choque constante entre realidade e fantasia, entre terror e magia. Eis a audácia do ensaísta: ver além da brutalidade evidente de tantos discursos destrutivos e retrógrados, ver justamente a antítese que se inscreve em seu âmago, seu sombrio teor de maravilha e deslumbramento.

Só entendendo os anseios e êxtases das pessoas que se entregam com fervor a tais movimentos é que poderemos combatê-los. Só decifrando os códigos de tantas mentiras que constituem tais discursos, só mergulhando nas fantasias conspiratórias, nas máquinas mitológicas, nas aparentes loucuras coletivas, é que saberemos neutralizar seus tão nefastos efeitos. Mas nem isso há de bastar, como este livro mostra com absoluta clareza: munir-se de uma racionalidade arrogante para desmontar os equívocos do pensamento alheio, mantendo intocado o que ele tem de cativante, sua dimensão de teatro, de festa, de transe, é um empenho intelectual decerto fadado ao fracasso.

“A luta da vez é a luta pela maravilha”, é o que Demuru vai nos ensinar, em mais uma de suas frases lapidares, na última parte de Políticas do encanto, não por acaso a mais radical e a mais sincera. Entre tantas ousadias, o ensaísta aqui se põe em crise, põe em xeque o próprio discurso, despe suas vestes de objetividade e segurança. Quando nos aproximamos do fim, o livro se faz outro livro, já não centrado na precisão e na clarividência, e sim no universo mais obscuro e complexo das incertezas, das interrogações necessárias que nunca encontram respostas unívocas.

Como fazer para lutar contra o nocivo encantamento alheio senão produzindo novos encantos, senão reencantando-se? O autor não demora a passar da preocupação em cativar os outros para novos horizontes políticos à preocupação em cativar a si mesmo, em revolver suas convicções decantadas, em descobrir-se ele mesmo um outro — e em envolver seus leitores em tal movimento. Só assim, parece, munidos de uma nova razão e uma nova sensibilidade, nos veremos capazes de ver algo novo, com olhos frescos, olhos reencantados. E de produzir a partir desse olhar também um mundo novo, mundo de novo utópico, ainda desconhecido e incerto.

 

Julián Fuks nasceu em São Paulo, em 1981. É autor de A resistência (2015), A ocupação (2019) e Lembremos do futuro (2022), todos publicados pela Companhia das Letras.