Política, encanto e a disputa pelas maiorias

Por Paulo Silva Junior

Diante da força da extrema-direita, dos ecos de seus discursos e da capacidade de propagação de suas teorias (ou fantasias) da conspiração, é interessante o convite a dar um passo para trás e, de forma panorâmica, observar a ideia de encanto. Porque não se tratam de manuais sisudos nem textões, mas sim de uma apropriação da imaginação. Se sonhar se tornou radical, dominar os devaneios e elaborações das pessoas é a ordem do dia.

Então a perseguição aos imigrantes na Europa, a nostalgia da ditadura militar no Brasil, o genocídio descarado em Gaza, as bravatas de Trump… Toda essa onda se utiliza de formas e meios que mexem com nossa cabeça. É por isso que vão em livros, filmes, séries, jogos. Compram a briga por meio dos elementos lúdicos, fantasiosos, férteis.

É daí que vem o cerne de Políticas do encanto, de Paolo Demuru, em que ele se desafia a propor saídas para um uso diferente das plataformas digitais e, quem sabe, disputar de fato o entrave ideológico e eleitoral de hoje.

Estamos colocados de frente para uma espécie de feitiço. Precisamos entender como funcionam esses métodos de encantamento utilizados pelo populismo conspiratório de extrema-direita para construir ferramentas capazes de reverter o jogo. Não “apenas com fatos, dados e raciocínios”, mas reconquistando a fantasia, inventando outras histórias.

Um exemplo talvez seja Pepe Mujica, ao menos na citação do educador Tony Marlon, no UOL. Em texto após a morte do ex-presidente uruguaio, o colunista partiu de Políticas do encanto para citar que o líder progressista latino-americano “se abraçou a uma narração do mundo que deseja construir”. Preso por longos anos, Mujica precisou olhar para a vida que queria viver, não para a rotina do cárcere. Tocou a política assim, pensando longe, para além de apenas ficar devolvendo os ataques que chegam de todos os lados.

Já Letícia Sarturi, divulgadora científica e pesquisadora da Unifesp, puxa esse papo para pensar o negacionismo na saúde. Para ela, em artigo no Intercept, os movimentos antivacinas e anticiência não estão apenas vendendo mentiras, loucuras ou invenções. Como aponta Demuru, e ela cita no texto, estão vendendo histórias.

“São narrativas que exploram a vulnerabilidade de quem se sente abandonado pelo Estado — seja na fila do SUS, seja na dificuldade em ingressar em uma universidade pública — e convertem essa dor em combustível para o ódio. Quando uma pessoa afirma, sem pudor, que as vacinas estão matando, ela não está discutindo ciência: está oferecendo um lugar no palco da conspiração. Um lugar onde o medo é acolhido, o pertencimento a uma comunidade estimula o ódio contra os pseudo-inimigos e o ódio vira voto”, escreve.

Acontece ainda que essa máquina conta com a conivência, ou apoio, das Big Tech. Elas topam a desinformação, se tornando aliadas de primeira grandeza para o que estamos aqui chamando de encanto da extrema-direita. Letícia destaca, por exemplo, que, quando crianças morrem de sarampo em pleno século XXI, a gente tem um sinal concreto do triunfo desse projeto que enxerga corpos como moeda de troca.

Mas, então, o que fazer? Obviamente não há uma resposta simples. Em Políticas do encanto, Paolo Demuru vai tratar desse debate sobre como responder, ou não, as armadilhas das redes sociais, além das formas de lidar com discursos políticos que estão ali para serem mesmo replicados — o Brasil que o diga, convivendo há anos com postagens de Bolsonaro exatamente com essa intenção de apenas gerar repercussão. Mas vale um exemplo, já no fim do texto, que o próprio autor elege como inspirador nessa conversa.

“Estou falando do Teatro Legislativo, de Augusto Boal, implementado durante seu mandato como vereador no Rio de Janeiro no início dos anos 1990. O projeto é descrito no livro homônimo, publicado em 1996 e reeditado em 2020. Em 1998, a editora Routledge lançou a tradução em inglês, com um título ainda mais impactante: Legislative Theatre: Using Performance to Make Politics [Teatro legislativo: usando a performance para fazer política]. O Teatro Legislativo consistiu na teatralização de problemas e desejos das comunidades cariocas. Com a ajuda da equipe de Boal, os moradores dramatizavam seus incômodos e anseios, transformando-os em espetáculos protagonizados por eles mesmos. Sucessivamente, as apresentações eram traduzidas em projetos de lei a serem apresentados à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Diversas foram as leis que a equipe de Boal escreveu e conseguiu aprovar, naqueles anos, a partir dessa prática: leis que resolveram problemas concretos das comunidades e que, ao mesmo tempo, fizeram com que as pessoas se aproximassem da política, da política no sentido mais estrito do termo, relativo às tomadas de decisão por parte de quem nos governa, mas não só. Olhando para a experiência do Teatro Legislativo a partir dos anos 2020, o mérito de Boal e sua equipe parece ter sido outro, e maior: relembrar que a política tem seus encantos, e que o encanto também é política.”

Imagem: Augusto Boal em oficina de teatro

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