Por Geni Núñez
Publicado no prefácio de O desafio poliamoroso

 

É com imenso carinho e alegria que assino o prefácio deste livro tão precioso. Brigitte Vasallo é uma escritora ativista, profundamente implicada nas lutas feministas e antirracistas, e essa afetação perpassa todo o seu trabalho. Sua escrita é envolvente e envolvida em redes que a todo momento dialogam com o singular e o coletivo, com o pessoal e o político.

O desafio poliamoroso é um generoso convite a quem ainda não teve contato com essa discussão, mas é também um espaço belíssimo de desenvolvimento para quem já tem intimidade com o tema. Como pessoa indígena, gênero dissidente e não monogâmica, ler este livro foi um abraço, pois saber das vozes que ecoam conosco em outros lugares do mundo faz com que nos lembremos da multidão que somos. Além disso, a autora foi de uma generosidade imensa em partilhar suas dores e alegrias nesses percursos de construção poliamorosa, em uma teoria corporificada, presentificada, que não se coloca em uma posição de externalidade ou superioridade para falar de seu “objeto”, pois ela própria faz parte de seu sujeito de análise.

Um dos efeitos da colonialidade é distorcer o tempo, de modo que as dissidências sempre são narradas como novidade, como moda. Não é diferente quando falamos de não monogamia, poliamor. Brigitte Vasallo nos apresenta preciosas pistas históricas desse processo, que vem de tão longe e, ao mesmo tempo, é tão premente na contemporaneidade. Essa historicidade nos possibilita ter mais ferramentas para compreender o enraizamento e a profundidade com que a monogamia tem se construído no tecido das relações. Se para curar, amparar e acolher uma ferida é necessário que a nomeemos, que a conheçamos, ponderar sobre as ramificações históricas desse processo é fundamental, e essa é uma importante contribuição deste livro.

Para desarmar uma arapuca é necessário conhecer suas dimensões, suas reentrâncias. Arapuca é um artefato indígena, uma espécie de armadilha que uso aqui como metáfora para nomear as habilidades de Brigitte para desarmar argumentos racistas, misóginos e lgbtfóbicos que sustentam o espetáculo monogâmico. Críticas são imprescindíveis à construção de qualquer projeto político, mas é necessário identificar quais discursos trazem questionamentos reais e quais acionam espantalhos moralistas. Vasallo consegue fazer muito bem esses dois movimentos: ela destrincha narrativas monogâmicas de cunho islamofóbico, misógino e nacionalista contrárias ao poliamor por motivos escusos, mas não para por aí. Em um segundo momento, ela própria tece considerações críticas sobre a construção de determinadas não monogamias, daquela maneira implicada e íntima que só quem vivencia na pele e no peito determinados debates consegue partilhar com tanta nitidez.

Com firmeza, mas carinhosamente, a autora nos faz perguntas poderosíssimas, como: o exclusivo nos trará mesmo a felicidade? E aí nos lembra que a positivação da exclusividade não está circunscrita ao domínio do “casal”, mas a todo um sistema de mecanismos capitalistas que nos propagandeiam a todo tempo que, se tivermos um ingresso vip a determinados espaços, sentimentos, contextos, aí nos sentiremos melhores; que, quanto mais exclusivo, tanto melhor. Se alguém nos diz: “te amo como amo todo mundo, como amo a milhares de seres”, isso pode nos causar desconforto, visto que aprendemos por toda a vida que só é bom aquilo que apenas nós temos e mais ninguém. Esse princípio é um dos pilares da lógica colonial, do prazer individualista, superficial e, portanto, sempre insuficiente e descartável.

Ao ler Brigitte, fiquei pensando que lindo seria um mundo em que não houvesse competição para acesso exclusivo ao céu, pois um mundo sem essa seletividade da paz seria também um lugar sem guerra, sem inferno. Como lembra Frantz Fanon, um dos autores com os quais a autora dialoga, o mundo colonial é um mundo compartimentado, e a monogamia não escapa a isso: tudo que ela vende como exclusivo, como o “nós” privilegiado, é parte de uma relação de complementaridade com aqueles que seriam o “outro”, o restante, a quem sobra o desprivilégio. Embora o livro tenha como cenário político outras geografias, há diversas semelhanças com a imposição do processo colonial — uma delas reside na ideia de nação, também heterossexualizada e monogâmica. Um dos lemas da ditadura militar foi a frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que nesse contexto alude a uma adesão ao projeto autoritário como prova de amor à nação. Assim é o amor monogâmico: sua comprovação se dá pela obediência, pelo alinhamento às normas. É também nesse sentido que o terror poliamoroso pode ser uma potente força de luta anticolonial, desde que articulado às demais lutas de libertação antirracistas e feministas.

A associação positiva ao exclusivo, ao hipervalor do raro, dialoga, dessa forma, com um imaginário monogâmico que nos ensina que multiplicidade seria sinônimo de baixa qualidade e de pouco mérito, e é aí que Brigitte nos situa no ponto que, a mim, saltou como um dos mais elementares de sua obra: não se trata de isolar o número por ele mesmo; não há qualidade intrínseca no único nem descrédito constitutivo no múltiplo. O que o livro nos convida é a uma reflexão sobre a qualidade dos nossos vínculos com as pessoas: tem muito mais a ver com o “como” do que com o “quanto”.

Inclusive, quando se fala em solidão dentro de um espectro monogâmico, é comum que apenas o namoro conte como uma companhia verdadeira, de modo que a pessoa solteira estaria “sozinha” ainda que estivesse rodeada por redes de afeto com pessoas amigas, por exemplo. Nesse ponto, a autora nos convida a um exame da hierarquia que muitas vezes opera em nossa vida sob a égide monogâmica, que a todo tempo nos faz subalternizar afetos, laços e partilhas que estão nesse espectro “fora” do amor romântico. Como indígena, ressoou muito em mim essa discussão, porque, para nós, originários, nenhum ser é superior a outros, não é apenas o humano que conta como gente, como uma vida importante. O ar que torna nossa vida possível também é uma companhia, a água que mata a sede é nossa amiga, o alimento que nos nutre também é íntimo de nós. Cabe aguçarmos nossa sensibilidade para a multiplicidade de seres sem os quais existir é impossível.

Como Vasallo nos ensina, a colonialidade é um sistema de promessas que nos diz que, “se formos boas, se seguirmos as instruções, tudo ficará bem”. Mas isso não costuma terminar bem. Historicamente, a monogamia tem deixado um lastro denso e profundo de feminicídios, de racismo, de lgbtfobia. No entanto, quanto mais esse sistema “dá errado”, mais é defendido, já que, por excelência, a colonialidade atribui como suas apenas as coisas boas, e remete sua sombra àquilo que estaria fora dela. É por essa sedução que a monogamia é defendida, vendendo-se como um sonho que, como lembra a autora, nos convoca a fazer parte de seu clube exclusivo e especial para que assim nos sintamos plenos.

Como uma rua sem saída, como um “infelizmente inevitável”, o sistema monogâmico nos diz que não temos senão uma escolha, “ou ela, ou eu; ou comigo, ou contra mim”, pontua a autora. A não monogamia é a recusa desse impasse, não uma resposta pronta para ele.

Todas as escolhas binárias são falsos dilemas, pois a vida é uma proliferação de concomitâncias. E, se chegamos até aqui, se reconhecemos que a monogamia não nos contempla, não nos abraça, então a pergunta que nos sobrevém é: se a ética monogâmica não nos orienta, sob qual nos construiremos? Foi um presente acompanhar as preciosas pistas que este livro dá para a tessitura desses caminhos. Tais trilhas não têm mapa preciso, fechado e previsível, mas nos amparam justamente quando o imprevisto nos desestabiliza, quando nossas feridas abertas falam mais alto e a imprecisão do tempo emocional nos assombra.

A autora nos convida a pensar sobre o ímpeto por vezes apressado e descuidado de nossas ações, por meio das quais nos colocamos em posições de uma liberdade individualista, falaciosa, que diz sim a tudo como contraposição aos nãos da monogamia. Da mesma forma que a compulsoriedade da proibição é violenta, também devemos estar atentas para não cair nas armadilhas de que, só porque temos a possibilidadede realizar algo, devemos fazê-lo. Aqui lembro muito de um poema de Adriane Garcia:

Escolher

Há você
Um espaço
Para os passos
E uma porta
Não é por que
É uma porta
Que você tem que
Abri-la
Liberdade
Pode ser
Antes da porta.

O terror poliamoroso abordado por Brigitte diz respeito também à concomitância disso tudo, medo e coragem, angústia e força. Esse terror, diferente do monogâmico, não se propõe a agigantar dores, mas a acolhê-las. Significa abrir-se ao desafio radical de termos consideração, carinho e respeito de forma expandida, não só com as pessoas com as quais o sistema monogâmico dita compromisso e comprometimento. Se os afetos tantas vezes nos possibilitam acesso à intimidade, às vulnerabilidades e às inseguranças das pessoas que amamos, o que fazemos disso, com isso, quando esses vínculos se transformam? Como transformar os afetos em espaços de fortalecimento, não de destruição?

Como lembra a autora, o poliamor, a não monogamia que ela apresenta não é para as pessoas sem feridas, completas, prontas. Não, é precisamente para aquelas de nós que estamos quebradas, aquelas de nós que seguimos com nossas feridas, medos, fragilidades. Este livro é uma lembrança de que nossas dores também fazem parte de quem somos, que elas importam e não devem ser deixadas de lado quando amamos e na maneira que amamos. E importam não como argumento de estagnação, mas justamente como motivo para nossas movimentações, transformações, reescritas de nossos medos, do terror monogâmico cujo passado ameaça roubar nossos amanhãs.

Aterrorizar o mundo colonial com nossas poliamorosidades envolve termos a coragem de desafiar a prescrição binarista do mundo que nos compele a falsas escolhas, a um tempo linear, a um espaço afetivo estanque, limitado, no qual só cabe o Um. Se o sistema de monoculturas impõe a monogamia, o monoteísmo, o monossexismo, Brigitte nos convida a construir, coabitar e amar a partir do princípio da floresta, sempre múltipla, diversa e, portanto, necessariamente viva. Desejo que este livro te refloreste tanto quanto me reflorestou. Bom passeio!

 

Geni Nuñez é psicóloga, mestra em psicologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutoranda na mesma instituição, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, na linha gênero e suas inter-relações com geração, etnia e classe. É ativista no movimento indígena, anticolonial e LGBTQIA+. Mantém o perfil @genipapos no Instagram.

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