Reafirmar a potência feminista contra a extrema direita

Por Paulo Silva Junior

 

“A reação colonial-patriarcal deste momento do capitalismo de guerra é global, mas tem características particulares na América Latina e, mais ainda, no laboratório argentino. Há algum tempo, durante o governo de Mauricio Macri (2015-2018), ganhou força uma contraofensiva conservadora em termos repressivos, financeiros e religiosos. Nesse momento, o auge das mobilizações pelo direito ao aborto coincidiu com o retorno do FMI ao país. Javier Milei [eleito em 2023] é uma radicalização extrema e pela direita daquele primeiro governo, com um programa explicitamente de direita — uma direita já organizada como partido, superando o esquema que imperou na ditadura civil-militar (1973-1986).”

O trecho acima é de Verónica Gago e Luci Cavallero, autoras de A casa como laboratório, em artigo publicado neste mês no portal Viento Sur. Nessa convocação à resistência feminista diante dos atuais desafios da Argentina, o veredicto é claro: a violência que vem de todos os lados — político, econômico, social, psicológico e físico, nas ruas — é uma resposta à organização das mulheres nos últimos anos, e entender Milei nesse contexto mais amplo é fundamental para seguir na luta.

Trata-se também de ligar a truculência atual à crise de 2001, como se o atual presidente estivesse concluindo, muito à direita, aquele “ciclo de crise caracterizado pela rejeição às políticas de austeridade e à impunidade e, ao mesmo tempo, expressa[ndo] a continuidade de uma crise de legitimidade ao sistema político que permaneceu sem solução nos anos subsequentes e que se conecta, de forma não linear, em nível global, com a saída reacionária da crise financeira de 2008”.

É o combo completo. Um governo de extrema direita que surge no rebote da ruína do neoliberalismo e se abre para a especulação internacional, como dizem Gago e Cavallero, “relançando uma agenda neoextrativista (via colonialismo verde, via ciclos de dívida), particularmente em torno de energia, minerais raros como o lítio e o agronegócio”. E, claro, sem demonstrar interesse ou disposição em fazer concessões às demandas da população insatisfeita.

As ruas estão quentes em Buenos Aires. Na última quarta-feira, 12 de março, o rotineiro protesto em defesa dos direitos dos aposentados terminou com forte repressão policial, com as tropas se mobilizando ao redor do Congresso. Diante das medidas ultraliberais do presidente e da truculência recente, movimentos sociais e torcedores de futebol deram mais força à manifestação. Um jornalista acabou gravemente ferido.

Em A casa como laboratório, Verónica e Luci vão pegar o momento da pandemia, com as pessoas se relacionando muito mais dentro das próprias casas, para pensar saídas e experiências de tecnologias financeiras, regimes de trabalho e convivência social. Se as autoras acreditam que o coronavírus foi um golpe duro à trilha de conquistas feministas recentes, num tipo de “chamado à ordem” em contraposição às ocupações das mulheres, isso segue à tona devido a um governo ainda mais radicalmente contra tais pautas. E faz todo sentido ao pensar na dificuldade econômica que se apresenta.

“O âmbito doméstico — que não se limita ao lar, porque se espalha para a vizinhança, as redes e as comunidades — é o lugar onde o dinheiro rapidamente se transforma em dívida, onde a moeda vira fumaça e onde a redução arbitrária de um salário social suplementar é sentida, pois muitos gastos são feitos em dólar. O sentimento de injustiça que existe entre o esforço e o dinheiro é fundamental. A casa (de qualquer tipo) é aquela que não deve passar por esse cálculo diário.”

Para Gago e Cavallero, “a proposta de levar a governança financeira de nossas vidas ao extremo (a especulação que todos que precisam lidar com a precariedade são obrigados a fazer) é combinada simultaneamente com um discurso reacionário, misógino e patriarcal. A insegurança trazida ao cotidiano lubrifica um discurso sobre a necessidade de se armar, de buscar segurança a todo custo”.

O último grande ciclo de mobilizações feministas na Argentina completa agora uma década, marcado pela marcha do coletivo Ni Una Menos em junho de 2015. A partir daí, Verónica e Luci listam algumas questões para esse novo momento, em resumo: reafirmar a radicalidade enquanto se tenta apagar a memória das lutas; recontar os conceitos de violência e os mecanismos de autodefesa; disputar outras perspectivas de vida social, antineoliberal e antifascista; reconstruir uma organização em redes e alianças, com capilaridade e escala; e disputar o futuro, com movimento estudantil e juventude, enfrentando a guerra cultural travada pela extrema direita.

Em A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo, Verónica Gago já apresentava, muito antes da ascensão de Milei, essa caixa de ferramentas contra a ofensiva neoliberal e conservadora, como definiu o jornal argentino Página 12. Recorrendo a ideias de, por exemplo, Silvia Federici, Angela Davis e Wendy Brown, Gago sintetizou as reverberações e os anseios em meio ao grito #NiUnaMenos.

“Não existe potência em abstrato (não se trata do potencial em termos aristotélicos). Potência feminista é capacidade desejante. Isso implica que o desejo não é o contrário do possível, mas a força que impulsiona o que é percebido coletivamente e em cada corpo como possível. A potência feminista quer ser, assim, um manifesto dessa potência indeterminada, que se expressa como desejo de transformar tudo”, escreve.

“É um registro aberto de um processo político que continua aberto. Minha escrita está situada aí”, continua. “Um pensar situado é inevitavelmente um pensar feminista. Porque, se algo nos ensinou a história das rebeldias, de suas conquistas e fracassos, é que a potência do pensamento sempre tem corpo. E nesse corpo se congregam experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias.”

É o movimento popular das mulheres latino-americanas como a linha de frente da resistência ao modelo atual, nítida e definitivamente falido. Ou, como lembra a epígrafe do oitavo capítulo de A potência feminista, ao apresentar teses sobre a revolução a partir de um grafite na Universidade Católica do Chile, em 2018: os Chicago Boys tremem, o movimento feminista resiste!

 

Foto: Analía Cid / Ni Una Menos .org

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