‘Sem passado, só há presente’: a comunidade como alternativa de futuro. Entrevista a Fabricio Pereira da Silva

Passado, presente, futuro. Um movimento linear que parece óbvio sob a ótica da modernidade e do progressismo positivista, adotada por uma parte significativa da esquerda global. O que o professor de ciência política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Fabricio Pereira da Silva propõe em seu novo livro é um caminho de resgate e preservação. Olhar o passado para projetar um futuro. 

Mas não qualquer passado, ou poderíamos cair nas armadilhas conservadoras do tradicionalismo, seja ele qual for. A rota apontada por Fabricio tem um destino preciso, geralmente menosprezado pelo progresso: a periferia do mundo, o Sul global, tendo como cerne a comunidade. O autor apresenta a riqueza dos pensamentos periféricos, sobretudo de projetos emancipatórios, de uma intelectualidade crítica, de uma esquerda “não ocidental”, que sobrevive à modernidade e ao capitalismo.

O socialismo indo-americano de Mariátegui, os conceitos de negritude e de ubuntu, os socialismos africanos do século XX, a ideia de Bem Viver (sumak kawsay/suma qamaña) e a felicidade nacional bruta do Butão. Em busca da comunidade: caminhos do pensamento crítico no Sul global responde aos anseios da esquerda por um modo de vida mais justo, equânime e livre de exploração e dos ideais de crescimento econômico inconsequente e desmesurado, com alternativas que já se provaram possíveis, já que existiram em um tempo pré-capitalista.

Nesta entrevista, Fabricio Pereira da Silva discorre sobre a resistência da esquerda a esse caminho de resgate, tomando-o como folclórico ou romântico, e seu apego ao “futurismo”. Diante do pessimismo que se alastra e da incapacidade de se enxergar um mundo fora do capitalismo, olhar para trás não é retrocesso, desde que se saiba o que procurar. Sem eleger correntes, Em busca da comunidade indica direções.

Por que estudar a busca pela comunidade?

Existe um tesouro de saberes que ainda estão disponíveis para nós. Ele sobrevive à modernidade e ao capitalismo, é parte do presente, não do passado, e atravessou séculos de história da humanidade — quase toda ela. É aquilo que Marx chamou de “comunismo primitivo” e colocou como meta final. Mas aprendemos que tudo isso é ruim, e que pensar nisso é querer voltar ao passado. Valores como esses estão presentes em ideias como ubuntu, Bem Viver e felicidade nacional bruta. Para trazer para mais perto de nós, estão e estiveram presentes no Brasil: entre indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, movimentos de afetados por barragens, sem-terra, comunidades eclesiais de base… Em algum nível, ainda estão presentes naquela meia dúzia de países do mundo que estão na Europa Ocidental e na América do Norte. E estiveram presentes como contramodernidade (não como antimodernidade reacionária) ao longo dos séculos em que a modernidade e o capitalismo foram gestados. 

Mas, então, por que não estudar essas ideias também? Por que o Sul global?

Aí entra a segunda motivação da pesquisa. Eu queria falar também de ecologia de saberes, de epistemicídio. Não quero estudar o Norte. Quero estudar o Sul, o próprio, o original, aquele acervo rico de saberes e ciências que é silenciado mas ainda sobrevive, e pertence a nove décimos da humanidade. Passei quase uma década pesquisando e escrevendo o que acabou se tornando o livro Em busca da comunidade. Há também uma jornada pessoal aí: buscar valores, saberes, práticas muito diferentes daqueles nos quais eu fui formado. Falo isso sem medo, é uma constatação. A ciência moderna, a vida universitária, a prática enquanto alimentador do currículo Lattes, a obsessão (particularmente da ciência política) com o positivismo, tudo isso leva à fragmentação, ao ensimesmamento, ao individualismo. A militância da chamada esquerda tradicional, se é um antídoto contra isso, é por outro lado atravessada também por um modernismo que já está completamente fora de lugar. Então, existencialmente falando, essa busca pela comunidade é uma jornada dialética: eu e muitos de nós ansiamos por essa busca porque nós mesmos já somos individualistas até o pescoço. E me parece que essa busca só se aprofundou nos últimos anos, principalmente no Brasil, devido aos seguidos traumas pelos quais passamos. Desde aquela “esfinge” que foi 2013, que segue nos devorando, passando pela ascensão da extrema direita, pela pandemia, por mais de um genocídio, pela crise climática… Quem estiver pensando mais ou menos como pensava há dez anos vai ter problemas. É necessário se reinventar.

Para parte relevante da esquerda, as ideias abordadas por você no livro são consideradas folclóricas, entre outros adjetivos depreciativos. O que Em busca da comunidade tem a dizer sobre isso?

“Parte relevante” é um eufemismo: eu diria que, para a grande maioria da esquerda, ainda hoje, essas ideias são consideradas “atrasadas”, “reacionárias”. Lamento por isso. Mas é compreensível. Como falei, estávamos no mesmo barco — que naufragou. Estamos nos afogando no mesmo mar. Só quero apresentar com afeto algumas ideias alternativas. O capitalismo levou a humanidade e o planeta à beira de um colapso que parece inevitável, e não dá nenhum sinal de que vá retroceder. Por outro lado, as posições hegemônicas da esquerda ainda são modernistas, evolucionistas, produtivistas — o que não parece ser uma alternativa ao que estamos vivendo. Então, precisamos olhar para outras direções. Mas procuro mostrar também— muito inspirado em Michael Löwy — que há uma tradição nas margens da esquerda, inclusive no interior do marxismo, de teóricos preocupados com outras dimensões: com a ecologia, com as tradições, com a questão nacional, com tanta coisa que não poderia ter sido ignorada. Marx era tão genial que em diversas passagens de suas reflexões apontou para a comunidade como uma alternativa. Fez isso no século XIX, no auge da fé no futuro, no evolucionismo, no eurocentrismo. Mas obviamente esta não poderia ser a tendência dominante em sua produção intelectual. Também falo disso no livro.

Dentre todas as correntes de pensamento que você aborda em Em busca da comunidade, qual, na sua opinião, tem maior potencial transformador na época em que vivemos?

Não quero eleger nenhuma, porque somos estatistas demais! Mencionar uma corrente automaticamente nos colocaria naquela tradição da busca por um modelo, por uma via. E isso imediatamente nos levaria a uma associação com um Estado, com instituições. Não é uma questão de replicar o índice de felicidade nacional bruta butanês pelo mundo, ou de defender a via boliviana a sei lá o que. O livro é sobre uma ideia só, que atravessa muitas coisas. É sobre a recorrência da organização comunal. O recorte geopolítico de Em busca da comunidade foi a periferia, o Sul global. O recorte temporal foi a busca por ideias e autores desde a segunda metade do século XIX. Mas, posso afirmar, essa ideia é recorrente na história da humanidade. E o que é isso, afinal? É a interconexão entre os membros de uma determinada comunidade, entre a humanidade e a natureza, e entre a geração presente, as passadas e as que ainda virão. Isso resume e está presente em todas aquelas concepções comunais. 

Uma característica comum a praticamente todas as correntes de pensamento que você aborda em Em busca da comunidade é seu enfraquecimento/desvirtuamento na medida em que foram adotadas por governos. O que isso sugere?

Não poderia ser diferente. A modernidade e o capitalismo deglutem tudo. Falei que tratei das ideias analisadas neste livro com afeto. Foi uma pesquisa empática. Mas quem ler com atenção vai perceber que muitas vezes a empatia dá lugar à ironia. Não pude deixar de ironizar todas as muitas vezes em que esses conceitos justificam diversas formas de opressão, e as vezes em que se tornam produtos. Tudo vira produto no final da linha. Até este livro, não é mesmo? Só não esperamos lucrar muito com ele… [risos]. 

Foto de capa: Vrin Resende / Midia NINJA