Por Rocío Niebla
Publicado na Pikara Magazine
A história de Belén López Peiró (Buenos Aires, 1992) é a história de milhões de mulheres de todas as épocas e séculos. É a história de sucessivos abusos sexuais cometidos por um membro da família. É o inimigo em casa, é a casa virada de cabeça para baixo, os silêncios trovejantes, as ausências paternas e maternas que doem, é a dor transformada em verbo e a (auto) justiça feita com a escrita. Sua história é a sua história, mas também a história de muitas outras, já que essa não é uma questão doméstica, pessoal ou individual; é uma questão de um sistema que cria carne (mulheres) para o moedor (homens): uma sociedade machista, uma cultura que nos objetifica e nos vende como propriedade masculina. Por que você voltava todo verão? é seu primeiro livro, e entra pela porta da frente.
Falar sobre o seu livro é falar sobre o abuso que você sofreu quando criança. Isso está te machucando ou te curando?
O processo de escrita foi restaurador: enfiei meus pés na merda e escrevi. Voltar à cena e narrá-la abertamente, descrever cada detalhe, isso foi restaurador para mim. Foi uma forma de registrar para poder ver o que aconteceu, qual foi o contexto e a estrutura que permitiu o abuso acontecer e continuar, quais foram os mecanismos que funcionaram para que um silêncio durasse dez anos. Para mim, escrever era recuperar o domínio sobre a minha história e identidade, que eu havia perdido.
Como você se preparou para escrever?
Tive que me distanciar dos acontecimentos para poder narrá-los sem tanto apego emocional, senão ficaria paralisada. Escrever minha história me ajudou a perceber que não sou a única que passou por essa situação, que não é minha história pessoal, mas uma história universal de abuso. Percebi que nem meu nome e nem os nomes dos personagens importam, o que importa é que isso acontece, e acontece também dentro de casa.
Na história, existem várias vozes que narram o que está acontecendo de ângulos, pontos de vista e perspectivas diferentes. Qual o motivo dessa polifonia?
O abuso não acontece apenas entre a vítima e o perpetrador, não é apenas aquele momento preciso em que uma pessoa viola a outra; o abuso se prolonga quando a mulher fica sozinha, quando ela não tem segurança financeira para denunciar, quando ela é silenciada, quando se magoa, quando a gente continua a se sentir vulnerável, quando nos levantamos sem controle do nosso corpo, quando vamos ao tribunal e fecham as portas na nossa cara, quando te colocam no estereótipo de vítima… Tudo isso também é abuso, e daí as múltiplas vozes.
Você fez um exercício literário de abrir a porta da sua casa e escancará-la, tornando esse assunto coletivo.
Sim. Além disso, os grandes personagens são as instituições: a instituição judiciária, a instituição familiar, a instituição psicológica, a instituição médica. A violência sexista é exercida de forma transversal e principalmente em instituições que contribuem pra que essa violência seja estrutural e tenha uma base sólida, muitas vezes apoiada pelo próprio Estado. Para mim, foi muito importante incluir, por exemplo, a linguagem judicial, porque é um dos primeiros espaços em que vamos pedir reparação, e no qual encontramos vitimização.
Como você se relaciona com o rótulo de vítima?
Não é muito bom, mas não consigo encontrar outra forma de nomear. Não gosto porque está intimamente associado ao estereótipo da vítima, ao que se esperava que eu fosse, à forma como deveria me comportar. Muito associada a mulheres que não têm desejos sexuais, que devem se esconder, que não podem levantar a voz, que não podem gritar ou marchar. No começo eu não conseguia falar, tive que ficar na esfera privada porque, como mulher, estava desacreditada. Até que percebi que aquilo não tinha nada a ver, que era somente o que esperavam de mim. Romper com esse estereótipo era essencial. Nós deveríamos ressignificar a palavra ou inventar outra que nos nomeie, mas sem nos desacreditar.
Você sentiu culpa durante todo esse processo?
Sim, definitivamente. É a primeira coisa que eles fazem você sentir. A culpa é sempre de quem denuncia. É por isso que repetem a pergunta “por que você voltava todo verão?”, “por que você está destruindo a nossa família?”. A responsabilidade é de quem está destruindo o estabelecido, de quem incomoda as pessoas, de quem faz com que as pessoas tenham que agir, e nem todo mundo gosta disso. Por isso é mais fácil culpar a mulher, ignorá-la ou não acreditar nela. Tudo para que as coisas continuem como estão e o agressor continue ocupando o seu lugar de poder. Sair do estereótipo de vítima também teve a ver com apagar minha culpa — que é uma culpa muito associada à fé religiosa.
Você encontrou pessoas que minimizaram o que aconteceu porque não houve penetração?
Sim, é a primeira pergunta que todos me fazem. E no final eu até me perguntei, por que tanta confusão se nem houve penetração? Não houve penetração com o pênis, mas houve penetração com outras partes do corpo. E eu rapidamente entendi que o importante eram as consequências que essas ações tiveram sobre mim. E foram várias, que tanto na escola, quanto nos psicólogos pelos quais passei tentaram normalizar. Por exemplo, distúrbios alimentares, dores de cabeça ou dores de barriga — claro que isso tudo não foi fruto de mudanças normais da adolescência, como diziam. Senti muito desconforto com meu corpo, muitas dores. Os transtornos alimentares estavam relacionados à falta de controle do corpo, à sensação de que eu não tinha controle sobre mim mesma. E, com o tempo, percebi que isso estava associado ao abuso sexual, à sensação de que uma vez que uma pessoa chega e toma posse do seu corpo como território, sem limites, fica muito difícil sentir que seu corpo é seu e que você pode se reapropriar dele. No plano sexual, foi um processo árduo e é uma transformação e tanto passar da falta de prazer total ao gozo. São questões que precisam ser tratadas publicamente, primeiro para mostrar que há muitas mulheres que já passaram por isso, e também para que os adultos possam ver os sinais menos evidentes que podem aparecer nas crianças e adolescentes que foram violadas, e não normalizá-los.
Você sentiu ou ainda sente medo?
Faz muito tempo que não sinto isso. A última vez foi quando lancei o livro, porque senti que estava me rebelando contra tudo. Senti que estava escrevendo contra minha família, contra as instituições e, às vezes, contra mim mesma. No entanto, o que eu fazia estava me salvando. Eu não sei se leram o livro, se ele leu… mas era como dizer à justiça, a ele e a todos: vão para o inferno. E só eu, com meu livro, faço minha própria justiça. Senti medo e força no lançamento; além disso, no evento, uma mulher levantou a mão e disse: “Eu também vivi isso, e obrigada” – então senti que todo o medo valeu a pena. Meu medo maior era ficar quieta e ver isso acontecendo novamente, mas com outra pessoa, com um primo ou sobrinha… Tive medo quando vi uma garota no colo dele, isso era medo.
Podemos afirmar que a justiça é patriarcal?
É a instituição mais patriarcal que conheço. A justiça coloca no tribunal quem denuncia, a cada dia te expulsa mais do processo, faz de tudo para que você desista. É uma das maiores dívidas que temos: criar uma justiça restauradora. Somos muitas mulheres que vão à justiça e a única coisa que sentimos é desamparo e tristeza. Se eu tivesse que esperar, com um caso iniciado em 2014, que a reparação venha do veredicto de um juiz… O que eu estaria fazendo durante todos esses anos?
Gostei que você finalizou o livro com o laudo médico que diz que ele não é louco. Será que eles são sistemática, social e culturalmente educados entendendo o corpo das mulheres como propriedade? Não seria esta a normalidade em um sistema machista?
Desde tenra idade nos mostram que estupradores são monstros, loucos, doentes ou com certas patologias, e não é assim. Ele é mais um homem que abusa de seu poder e estupra uma mulher à força. Isso é instilado desde a infância, é ensinado, é experimentado e vivido. É uma cultura em que as mulheres são objetos e não sujeitos de direitos. Para mim é importante desmascarar que o agressor pode ser da sua família, que ele não tem que ser um monstro ou um maluco.
Você atua em alguma associação ou coletivo?
Desde que o Ni Una Menos foi criado em Buenos Aires tenho participado nas assembleias e estou em todas as manifestações. O NiUnaMenos nasceu em junho de 2015 e é muito importante, foi a primeira vez que houve manifestações tão massivas. Elas nasceram como resultado dos feminicídios de 2014 e 2015, anos em que, na Argentina, uma mulher morria nas mãos de um homem a cada 24 ou 26 horas. Rapidamente percebi que também estávamos lutando contra todos os outros tipos de violência transversal, incluindo as mortes por abortos clandestinos. Minha militância também tem a ver com construir um espaço amigável em que eu me sinta segura e empoderada para escrever. E eu escrevi acompanhada da minha líder de oficina de escrita e das minhas companheiras, todas mulheres; foi uma escrita muito coletiva: esse livro foi escrito por mim, mas eu estava acompanhada por todas elas. E agora abri oficinas de escrita para mulheres que querem contar suas histórias.
A lei do aborto na Argentina foi um incentivo para continuar com as outras lutas?
Sem dúvida, a legalização foi um grande triunfo. Agora temos que cuidar para que ela seja aplicada, porque, embora seja lei, pode haver instituições, médicos ou províncias que não queiram implementá-la. E também precisamos analisar como continuar e que outras conquistas ainda temos que buscar. A questão da reparação é urgente, a ideia é que haja uma justiça restaurativa: um Estado que garanta que as mulheres se sintam protegidas e acompanhadas, e não revitimizadas. Teria que ser gratuito, porque essa justiça não pode depender da pessoa ter dinheiro para pagar um psicólogo, frequentar uma oficina de escrita ou grupos de terapia corporal.