Silvia Federici e o reencantamento do mundo

A autora de Calibã e a bruxa e O ponto zero da revolução desenvolve o conceito de comum e as suas relações com o capitalismo e o feminismo.

Por Silvia Federici
Publicado em Tinta Limón

 

Em uma conversa com Beatriz García Dorado, da editora espanhola Traficantes de Sueños, Silvia Federici resgata a importância da escrita da história como parte da luta pelos bens comuns. Lançado recentemente na Espanha e na Argentina, Reencantar o mundo: o feminismo e a política dos comuns [título provisório], novo livro da autora de Calibã e a bruxa e O ponto zero da revolução, será publicado em 2021 pela Elefante, novamente com tradução do Coletivo Sycorax.

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A história é potencialmente um grande comum. É por isso que a escrita da história é uma parte muito importante da nossa luta, para que ela não seja escrita pelos mais poderosos, a fim de nos dividir e justificar seu racismo, gerar culpa nos oprimidos e destruir o mundo. Este livro [Reencantar o mundo] busca fazer da história um verdadeiro comum. O capitalismo sempre se glorificou como produtor de riquezas, de cultura, de inovação, sem reconhecer o quanto destruiu das culturas que vieram antes dele. É por isso que no livro resgatei que, milhares de anos antes do capitalismo, a população da Babilônia já havia reconhecido a grande constelação astral, sem todo o desenvolvimento tecnológico [que viria posteriormente]. É uma visão não colonizadora e racializada da humanidade. Reencantar o mundo baseia-se em uma mudança na estrutura de valores: veja quem são os sujeitos hoje que garantem nossa vida, nossa cultura, nosso futuro. Esse é o conceito fundamental no cerne do conceito de “reencantamento”. Reencantar é se reapropriar, construir uma visão não racista do mundo, em que os outros não são inimigos, não são um perigo do qual se defender (essa ideia que cresceu muito com a pandemia de covid-19). Não. Devemos recuperar a nossa cooperação, o nosso cuidado com todos os seres humanos e com tudo o que vive neste planeta.

 

Sobre acumulação primitiva

O conceito de acumulação primitiva foi muito importante porque nos permitiu entender a transformação que estava acontecendo na economia global. Não é um processo que ocorreu no início do capitalismo: é continuamente reproduzido, especialmente em resposta a tempos de crise do capital. Nos anos 1980 e 1990 entendemos que o sistema, para sair de suas crises, separa milhões de pessoas de seus meios de produção, as aliena. A globalização foi um processo de empobrecimento e deslocamento, e as grandes ondas de migração são a consequência mais imediata desse processo de expropriação. Não é só o ataque ao patrimônio da comunidade, a privatização da terra: há também a política da dívida, que se desenvolve em dois níveis. A dívida nacional, que leva a cortes no serviço e gera desemprego; e a dívida individual. Estamos falando da financeirização da reprodução. Vemos isso no microcrédito, principalmente como uma forma de disciplinar as mulheres.

 

Sobre a noção de bens comuns e feminismos

Existem três elementos muito importantes para compreender os bens comuns. O primeiro deles é a partilha dos bens da terra e dos bens que produzimos, garantindo acesso à grande riqueza da natureza e, consequentemente, à riqueza social que é produto de nossa produção. O segundo elemento é a cooperação no trabalho: uma sociedade que não se baseia na competitividade (não estou falando de cooperação capitalista, que é forçada, na qual os trabalhadores não têm poder de decisão). O terceiro elemento é o autogoverno: a assembleia, a decisão coletiva. Os três elementos devem ser considerados para a vida de hoje.

O comum é de grande importância nas lutas das mulheres, no feminismo. Na sociedade capitalista, um dos maiores problemas das mulheres é que o processo de reprodução foi construído de uma forma que nos isola. A demanda pela possibilidade de trabalhar fora de casa, por um salário, em áreas tradicionalmente masculinas, não é uma estratégia de libertação. Sempre trabalhei em organizações que rejeitam o trabalho não remunerado, que obrigam o Estado a colocar mais recursos de todos os tipos e com visão de futuro, a partir da construção de uma sociedade alternativa. O feminismo contribui muito para a luta dos comuns, pois tudo deve partir da reorganização de toda a atividade reprodutiva diária da vida.

 

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