Sociologia da imagem: viajar aos andinos para descolonizar

A Elefante está lançando Sociologia da imagem: olhares ch’ixi a partir da história andina, segunda obra de Silvia Rivera Cusicanqui por aqui (antes: Um mundo ch’ixi é possível: ensaios de um presente em crise). Neste livro, a autora boliviana continua pensando na criação de uma episteme própria dos povos andinos, com informações metodológicas e entrevistas em que ela detalha suas ideias. Como a própria Silvia diz, vale acreditar numa descolonização que só pode ser realizada na prática — mas uma prática reflexiva e comunicativa, fundada no desejo de recuperar memória e corporalidade próprias. Segue abaixo um trecho do prefácio que ela escreveu para a publicação boliviana, reproduzido nesta edição em português.

Por Silvia Rivera Cusicanqui

(…)

Em outros trabalhos, e especialmente na oralidade do meu curso de sociologia da imagem, vemos como Walter Benjamin nos ajuda a repensar nossa história coletiva como uma “imagem dialética”, na qual os passados relevantes retornam como um raio para iluminar os “momentos de perigo”. Esses raios não apenas nos iluminam; também agitam as águas aparentemente calmas desta modernidade exacerbada que chamei de “efeito pós-pandemia”. Todos os anos, com cada seca, com cada chuva intempestiva ou com a repressão sorrateira das reivindicações populares espontâneas, recordamos a dupla dinâmica inscrita neste paradoxo.

Contudo, além dos desequilíbrios climáticos, sentimos também a estranheza e o vazio dos debates intelectuais, que vêm à tona como uma “crise de esquecimento”. Não é preciso ir muito longe. Podemos recordar a seca que vivemos no Vale de Chukiyawu, Bolívia, no final de 2016, e os incêndios devastadores que destruíram a Floresta Chiquitano e as reservas de biodiversidade em todo o leste do país, em 2019. Tampouco podemos esquecer que, para além do movimento de comoção revanchista, havia nessa época uma ditadura disfarçada de democracia, e que ela nos (des)governou durante aquele fatídico ano de 2020. Depois vieram a pandemia de covid-19 e o confinamento social, que abriram um buraco na nossa memória e nos deixaram pouco mais que órfãos de continuidade, comunicação e pensamentos. No entanto, as pessoas comuns, os trabalhadores manuais, os artesãos e os tecelões, e sobretudo as comunidades e as famílias camponesas, continuaram a nos alimentar com o seu esforço e com o cuidado amoroso das colheitas e daqueles objetos que hoje são praticamente varridos pela voracidade do hiperconsumo dos BRICS. Nós, pessoas comuns, que viajamos de minibus e vamos à Feira 16 de julho, em El Alto, para encontrar alguns objetos resgatados dos lixões, somos os que insistimos em unir o alimento do corpo com o alimento do chuyma e do ajayu. Combinar a alegria da colheita com o conforto da leitura parece uma utopia concreta, que pode ser comida, cheirada e tocada, para homenagear os produtos culturais que relutam à captura estatal ou ao desejo desmedido de lucro.

Tudo isso merece uma releitura de Sociologia da imagem com os olhos deste presente turvo e nebuloso. A chamada “polarização”, hoje quase monotemática, nada mais é do que um passado mal digerido. Parecemos agarrados a uma remota assembleia francesa dos tempos jacobinos, com a alma voltada para um passado que não só é estranho como também adverso à constituição plural e entrelaçada de nossas sociedades e territorialidades. Também parecemos sofrer de um infeccioso “mal de passado não digerido” no estômago das elites e aparentemente contagioso para as classes mais baixas, como uma mancha de óleo. É indigesto sentir que nos “penduramos” na França do século XVIII para continuar martelando a ideia de que ninguém pode ser mais do que “de esquerda” ou “de direita”. Eu, que sou ambidestra, sinto-me como uma máquina do tempo rangendo nos corredores dos palácios de governos nacionais, departamentais ou municipais. Mas também dói saber que as populações Tsimane, Yuracare e Moxeña chamaram de “Casa Grande” o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis) — o qual, dominado pela ganância predatória dos cocaleiros do Polígono Siete, hoje se tornou um nome bombástico e eufemístico a meio quarteirão da Plaza Murillo [onde fica a sede da presidência boliviana]. Ergue-se como uma torre fálica, um vigia de cimento sobre o antigo centro administrativo de Chukiyawu Marka [nome tradicional de La Paz]. Dessa forma, continua o esforço megalomaníaco de encobrir o poder com emblemas expropriados, materiais baratos e maquiagens democráticas da moda.

O poeta, narrador e ex-guerrilheiro de Iquitos, no Peru, César Calvo (1940-2000), cujo livro Las tres mitades de Ino Moxo y otros brujos de la Amazonía foi republicado há duas décadas em Havana pela Casa de las Américas, nos lembra com clarividência que o tempo da “máscara e do perigo” já passou. Calvo referia-se à repressão das ditaduras latino-americanas, que dizimaram movimentos guerrilheiros nos anos 1960 e 1970, seja no Peru, na Argentina ou na Bolívia. Impiedosamente massacrados, alguns deles sobrevivem até hoje para agitar as passarelas de potências intelectuais que nem sempre nos olham como iguais.

Alertamos, portanto, que o perigo não passou, e que a máscara continua a enfeitar a face do poder, seja ele local, nacional ou transnacional. Esse rosto está disfarçado, escrevendo mensagens com o mesmo tom que nos anos heroicos e trágicos da guerrilha serviu para criptografar compromissos e ações clandestinas. Hoje, finalmente, nos livramos do fardo desse passado indigesto com a atitude iconoclasta de quem se sente dona da própria rebelião, traduzida no pensamento, na agricultura, na parentalidade e na escrita: a autora e caminhante que assina estas páginas.

A reedição (auto)pirateada de Sociología de la imagen na Bolívia busca ser relida levando em conta aquele presente contínuo, tenaz e turvo, que parece acabar com a dignidade e a memória coletiva. Na primeira parte do livro, quisemos reler visualmente a história moderna da Bolívia pela mão de Melchor María Mercado, pintor chuquisaquenho [natural do departamento boliviano de Chuquisaca] do século XIX, intelectual prolífico da cultura de 1952 e da filmografia inicial de nosso mais premiado e emblemático cineasta, Jorge Sanjinés. Trata-se de abordar a continuidade de dois gestos: por um lado, a caminhada e o alvoroço das gentes que alimentaram mercados, festas e rebeliões no passado; por outro, o gesto estatal de nos impor a ideia de que somos miseráveis, desprovidos, e que necessitamos urgentemente de “ajuda ao desenvolvimento” e “erradicação da pobreza”.

A segunda parte é a busca — inacabada — de uma “episteme própria” e contém alguns vislumbres de um trabalho em andamento. Em primeiro lugar, é a tentativa de exegese e compreensão de uma obra-prima da cultura andina: El primer nueva corónica y buen gobierno, de Felipe Guamán Poma de Ayala (Waman Puma). Exploramos também os contrastes metafóricos — um anacronismo revelador e pertinente — entre o impulso dos primeiros Inkas para seduzir as populações que vivem nas selvas do leste boliviano e o convite de um líder cocaleiro para “conquistar” as mulheres do Tipnis. Dessa forma, se cumpriria o programa encoberto de devastação e desperdício que, em duas décadas, afastou populações e dizimou animais e plantas das zonas mais biodiversas da nossa Mátria, e que hoje ameaça sustentar, de mãos dadas com a “instituição tutelar da Pátria”, uma espécie de “território livre” de democracia e justiça. Por fim, procuramos abordar poeticamente a experiência vivida no Mestrado em Antropologia Visual da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em 2010, em Quito, Equador, para mostrar que não escrevemos motivadas apenas por urgências políticas, mas também pelo gosto e pelo sabor de nossa língua impura, manchada, embora amplamente inteligível no mundo popular, urbano e rural.

Esse salto presente-passado/passado-futuro faz parte do método qhipnayra, incubado no Taller de Historia Oral Andina na década de 1980 e persistentemente renovado através de atividades como a Campaña Coca y Soberanía (2003-2007) e a Cátedra Libre del Colectivx Ch’ixi (a partir de 2010). Espaços culturais resgatados do esquecimento ou de lixões que, assim como os alimentos saudáveis e a água pura, vêm se tornando objetos inacessíveis às pessoas comuns. O nome da nossa aventura editorial rejeita rótulos identitários, tanto do mestiço como do índio, porque acreditamos que, depois de longos séculos de dominação colonial e imperialista, a nossa subjetividade é como uma Piedra Rota [pedra quebrada], impedida de regressar à sua pureza original, mas ainda assim capaz de servir como pavimentação nas estradas ou projétil nos protestos da indiada rebelde. São esses os gestos que impulsionam a aventura desta edição boliviana, revisada, que os leitores podem hoje ter nas mãos e da qual podem cheirar a tinta fresca de novos mas também antigos recursos editoriais.

Há algumas omissões com respeito à primeira edição, como a de um intelectual pa chuyma, o infeliz assediador de mulheres Boaventura de Sousa Santos. Tais omissões se devem à necessidade de reafirmar a nossa independência como caminhantes da palavra, praticantes da feminilidade não sectária e portadoras de uma tendência rebelde insubordinada. Optamos por carregar um futuro nebuloso nas costas, para escapar do descontentamento e do derrotismo. Da mesma forma, nesta reedição olhamos para o passado andino a partir do sinistro presente pós-pandemia, reapropriando-nos da jornada percorrida, para retribuir os maus-tratos com um gesto de cortesia e reciprocidade. Queremos que a nossa palavra floresça na luta contra a expropriação e na exibição das nossas dores e da nossa criatividade, para devolvê-las ao nosso corpo com a dignidade do trabalho realizado. Esperamos contribuir comum a pitada de fertilizante e tornar esta terra mais habitável e amigável para aqueles que produzem pensamentos, alimentos e atividades editoriais autogeridas. Inspira-nos o desejo de que os objetos da cultura, do pensamento e da terra não se curvem à patente unilateral dos Impérios.

Queremos que o livro seja um objeto cultural acessível e respeitado. Que sejamos apreciados por quem somos e não pelo que outras pessoas gostariam que fôssemos. Que este livro circule e seja vendido em qualquer país, território ou povo em luta, ao qual possamos servir com a centelha acesa da nossa palavra insubordinada, e com o desejo de olhar e habitar os caminhos da Pacha sem arrogância e com a paciência da passagem ao nível do solo.

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