Por Alana Moraes e Salvador Schavelzon
Ilustrações de Vitor Flynn Paciornik
Publicado na Piseagrama
Tecendo reflexões a partir do chamado “Tornar-se selvagem” de Jera Guarani, publicado na PISEAGRAMA 14, este ensaio é parte da campanha pela aprovação do Projeto de Lei #CinturãoVerdeGuarani. A campanha busca fortalecer as terras indígenas e a cultura do povo guarani na cidade de São Paulo e é uma realização da CGY (Comissão Guarani Yvyrupa) em parceria com o CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e o Intervozes, apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo.
Diante do colonialismo, a luta indígena sempre se fez a partir de movimentos multiformes: a guerra contra os brancos, mas também a fuga, as estratégias de dispersão e, em outros momentos, a negociação. No último século, as disputas também se instalaram no interior do próprio Estado. Por um lado, reivindicações de acesso a políticas públicas de assistência ou proteção e acesso a direitos especiais coletivos; por outro, era ainda necessário enfrentar governos que seguiram apostando na expansão capitalista sobre as terras indígenas como política de “desenvolvimento”.
Muitas vezes, como no último ciclo de governos progressistas na América Latina, a ampliação dos direitos sociais se deu junto ao fortalecimento do agronegócio e das práticas extrativistas. O avanço da fronteira agropecuária, a exploração extrativista da mineração e de outros bens comuns, a incorporação de indígenas em mercados de trabalho precários, mal remunerados e mesmo análogos ao trabalho escravo foram algumas das formas em que a colonização e a guerra contra povos indígenas se atualizavam em consonância com o capitalismo contemporâneo e seus novos mitos do “progresso”.
Confluindo com forças de distintas naturezas, o levante de 2013 abre uma bifurcação sinalizando para uma encruzilhada que muda em definitivo o curso das lutas no Brasil. Naquele momento, tornava-se evidente a política colonial que se atualizava tanto nas operações policiais “pacificadoras” em territórios favelados, quanto no avanço do agronegócio, nas invasões de terra e nas hidroelétricas construídas Brasil afora, cujo maior símbolo é Belo Monte. Por outro lado, em São Paulo, a retomada Guarani anunciava uma política por vir que, no entanto, já estava. Práticas de autonomia e invenções sobre resistência diante das velhas e novas plantations que desativam os poderes estatais de sua legitimidade e tutela, marca da política indigenista no Brasil.
Lutar como especialistas em catástrofes
Especialistas em sobreviver ao colonialismo e suas tecnologias de extração, alternando muitas coreografias de resistência, ora mais invisíveis e silenciosas, ora mais guerreiras e combativas, em 2013 os Guarani Mbya abriam um laboratório de experimentação cosmopolítica na periferia da maior cidade da América do Sul. São Paulo, aliás, é uma das únicas metrópoles do mundo que abriga duas Terras Indígenas dentro de seus limites municipais – Jaraguá e Tenondé Porã. Se, para aqueles pouco sensíveis aos tremores da terra, Junho de 2013 foi o “ovo da serpente” que abria caminho para a ascensão do neofascismo, para outros, como os Guarani, foi um ano de luta pela terra, tempo de tremer com seus tremores.
No encontro de mundos, linguagens de luta e estratégias de sobrevivência, o povo Guarani na periferia de São Paulo se encontra hoje numa expansão política em várias direções. O retorno à terra, que consolidou as demarcações da última década, pode também ser compreendido como continuidade de uma luta indígena que cresceu no país junto com a redemocratização. No entanto, essas pelejas jurídicas e políticas não deixaram de ser acompanhadas por uma luta cotidiana em muitas frentes, nas cidades e fora delas.
Na frente externa, em São Paulo, a luta política hoje se apresenta na pressão pela garantia de políticas que permitam fortalecer o Cinturão Verde Guarani, onde os territórios Jaraguá e Tenondé Porã se encontram tecendo um ecossistema fundamental para a vida na metrópole. Defender essa barricada viva de Mata Atlântica, não como natureza intocada, mas como sistema de relações humanas e não humanas, significa lutar contra as mesmas ameaças que os povos ameríndios enfrentam no continente inteiro: avanço da especulação imobiliária, grandes obras de infraestrutura, extração ilegal de recursos florestais, contaminação, rompimento de barragens, impossibilidade de permanência.
O Cinturão Verde Guarani lança a hipótese de uma outra política: uma política terrana, que emerge da constatação de que somos parte do mundo vivo e não meros visitantes, criaturas entre tantas outras que compõem a delicada e instável teia da vida no planeta. É uma política que também nos provoca a pensar sobre o colonialismo que marca os horizontes de transformação da própria esquerda. Uma esquerda extraterrestre que age e pensa como quem não pertence à terra, guiada por interesses que pouco tem a ver com a vida mesma e que ainda segue muito comprometida com os ideais da “civilização”. A afirmação política do Cinturão Verde nos parece confirmar a declaração de 2019 do coletivo mexicano conselho noturno de que, hoje, “não há revolta metropolitana, apenas revolta contra a metrópole”.
Queda do céu, levante da terra
Jera Guarani é uma das lideranças da Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo. O território da Tenondé Porã, localizado em Parelheiros, possui uma área de 16 mil hectares e é o principal responsável pela mancha verde que insiste nas bordas da maior metrópole da América do Sul – margens indomáveis e que guardam muitas camadas de história, lutas e modos de existência contra os quais a “cidade bandeirante” assentou suas fundações e cercas. Jera caminha com a tranquilidade infalível de uma especialista do colapso civilizacional; pensa com a serenidade de quem espreita a “cidade do progresso” e seus tentáculos desde que nasceu.
Diante da crise hídrica que atingiu São Paulo em 2014 e agora a emergência pandêmica planetária, o território Guarani, atravessado pelo rio Capivari, se torna não só um refúgio, mas uma espacialidade que convoca saberes e alianças inesperadas como alternativa ao Império do Humano e suas simplificações ecológicas escamoteadas pelos mitos do progresso. Uma espécie de observatório atlântico da catástrofe metropolitana está em construção nas Terras Indígenas Guarani. Não se trata apenas de “resistência”, mas de uma política experimental dedicada a práticas de autonomia e tecnologias do comum que fazem proliferar a vida por meio de alianças multiespécie: entre humanos, plantas, animais, fungos, rios; entre os seres visíveis e invisíveis com os quais se compartilha o mundo.
Se o céu está mesmo caindo, como já anunciava Davi Kopenawa, é hora de praticarmos outras formas de conhecimento que sejam capazes de sustentá-lo, sugere Jera. É como investigadora da terra que ela nos faz pensar sobre a queda do céu. Diante da guerra de mundos que se atualiza pelas forças neocoloniais, Jera perfaz uma crítica radical ao sistema de produção de conhecimento do mundo dos brancos, os juruá. Para que servem as ciências e universidades, ela indaga, se seguirem comprometidas com a devastação desse mundo, assegurando o império da monocultura e seus venenos, da mineração e seus crimes ambientais, formas proprietárias que intensificam a dinâmica extrativa contra corpos, saberes e florestas? Para que servem as escolas se o que ensinamos e aprendemos sempre foi a história dessa civilização e seus muitos modos de fracassar, seus renovados refrãos infelizes do “desenvolvimento” e da “inclusão”?
Jera fala como uma dissidente em muitos aspectos. Durante anos, foi professora da escola indígena da Tenondé Porã, mas ao longo do tempo passou a se deparar com os limites do sistema escolar. A escolarização, para os Guarani, apresentava-se como promessa de futuro, possibilidade de “inserção profissional”, e não como espaço de circulação de conhecimento sobre a terra e sobre os muitos modos de cura e relação com o mundo vivo, tão importantes para o pensamento guarani.
Como uma instituição republicana que existe por muitas formas de chantagem, o universo da escolarização interrompia os horizontes de produção de conhecimentos, corpos, alianças e saberes ligados à terra e há muitos séculos cultivados pelos Guarani, oferecendo em troca a mesma máquina de produzir fracassos e esquecimentos do mundo dos brancos. Trata-se de um poder feiticeiro capaz de engolir nosso tempo e de nos tornar escravos de suas engrenagens como forma de “integração”, constata Jera. Foi assim que, cada vez mais notável na política guarani, ela deixa seu emprego estável de professora do Estado para se dedicar a uma tarefa muito mais desafiadora e que fazia jus ao que ela realmente acreditava: cultivar a terra.
É como investigadora do que pode fazer a terra vingar novamente que Jera, junto de outras jovens lideranças Guarani, seguia um trabalho muitas vezes silencioso de permanecer na terra, atenta aos seus sinais. Em 2012, logo antes de serem aprovados os estudos de demarcação da TI Tenondé Porã, Jera relata uma experiência de sufocamento: os Guarani se viam em uma área pequena demais e os limites territoriais começam a ser sentidos como impossibilidade de sustentar o nhandereko, o modo de existência Guarani. “Somos um povo cauteloso, mas naquele momento sentíamos que era preciso avançar”, ela intuía. Foi então que, em 2013, também contaminados pelo levante de Junho, os Guarani bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes e retomaram uma terra, a aldeia Kalipety, que por muitos anos havia ficado nas mãos da indústria do eucalipto, responsável pelos chamados “desertos verdes”. Depois de um vigoroso ciclo de luta, a terra indígena da Tenondé Porã foi finalmente declarada como de usufruto exclusivo do povo indígena Guarani, em 2016.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 2013 aconteceram 156 mobilizações indígenas no país. Junho de 2013, na verdade, começou em abril, quando o movimento indígena ocupou o plenário do Congresso Nacional abrindo caminhos para a revolta por vir. No manifesto dos Guarani lançado em agosto, em São Paulo, afirmava-se que “Bandeirantes significa a morte dos nossos antepassados”. Acertar contas com o passado e retomar: a luta Guarani convocava uma outra temporalidade para pensar a ação coletiva, mas também outros mundos. A saudação “Aguyjevete para quem luta”, que passa a ser mais evocada naquele momento, arranca a palavra de seu contexto sagrado para infiltrá-la no processo político de reinvenção do corpo com a terra. Aguyjevete expressa o desejo Guarani de maturação do corpo para não perecer; um corpo que se torna mais leve e generoso, fortalecido pelo movimento da luta que também é o da cura. Vida e luta se tornam inseparáveis e confluem nos movimentos de saber propiciar os bons encontros entre os diversos seres e as forças com as quais se compartilha o mundo, inteligência de composição.
A luta guarani nos lembrava a todos do fato de que a cidade foi feita contra um modo “selvagem” de se relacionar com a terra e os saberes coletivos para viver junto e bem. Na década de 1950, São Paulo era ainda conhecida como a “capital bandeirante” e a persistência da evocação genocida ainda se faz visível em monumentos celebrados e no próprio nome do palácio de governo. Como seria considerar a hipótese de que Junho de 2013 abria, assim, a “forma de um passado no futuro, quer dizer, de um futuro anterior”, como escreveu Giorgio Agamben em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua; uma possibilidade de acerto de contas com o passado ao mesmo tempo em que lança outras possibilidades de um mundo por vir? A habilidade guerreira dos xondaros e das xondarias guarani proferia uma dança cuja coreografia se compunha de muitos mundos, histórias de uma luta cosmopolítica que persiste entre esquivas, combates e festas.
Contra o deserto monótono da monocultura, Jera se orgulha de ter dedicado os últimos anos regenerando a terra e recuperando a diversidade das variedades tradicionais de milho, batata-doce, mandioca, feijão, amendoim, abóbora. “Tudo o que comemos nos fortalece ou nos adoece”, ela lembra. Poder plantar a própria comida também é uma forma de resistir ao envenenamento e à contaminação a que todas estamos submetidas pela água, pela terra e pelo ar: retomar o conhecimento dos viventes contra os poderes neocoloniais da asfixia.
A retomada exigia também invenções políticas que estivessem à altura daquele acontecimento, e Jera sentia que era preciso afirmar e construir uma outra forma de liderança. “Antes, eram sempre os homens os caciques. Eu pensava que as mulheres também tinham que estar à frente, mas que também precisávamos de uma forma mais aberta de liderança. Acabamos então com a figura de um cacique. Quando não tem cacique, tudo se torna mais democrático, mais livre e, com certeza, mais feliz”.
Jera não fala somente a partir de uma demanda de “inclusão” das mulheres indígenas nas estruturas de poder, mas lança a hipótese de um feminismo da terra que desloca a própria ideia do poder como lugar de centralização e unificação. Hoje, os Guarani Mbya de Tenondé Porã dão mais um passo na luta coletiva contra os feitiços do progresso: convocam os dissidentes do mundo dos brancos a pensarem com os pés na terra o que pode ser uma retomada contra colonial diante das novas ofensivas bandeirantes. Esse é o chamado que vem do Cinturão Verde Guarani, buscando dar sentido próprio à política de relação com a mata que cerca a cidade. Um território atlântico que espreita a metrópole cheio de apetite. Não se trata de “abandonar a cidade”, como aliás os Guarani nunca fizeram, mas de pensar sobre o que tem envenenado nossa inteligência coletiva de combate e experimentações de autonomia, pensar os caminhos possíveis e uma luta que se faz pelo corpo em travessia.
“Tornar-se selvagem” é a provocação que Jera tem feito aos brancos que agora já sabem que o céu está caindo. É um chamado que nos convida a pensar juntos, como criaturas da terra, maneiras de sustentar outros mundos e práticas de conhecimento que atuem por autonomia dos territórios e tecnologias do comum; tecnologias estas que nos permitam, junto à terra e a suas criaturas, existir com o mundo, recusando a nos tornarmos recursos. Pensar a política pela cozinha, sua temperatura e misturas, como Jera nos convida quando chegamos à Kalipety.
Se a “civilização” dos brancos fracassou de tal forma que hoje ameaça nossa respiração e a própria continuidade da vida na Terra, não nos restam muitas alternativas que não a de apostar nas alianças com aqueles e aquelas que resistem há mais de cinco séculos à máquina de extinção colonial e suas predações proprietárias. Não teria sido o óbvio?
A metrópole como máquina de asfixias
Até pouco tempo atrás, o tema da catástrofe planetária parecia uma fábula distópica, desconsiderada nos cálculos políticos e ainda longínqua demais para incidir nos conflitos contemporâneos com alguma relevância – nada poderia parecer mais fora do lugar do que a “mudança climática” ilustrada com as imagens de geleiras derretendo no Ártico. A divisão entre pautas “ambientais” e “sociais”, no decorrer do século XX, serviu para sedimentar, nas imaginações políticas, uma separação entre aqueles que estavam, por um lado, supostamente preocupados com a classe trabalhadora e o “desenvolvimento das forças produtivas” e, por outro, aqueles privilegiados “ambientalistas” pouco comprometidos com empregos e com a vida dos mais pobres, mais preocupados com o “mundo lá fora”.
Davi Kopenawa explica, no livro em coautoria com Bruce Albert, A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, que o “meio ambiente” foi, por muito tempo, entendido como um ambiente partido ao meio: de um lado, a natureza que deveria permanecer intocada e, do outro, os humanos que se pensam de forma cindida do que seria “o entorno natural”. Operando a manutenção dessa grande divisão, as linhas do “progresso” e do “desenvolvimento” puderam construir Belo Monte, fortalecer os crimes da Vale do Rio Doce e oferecer centralidade política sem precedentes ao agronegócio no Brasil, em nome de um suposto compromisso com o desenvolvimento econômico, “o emprego e a renda”.
Os centros de produção de conhecimento situados nas grandes cidades seguiram mantendo essa separação em agendas disciplinares bem-comportadas que pouco se influenciavam ou se deslocavam. Humanidades e ciências naturais raramente compartilhavam interesses de investigações. Essa divisão desconsiderava o fato de que pessoas são parte do que se chama de “natureza” e o que se apaga violentamente é a pluralidade de modos de existência que não apenas recusam essa grande divisão como também vivem por uma infinidade de alianças entre humanos, rios, terra, florestas, espíritos.
De maneira alternativa, a existência guarani aparece como teia interespecífica tão complexa quanto viva e que se encontra – do ponto de vista do conhecimento sobre seres, associações e a vida – com os estudos mais contemporâneos das ciências naturais. Donna Haraway, no livro Seguir con el problema: generar parentesco en el chthuluceno, sugere que muitos sistemas que a biologia imaginava autopoiéticos são, na realidade, simpoiéticos. Se os sistemas autopoiéticos dependem de unidades autônomas autoproduzidas, os sistemas simpoiéticos são produzidos de maneira relacional, em interações, sustentados pela capacidade de criar e fazer com outros. Para além dos “entes”, o que mais importaria são os “entres”.
Como dissidente, Jera nos faz pensar em uma política que emerge da recusa. Uma recusa que nasce nas florestas e desconfia do destino de “ter que ser trabalhador” integrado ao capitalismo de catástrofe. Desconfia também dos projetos revolucionários cujo sentido se faz a partir de uma imaginação dependente de um “sujeito histórico”, uma força política que se apresentaria na continuação do processo de desenvolvimento das “forças produtivas”. A recusa se impõe também como forma de não entregar a vida a um mundo sem horizonte ou de horizonte tão distante que nos impede de pensar uma política que favoreça a vida que desejamos ter no presente. Uma vida que emerge como esquiva do destino de “ser pobre” como forma de acessar o mundo dos direitos e promessas do Estado e as “oportunidades” para se realizar no mundo da mercadoria.
Transformar índios em “pobres” sempre foi crucial ao capitalismo: “Porque pobre é um conceito ‘maior’, pobre é maioria, pobre é um conceito de Estado – um conceito, justamente, ‘estatístico’. Mas acontece que a imensa maioria estatística dessa maioria pobre é minoria étnica, minoria política, minoria sexual, minoria racial”, como salientou Eduardo Viveiros de Castro no texto Os involuntários da pátria: elogio do subdesenvolvimento.
Mais do que nunca, nos parece frutífero pensar as lutas contemporâneas e o conjunto de conhecimentos que suscitam a partir da cumplicidade entre a recusa do índio a se tornar pobre e a recusa dos despossuídos urbanos que encontram caminhos possíveis para se tornarem índios. Torna-se é um convite à inconstância do continuado vir a ser. Nesse horizonte, a cidade vai sendo desfeita pelas suas bordas, fazendo proliferar territórios povoados de diferenças, prenhes de mundos que coexistem, resistindo à inexorabilidade do destino da urbanização corporativa ou da terra servindo à produção agropecuária, à extração privada de recursos ou ao trabalho precário do capitalismo financeiro e da dívida, depois do colapso da cidade industrial.
Emergência pandêmica
A emergência pandêmica certamente nos possibilitou experimentar o que uma parte significativa de pessoas no Brasil já conhecia bem: o confinamento, a impossibilidade de respirar; a ameaça de contaminação, uma impotência absoluta diante das tramas de poderes e infraestruturas que organizam nossas vidas. As imagens distantes do Ártico e suas geleiras que derretem podem ser substituídas, agora, por imagens de cidades vazias, hospitais lotados, respiradores artificiais e uma experiência coletiva de perda e luto.
Ainda assim, nos parece que um dos desafios das lutas nos próximos anos vai ser o de consolidar a constatação de que a pandemia é fruto da expansão da monocultura e sua simplificação ecológica, assim como da urbanização capitalista, como argumentaram Rob Wallace e o Coletivo Chuang, respectivamente, em Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência e Contágio social: Corona vírus e luta de classes microbiológica na China. A pandemia aconteceu, mas sua história ainda está em aberto. Isso porque também nos percebemos reféns de uma imaginação política obstruída, incapaz de estar à altura do colapso que estamos vivendo. As evocações da autoridade científica como recursos capazes de encerrar mais rapidamente controvérsias e conflitualidades emergentes nos devolvem a imagem de uma democracia imaginada sempre como um “modo menos ruim de gerir o rebanho humano”, nas palavras de Isabelle Stengers, de uma política que se expressa como “o espetáculo glorioso dos corpos sem mundo”, na definição anônima no livro Chamada: imaginação radical do presente.
De que forma o impulso das lutas interrogam a catástrofe hoje e quanto ainda somos capazes de sustentá-las? Quais imaginações de transformação revolucionária podemos voltar a cultivar quando tomamos essa nova escala que se abre entre nossos corpos e o planeta? Como insistir na cumplicidade entre ciências e lutas permitindo um conhecimento povoado de mundos, diferenças e relações? Uma ciência repleta de poros, contrabandos e especulações que não autorizem, mas favoreçam os possíveis.
Na Tenondé Porã, as orientações sobre o “não contato” pareciam fora de lugar quando confrontadas com um território vivo no qual tudo está em relação de interdependência. Como dizia Tiago Karai, uma das lideranças do território guarani: “A nossa cultura é diferente: é vivida, é sentida. Para os jurua kuery [não indígenas] é muito simples quando se fala em isolamento social porque eles já têm a vida ‘em caixinhas’. Mas dentro da comunidade há uma só família. É uma grande família que tem que lidar com essa situação. E a questão da coletividade, do cuidado com o outro, se tornou uma oposição diante dessas orientações de não contato”.
A hipótese do isolamento social, colocada como única alternativa de bloqueio da expansão viral (já que não tivemos testagens massivas nem rastreamento perene dos casos), mostrou-se também inconciliável com as formas de vida e infraestruturas metropolitanas que são conduzidas hoje pela biopolítica neoliberal e sua governamentalidade na administração das desigualdades e na corrosão de infraestruturas coletivas de apoio e solidariedade, tão caras às lutas sociais durante o século XX.
De certa forma, a aposta de Bolsonaro em neutralizar a emergência pandêmica sempre foi a de mostrar que a descartabilidade da vida já existe como condição evidente e rotinizada no mundo dos jurua kuery, como há tempos sabem os Guarani: a cláusula oculta do contrato neoliberal de que alguns precisarão morrer para que outros possam viver. Diante da pandemia, uma vez mais, a mensagem oficial era a de que os “fracos” sucumbirão para que os “fortes” sigam sua estratégia de guerra em um mundo cindido por ideias de sucesso como autossuficiência radical, sacrifício, competição. Os dispositivos de poder no momento pós-industrial, mais do que pela lei soberana, atualizam na cidade sua eficácia em “fazer funcionar” infraestruturas que “respondem a uma necessidade: a da normalização transitiva de todas as situações”, como salientou a revista francesa Tiqqun. A neutralização, portanto, de todo acontecimento que ameaça suspender a necrogovernança normalizada.
Em seu último ensaio, Brutalisme, Achille Mbembe lança algumas pistas importantes para pensar o mundo de emergências confluentes em que vivemos. Se a humanidade se constitui como força geológica planetária, ele diz, não podemos mais falar em “história”, mas, a partir de agora, toda história é necessariamente geo-história – incluindo a história dos poderes. Mbembe chama a atenção, também, para a dimensão molecular e química desse processo. A toxicidade, ele defende, é uma dimensão estrutural do presente que afeta não apenas a terra, as águas, mas também os corpos humanos. Visto por esse ângulo, ele segue, a função dos poderes contemporâneos é a de, como nunca antes, tornar possível a extração.
A asfixia também tem sido a arma das “forças de segurança” policiais contra os corpos pretos; arma de contenção e administração de zonas de mortes. O mundo pandêmico, produzido pelas novas tecnologias e ciências da monocultura é também o mundo cercado e vigiado das grandes metrópoles, administrado pelas tecnologias racializadas de vigilância e extermínio. Em 2019, a “cidade bandeirante” atinge a cifra da maior população carcerária de sua história, 235.775 pessoas, a maior do Brasil.
De George Floyd a João Beto Freitas, asfixiados pelas forças de “segurança”; passando pelo mapa racializado dos que mais sofreram pela crise sanitária que vivemos, além das muitas formas de contaminação e envenenamento que atingem a terra e os rios de povos indígenas: o que está em jogo é uma evidência escandalosa da impossibilidade racializada de respirar. Seguindo as pistas de Denise Ferreira da Silva em A dívida impágavel, é possível pensar agora que “os últimos duzentos anos testemunharam episódios repetidos da expropriação colonial de terras, trabalho e recursos, garantida por arquiteturas jurídico-econômicas que operam dentro e fora do Estado-nação, ou seja, da figuração mais recente do corpo político liberal. Indubitavelmente encontramos, hoje, a forma jurídica colonial possibilitando o capital global”.
Uma universidade terrana: caminhos de pensamento e luta
Como herdeiros da devastação continuada da plantation, nossa luta não poderá ser outra senão aquela que reconhece a força de destruição das Casas Grandes e seus novos centros de comando. Stengers insiste, em A invenção das ciências modernas, que, seja quando falamos da ciência ou da sociedade, o progresso ainda é a imagem definidora: “aquela que permite estruturar a história, separar o essencial do anedótico, fazer se comunicarem narrativa e significado”. Assim, o “progresso” define e autoriza o que merece ser conservado ou aquilo que deve ser relegado; o progresso autoriza simplificar os relatos e faz a triagem das “histórias que importam”, da “política que importa” – inclusive nos marcos da esquerda estatal. Em 2013, os Guarani lutavam pela história que deve importar – nas ruínas do progresso, entre catástrofes e extermínios, a história não começa e nem acaba com a Conquista. “Tornar-se selvagem”, como Jera convoca no artigo publicado na PISEAGRAMA 14, é um convite para uma travessia, uma insistência dos que não foram derrotados, das que desconfiam das histórias do progresso e imaginam outras formas de revolução para o presente.
Uma das frases mais emblemáticas do Maio de 68 francês dizia que “sob os paralelepípedos havia a praia”. A revolta lembrava a todos que os paralelepípedos arrancados para enfrentar a polícia e erguer barricadas escondiam também o mundo vivo de que somos parte. Os Guarani em São Paulo, por sua vez, vêm afirmando que sob a metrópole persiste a Mata Atlântica e suas criaturas, um território livre da polícia e repleto de novas alianças criadas a partir do problema de como habitar um mundo devastado.
Apenas nos últimos 5 anos, 7,2 milhões de metros quadrados de Mata Atlântica foram desmatados na cidade de São Paulo. Em contraposição, os Guarani Mbya vêm articulando silenciosamente uma inteligência coletiva de regeneração da terra, da água e do ar. Na guerra de mundos em curso, enquanto a monocultura e suas tecnologias expandem técnicas de redução de diferenças, os Guarani Mbya experimentam velhas e novas tecnologias de proliferação da variedade.
Chegar até a aldeia Kalipety, saindo do centro de São Paulo, nos obriga a atravessar a metrópole, a percorrer as entranhas da barriga do monstro. Regiões de muita densidade populacional, rodovias, transtornos do tráfego, confusão cognitiva e sonora, a conexão ininterrupta da internet, tudo isso vai ficando para trás. A periferia também existe em uma zona de indistinção entre o que é a cidade e o que não é, entre o que já foi e o que ainda pode ser. O controle total metropolitano que se atualiza entre sinalizações, polícias, rodovias e o sistema de localização do Google vai se dissolvendo em uma nova espacialidade na qual é possível se perder novamente.
Como seria pensar o território guarani como território de confluências entre pensamento e luta? Jera especula sobre uma ciência da terra que possa reverter a tradicional divisão colonial do trabalho de pesquisa, na qual os brancos que estudam os índios, para experimentar uma outra: um território atlântico composto pelos seus viventes em relação, pensando o mundo dos brancos em colapso. Nesse território, não é mais possível sustentar a grande divisão entre a ciência e a luta, o corpo e o conhecimento, o humano e a “natureza”.
Como na reflexão recente de Emanuele Coccia sobre a vida das plantas, o tipo de conhecimento que emerge aí não é o que imagina o mundo antes de se situar nele. Não se trata de uma mente controlada e exterior que imagina e só depois entra no mundo para realizar uma ideia, como na lógica do engenheiro, do projeto, do programa ou da vida que só é vivida como preâmbulo para um futuro, num instante que sempre se perde em função do que virá, do que será construído, acumulado, conquistado.
Ao invés disso, trata-se de uma ruptura com as lógicas modernas, antropocêntricas e desenvolvimentistas. Toda investigação aqui está implicada com a tarefa de encontrar uma forma de habitar um espaço, uma atmosfera, sentindo as condições determinadas por cada espaço, seu clima, suas possibilidades e limites, buscando luz, temperaturas adequadas, composições coletivas e interespecíficas favoráveis à vida, crescendo e construindo com o que tiver disponível, na terra que possamos encontrar, no ar que possamos respirar com alegria.
O saber que importa aqui, como nos faz pensar Jera, é um saber mundano, sensível, que não está separado e isolado do entorno e da mistura que compõe qualquer vida. Não é um saber como “transmissão” dos que “sabem” para aqueles que apenas “sentem”. Mais do que corpos individuais, elementos separados, são misturas, complexidades que fazem povos e comunidades tecendo um emergente território de conhecimento em novos sentidos de liberdade e de luta, uma nova sensibilidade. O Cinturão Verde Guarani é, afinal, uma aposta na respiração, uma universidade terrana que emerge da confusão e que desfaz oposições como totalidade e particularidade, existência real e ideal, corpo e pensamento. É uma aposta profundamente materialista que nos leva a questionar o humanismo como transcendência, mas também as cadeias de fornecimento de alimento organizadas como mercantilização, separação, empacotamento.
Em lugar da faxina ontológica moderna que se desfaz de tudo que não se adapta ao plano ideal projetado por engenheiros, técnicos ou “especialistas da política”, uma universidade terrana se ergue sob a lógica da coexistência de diferenças, um mundo onde caibam muitos mundos, como dizem e fazem os zapatistas. Interessaria então pensar em como favorecer encontros de formas ancestrais e contemporâneas, indígenas e não indígenas, da floresta e da cidade, encontros que buscam por muitos caminhos retomar os mundos que foram negados e destruídos em nome do progresso e da civilização. Suspender o tempo em que vivemos para pensar tempos possíveis que emergem das lutas do passado e abrem os caminhos para outras imaginações no presente. Fugitividades. Uma universidade terrana sem universalismo cuja tarefa é recompor um mundo devastado e “renovar os poderes biodiversificadores da terra”, como escreveu Haraway. Tornar-se selvagem para podermos novamente respirar, criar e lutar juntos.