Um mundo ch’ixi é possível: Silvia Rivera Cusicanqui na Elefante

 

Em pré-venda no site da Elefante, Um mundo ch’ixi é possível é o primeiro livro da renomada socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui que temos o orgulho de publicar no Brasil. Não pararemos por aqui — mas ainda não daremos spoiler.

Ch’ixi é um termo aimará usado para se referir a uma coloração cinza que, na verdade, é formada por pequenas manchas brancas e pretas que se se tornam cinza apenas quando vistas a uma determinada distância. A autora se apoia nesse conceito indígena para compreender a sociedade boliviana — e, de maneira mais ampla, latino-americana — nestas primeiras décadas do século XXI.

Ch’ixi é um devir”, define, explicando que o conceito possibilita que nos libertemos de uma certa esquizofrenia coletiva: “Por que temos sempre de estar nas disjuntivas de um ou do outro: ou somos pura modernidade, ou pura tradição? Talvez sejamos as duas coisas, mas as duas coisas não fundidas, porque essa fusão privilegia somente um lado.”

Silvia Rivera Cusicanqui nasceu em La Paz, em 1949. É militante, socióloga e historiadora de origem aimará, professora emérita da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, Bolívia. Foi professora visitante nas universidades de Columbia e Austin (Estados Unidos), na Universidad de Jujuy (Argentina) e na Universidad Andina Simón Bolívar de Quito (Equador), onde é também professora emérita da cátedra de direitos humanos.

Com outros intelectuais indígenas e mestizos, Cusicanqui fundou o Taller de Historia Oral Andina, grupo autogerido que pesquisa temas de oralidade, identidade, movimentos sociais indígenas e populares, sobretudo na região aimará, e é cofundadora da Colectiva Ch’ixi.

A escritora, professora e militante Silvia Rivera Cusicanqui.

É autora, entre muitos títulos, de Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores (n-1, 2021), Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina (Tinta Limón, 2015), Mito y desarrollo en Bolivia: el giro colonial del gobierno del MAS (Plural, 2015), Principio Potosí reverso (Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2010) e Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado aymara y quechua en Bolivia (1900-1980) (CSUTB, 1984).

Em Um mundo ch’ixi é possível, Cusicanqui abraça a contradição própria de nossas formações sociais, ao invés de fazer dela um dilema paralisante. “Por que temos de enfrentá-la como uma oposição irredutível? De fato, estamos caminhando por um terreno no qual modernidade e tradição se entremeiam, e não é necessário optar completamente por uma ou por outra.” Um dos principais objetivos da autora com estas páginas é apontar o que chama de “aspectos não conscientes e internalizados do colonialismo”. 

É por meio deles que tece duras críticas à instrumentalização das ideias de “originário” e “descolonização” pelos governos progressistas que assumiram o poder na região, sobretudo na Bolívia, que em 2006 elegeu um presidente indígena e aprovou uma nova Constituição para fundar um Estado Plurinacional. De acordo com Cusicanqui, as políticas adotadas por Evo Morales revelam que tudo não passou de um discurso vazio repleto de “palavras mágicas” — termos que se protegem de todas as incertezas e evitam qualquer questionamento, sem, contudo, provocar mudanças efetivas. 

“A situação de colonialismo interno e internalizado com relação ao mundo índio é tão profunda na Bolívia que nos convertemos em artífices de nossa própria colonização”, pontua. “Inconscientemente, contribuímos para que prosperassem os elementos fetichistas e ornamentais da identificação com o mundo índio e, com isso, ajudamos a transformar suas organizações e lideranças em uma espécie de emblema compensatório que impede a sociedade de pensar o que realmente é a descolonização e quem são os sujeitos — corpóreos e metafóricos — desse processo.” 

Uma das saídas elencadas pela autora é assumir como premissa básica o que ela chama de “equivalência de capacidades cognitivas” entre os mundos branco e indígena — “algo que não se dá em nossas sociedades, pois há uma cadeia de desprezos coloniais que pressupõe a ‘ignorância do índio’ e se infiltra nos poros do cotidiano para erigir os muros do senso comum”, observa. 

“Sobre as premissas de uma bússola ética e da igualdade de inteligências e poderes cognitivos — certamente expressáveis em uma diversidade de línguas e epistemes — poderá ser tecida uma epistemologia ch’ixi de caráter planetário que nos habilitará em nossas tarefas comuns como espécie humana, mas também nos enraizará ainda mais em nossas comunidades e territórios locais, em nossas biorregiões, para construir redes de sentido e ‘ecologias de saberes’ que sejam também ‘ecologias de sabores’, com a -‘compartilhação’ no lugar da competição.”