Romper relações com Israel — e ter Gaza no coração

Por Paulo Silva Junior

O Brasil precisa romper relações com Israel. O presidente Lula subiu o tom nos últimos dias, inclusive em viagem à Europa, e a firmeza das palavras aumenta o eco da denúncia do genocídio, além de demonstrar solidariedade ao povo palestino. Mas o passo brasileiro pode mais: cortar vínculos diplomáticos e comerciais com o estado sionista, firmar o embargo e revogar o acordo de livre comércio em vigor.

É o que clama a carta enviada ao presidente pelo movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que já conta com milhares de assinaturas de entidades, personalidades e sociedade civil brasileira, inclusive nós, da Editora Elefante. É o caminho que as pessoas sensibilizadas com a violência descarada em Gaza esperam ver, logo.

No início da semana, ainda no Palácio do Planalto, em Brasília, Lula não deu voltas para responder à embaixada de Israel no Brasil. “Vem dizer que é antissemitismo. Precisa parar com esse vitimismo. E saber o seguinte: o que está acontecendo na Faixa de Gaza é um genocídio.” Depois, na França, em fala junto do presidente Emmanuel Macron, continuou.

“O que está acontecendo em Gaza não é uma guerra, é um genocídio de um exército altamente preparado contra mulheres e crianças”. Lula também criticou a Organização das Nações Unidas — “a mesma ONU que criou o Estado de Israel tem que ter autoridade para proteger a área demarcada em 1967”, disse.

Não é pouca coisa. É importante ouvir o presidente brasileiro reforçar, aos olhos do mundo, que a morte de duas crianças palestinas por soldados de Israel não provoca a mesma revolta na mídia que a morte de dois israelenses nos Estados Unidos. Seguir registrando a cumplicidade da imprensa é um ponto relevante dessa tragédia, quando quem produz informação e atua na circulação de imagens e notícias topa normalizar os ataques de um estado sobre um povo.

Ilan Pappe falou sobre isso recentemente, confidenciando que, apesar de todo esse contexto de proteção aos crimes de Israel, não esperava tamanha indiferença europeia sobre Gaza. Ele também fala em pânico moral: essa falta de coragem de falar sobre as coisas que paira sobre diversos atores no Ocidente. 

Nascido em Haifa, ao Norte de Israel, e filho de judeus alemães perseguidos pela ocupação nazista, Pappe tem se dedicado ao árduo caminho de conscientizar, com paciência e didatismo, um mundo em crise. Lançamos primeiro, em abril, Brevíssima história do conflito Israel-Palestina; e nosso próximo lançamento, já em pré-venda, é A maior prisão do mundo: uma história dos territórios ocupados por Israel na Palestina.

O relato que se diz breve é, de fato, conciso e direto. O autor mira quem está se deparando com esse entrave pela primeira vez e também quem tem se dedicado ao ativismo pela paz e justiça na região. “Pretendo lançar luz sobre os principais acontecimentos, personalidades e processos desde a chegada dos primeiros colonos judeus à Palestina histórica até os nossos dias, a fim de explicar por que esse conflito se tornou tão difícil de gerenciar”, conta.

O outro título remete à ideia de prisão por colocar a lupa na ocupação dos territórios palestinos e no plano da entidade sionista para gerenciar esses locais dominados. Tantas décadas depois, trata-se de pura humilhação, uma condição permanente de vigilância e de práticas violentas diárias. “A terceira geração de prisioneiros palestinos está lá, à espera de que o mundo reconheça seu sofrimento e se dê conta de que, enquanto essa opressão prosseguir, será impossível discutir de modo construtivo a opressão em outros lugares do Oriente Médio”, escreve Pappe. 

É um embate desigual, e a constatação fica ainda mais clara quando ampliamos o significado de Gaza para a circulação de projetos, de armas e de autoritarismo ao redor do mundo. Andreas Malm vai organizar isso sob o prisma de que A destruição da Palestina é a destruição do planeta, já que junta a guerra com a crise climática numa história que remete ao século XIX, voltando à marinha britânica em missão militar.

Já Antony Loewenstein vai nomear como Laboratório Palestina, ou seja: um modelo de ocupação para o mundo, uma espécie de nação startup que exporta essa tecnologia utilizada por Israel. Mais que apenas a ação de um Estado (e não bastasse o horror diário), a experiência ali foi virando um tipo de utopia realizada para toda a extrema direita mundial.

Daqui, cobrar atitudes concretas diante da urgência — repetindo, é hora do Brasil romper relações com o Estado genocida de Israel — e seguir acreditando que a circulação de ideias, pesquisas, relatos e palavras sobre o tema é uma declaração de apoio e humanidade junto aos palestinos. É importante disputar e construir canais de informação e memória justos com um povo sob ataque. E propagar vozes que se levantam por essa justiça e não se deixam parecer indiferentes, como a da palestina Farah Chamma, aqui no poema Welcome, em tradução de Tadeu Breda, presente no livro Gaza no coração.

 

Welcome

Você chegará de uma cidade distante
com um visto religioso.

Então, quase imediatamente, você perceberá:
há um muro a sua volta para manter uns dentro, outros fora.

Você vai ter que se alistar. Vai ter.
Você ouvirá falarem outra língua. Você aprenderá a olhar para baixo.

Você se convencerá
de que isto foi prometido a você
— uma falsa sensação de superioridade —
Você muitas vezes não suportará este sol.

Você muito provavelmente terá uma arma.
Talvez mate alguém.

Na sua cabeça, uma voz talvez sussurre: você matou
especialmente depois do terceiro drinque.

Quando ficar difícil lidar com tudo isso,
você usará seu poderoso passaporte
para ir a alguma ilha.

No bar, você cantará junto com John Lennon:
“And no religion, too”.

Você nunca terá espaço para se perguntar por que
há fantasmas sitiando seu novo país,
há um checkpoint perto da sua casa,
há pedras sendo jogadas em você,
há um fuzil nos seus ombros,
há boa música tocando do outro lado.

Mais importante, você terá que fazer as pazes
com o fato de que sempre existirá o outro lado.

Você seguirá ordens
Você protegerá fronteiras
Você internalizará o soldado.

Welcome,
esta é a terra dos seus sonhos.

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