Orelha de Os futuros de Darcy Ribeiro

 

Entre a vasta produção de Darcy Ribeiro, autor clássico das ciências sociais latino-americanas, é notável que as elaborações futuristas tenham sido um dos pilares de sua obra. E esses exercícios de futuração estão registrados em formas diversas: em explorações rigorosas quanto à análise de dados, em ensaios nos quais se deixa levar pela utopia e até na ficção distópica e metafórica. Os pesquisadores Andrés Kozel e Fabricio Pereira da Silva, organizadores de Os futuros de Darcy Ribeiro, selecionaram em livros e artigos, publicados de 1968 a 1995, excertos que constituem chaves de leitura imprescindíveis para compreender o legado de Darcy Ribeiro, com avaliações sobre os grupos indígenas, a mestiçagem, a natureza, a civilização ocidental, os avanços tecnológicos e a noção de soberania.

Nesta “bricolagem em movimento”, coexistem muitas faces do autor, disposições até mesmo contraditórias e mutáveis ao longo do tempo. O Darcy Ribeiro de 1968, em O processo civilizatório, é majoritariamente otimista: prospecta os desafios de mais uma revolução tecnológica, a qual julga definidora para “as sociedades futuras”, em que, superada a luta contra os privilégios, a prosperidade será generalizada e o socialismo, universal.

Em 1972, no ensaio “O abominável homem novo”, resposta a uma indagação do jornalista italiano Sergio Zavoli a diversos intelectuais, Ribeiro revela um misto de fascínio e preocupação com um futuro que pode ser sombrio. Reconhece no eurocentrismo a que fomos submetidos a raiz perversa que ainda oprime: “Forças internas e externas mancomunadas perseguem, violentam, torturam, censuram e trucidam aos melhores e aos mais lúcidos de nós. Mas continuamos combatendo e na luta encontramos a substância e a identidade que buscávamos. Somos hoje os povos que se armam com projetos de si mesmos, como povos que querem existir para si próprios. Somos os que faremos as revoluções postergadas. Somos os que cremos e atuamos. Somos os que não temos passado. Temos futuro”.

Utopia selvagem, romance de 1982, certamente herdeiro estético de Macunaíma, é uma fábula, com toques cômicos e nonsense, centrado em um protagonista que se transmuta pelo longo do convívio com diferentes grupos indígenas, em que Darcy exalta a pluralidade. Em “Próspero”, um dos capítulos selecionadas para esta coletânea, o narrador em terceira pessoa faz uma digressão para apresentar aos leitores o hilariante plano soviético da “Utopia Burguesa Multinacional”, cuja singularidade “reside no que foi estruturado com o objetivo expresso de proporcionar a povos demasiadamente abundantes, mas descarnadamente ineptos para o progresso, um máximo de felicidade pessoal compatível com um ótimo de prosperidade empresarial”.

Em 1984, em tons proféticos, como se pode observar em vários momentos deste livro, escreveu: “A maior ameaça que pesa hoje sobre a humanidade — ameaça que, felizmente, não é fatal nem inevitável — é, pois, a de mergulhar mais ainda na penúria até a exaustão, numa era de fome e de estupidificação. Tudo isso apenas para que os povos ricos fruam a riqueza acumulada e reativem uma civilização obsoleta, sem causa, sem missão nem apetite senão o de enricar. Sua última grandeza será a de endurecer os corações e tapar os ouvidos para assistir, impávida, à humanidade morrer de fome”.

Em O povo brasileiro, de 1995, gestada desde a década de 1950, Darcy enfim consolida a definitiva caracterização do Brasil e da América Latina como civilização do futuro, ao percorrer todas as nossas matrizes culturais e processos formadores. Ainda que as marcas do passado de exploração permaneçam visíveis e induzam à continuidade de estruturas violentas, enfrentá-las pode nos conduzir, enfim, à superação: “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos”.

No centenário de Darcy Ribeiro, este livro chega como um convite para nos debruçarmos sobre seus pensamentos, tão lúcidos e singulares, e recuperarmos o prazer das utopias regionais e universais como catalisadoras das transformações de que tanto necessitamos.

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