Uma trajetória da compreensão da violência policial pelo movimento negro

 

Em Gramática negra contra a violência de Estado, Paulo César Ramos mergulha em acervos documentais de organizações negras para compreender as ideias mobilizadas pela militância para fazer frente à violência de Estado, especialmente aquela que se expressa nas ruas das grandes cidades brasileiras por meio da brutalidade policial — que apenas cresceu após o fim da ditadura.

“Há uma nítida elevação no tom da violência policial denunciada pelo movimento negro ao longo das últimas décadas, e uma progressiva atenção dada ao par vida/morte no conteúdo dessa denúncia”, escreve o autor. “Se, inicialmente, tal violência policial era equiparada à proibição da entrada de atletas negros em seu próprio clube esportivo”, como aconteceu no Clube de Regatas Tietê, em São Paulo, em 1978, “em um segundo momento a violência contra o corpo físico se tornou o drama central da população negra. Na sequência, o Estado apareceu como o protagonista geral de um ato que intentava a morte da população negra no Brasil, sob o nome de ‘genocídio’.”

A pesquisa documental é acompanhada pela análise de episódios emblemáticos de racismo que estremeceram a opinião pública na época em que ocorreram. “Os casos explorados neste livro mobilizam, cada um deles, diferentes dimensões de raça, classe, gênero e território. Essas categorias articulam a radicalidade do problema social explorado aqui”, continua Ramos. “São majoritariamente homens (e eventualmente também mulheres) que se depararam com a força bruta do Estado na interrupção de sua vida. É o desfecho trágico de determinados conflitos situados em um pacto racial que estabelece o chamado ‘lugar de negro’ e preconiza que a saída desses sujeitos de tais lugares seja vista como uma violação desse pacto.”

Sustentado em uma sólida análise sociológica, Gramática negra contra a violência de Estado revela, assim, a trajetória de compreensão e enunciação da violência policial pelo movimento negro — de “discriminação racial”, nos anos 1970 e 1980, para “violência racial”, nos anos 1990, até chegar às denúncias de “genocídio negro”, nos anos 2000. Pelo estabelecimento de “pontes semânticas”, fruto de exaustivas discussões internas, o autor aponta a radicalização do protesto e o acúmulo político das organizações negras.

Ramos também detectou que pautas de “interesse geral” — Diretas Já, Constituinte, eleições e processos de impeachment, além de discordâncias diante de governos progressistas — acabaram diluindo as ondas de protesto e impossibilitando mudanças estruturais contra o extermínio sistemático da população negra pelos braços armados do Estado brasileiro.

“A violência racial, que no vocabulário do movimento social denuncia a atuação letal da polícia, pode ser vista, pela perspectiva dos policiais, como a pacificação de um conflito: os policiais estariam agindo para corrigir uma desordem, recolocando os negros em seu lugar. Em outras palavras, a morte de pessoas negras seria a própria produção da ordem, o que se espera, em determinadas circunstâncias, dos agentes estatais: matar”, conclui Ramos. “Por outro lado, deixar viver e fazer viver — no caso, as pessoas negras — seria uma ameaça à ordem.”

 

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