A correria dos entregadores não vem de hoje, nem de ontem, mas precisou o consumo por aplicativos de celular explodir nesses três meses de pandemia no Brasil para que a pauta fosse ampliada, provocasse mais gente.
É nesse cenário, de restaurantes e bares fechados, que o #BrequeDosApps na quarta-feira, 1º de julho, surgiu como um marco na resistência dos trabalhadores que cruzam a cidade sobre rodas. Aquela parcela da população condenada a nunca parar, parou.
Quem acompanha a luta por melhores condições de trabalho não se surpreendeu com as pautas; quem só agora se deu conta das vidas atravessadas por aquela pizza quentinha pedida pelo celular teve uma oportunidade de tomar consciência e se somar à luta a partir do momento que os entregadores se fizeram classe.
O #BrequeDosApps é uma mobilização por aumentos do preço pago ao entregador por quilômetro e do preço mínimo de entrega, já que o trabalhador precisa de um piso para subir na moto ou na bike. Por equipamentos de proteção. Pelos seguros de roubo, acidente e vida. Pelo fim dos bloqueios e desligamentos indevidos — no meio de um dia de trabalho você recebe uma notificação de que está fora do circuito temporariamente. Pelo fim do sistema de pontuação, aquele que te obriga a trabalhar mais, inclusive no fim de semana, para ter um ranking suficiente para seguir atuando nos dias posteriores. Por um auxílio-pandemia, que proteja quem eventualmente tiver que ficar em casa por conta da covid-19.
O grande ato, puxado por entregadores que trabalham em plataformas como iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi, teve mobilizações em todo o país.
A rua fala
Essas demandas vieram das ruas, que, se ficaram mais vazias nos últimos meses por conta das medidas de isolamento social, passaram a ser muito mais frequentadas por quem presta os serviços de transporte de mercadorias (o SindiMotoSP informou que o número de entregadores na Grande São Paulo cresceu pelo menos 20% durante a pandemia). E os relatos ganharam força com o #ApoioBrequeDosApps.
Paulo Lima, o Galo, um dos líderes do grupo Entregadores Antifascistas, se tornou uma voz importante nas últimas semanas. Na quarta-feira, 1º de julho, ele usou seu perfil no Twitter para responder à publicação do iFood diante da greve, questionando cada dado do texto.
“Enviar um comunicado sobre prevenção ao coronavírus é ‘medida tomada’? Essa ‘medida’ provavelmente tem menos efeitos práticos do que uma medida de de DISTRIBUIÇÃO de EPIs, por exemplo”, contrapôs.
Segundo vários entregadores ouvidos pela imprensa ou que se manifestaram em redes sociais durante a semana, os argumentos do iFood são questionáveis — por exemplo, aquele que afirma que entregadores receberam em média R$ 21,80 por hora trabalhada em maio de 2020.
Uma entregadora conta da dificuldade que é trabalhar sem acesso a banheiro, já que os estabelecimentos estão fechados: “Não é tão fácil para a mulher fazer xixi na rua”. Em outra matéria, um entregador vai a um ponto fundamental da greve: “A gente quer que a população saiba o quanto custa uma entrega mais barata ou gratuita”.
Outra imagem que ficou muito evidente é a do motociclista (ou ciclista) que ganha as ruas sem comer enquanto carrega a refeição dos outros, ou seja: a greve daqueles que trabalham com a fome nas costas.
O prestador responde
Reportagem da coluna de Leonardo Sakamoto, no UOL, mostrou que um áudio circulando em grupos de motofretistas levou ameaças a entregadores do iFood que fossem aderir à greve. A mensagem partiu de um operador logístico (OL), uma espécie de terceirizado pela empresa que subcontrata motoboys.
É um regime de trabalho dentro da plataforma, no qual, diferente dos entregadores que apenas se cadastram no aplicativo (ambiente chamado de nuvem), os trabalhadores têm horários e ficam subordinados a um administrador.
“A gente não se envolve em manifestação. Se você estiver com adesivo [de protesto] na sua bag, por favor, vou estar pedindo para você tirar. Se você não estiver contente trabalhando comigo, no sistema OL, vem aqui, me procura, que eu pego você e jogo na nuvem e você se vira na nuvem”, diz o operador.
Aliás, não são só os entregadores que se mostram insatisfeitos com a atual formatação das relações de trabalho. Uma pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes aponta que 80% dos estabelecimentos que trabalham com os aplicativos estão insatisfeitos com os serviços. Portanto, são várias tretas até o
Vem de longe
Lançamos Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, livro de Tom Slee, em outubro de 2017. À época, o Congresso estava mobilizado para votar a regulamentação dos serviços de aplicativos de transporte no país, numa discussão ainda pautada pela disputa com os taxistas, ou seja, envolvendo a mobilidade urbana.
Ali, a intenção era ampliar o debate para além do embate entre aplicativos e pontos de táxi, entre hotéis e Airbnb, refletindo sobre as transformações do mundo do trabalho. Aqui tem um vídeo que traz um pouco das ideias do autor.
Desde então, várias outras publicações e reflexões foram fortalecendo a discussão. Em 2019 saiu o filme Gig — A Uberização do Trabalho, dirigido por Carlos Juliano Barros, Caue Angeli e Maurício Monteiro Filho, que já explora um momento da vida uberizada, com aplicativos mediando de freelancers de locução até goleiros de futebol amador.
Essa reportagem da BBC, de maio de 2019, também mergulhou na rotina dos entregadores. Voltando para o cinema, Você Não Estava Aqui, de Ken Loach, chegou ao público brasileiro pouco antes da pandemia, contando a história de um trabalhador que finalmente encontrou um emprego para ser o próprio patrão num serviço de entrega… antes de perceber onde estava se metendo.
Enfim, um debate amplo, que passa por várias vertentes do contexto social contemporâneo. Inclusive, numa pandemia, o trabalho se reflete ainda nos índices de contaminação — não bastasse a insegurança empregatícia e financeira, ainda a sanitária. Que o 1º de julho tenha sido o início de uma reflexão mais ampla, que provoque mudanças estruturais em como o mundo convive com essas relações.
Porque mochila cheia não mata a fome.